O Globo
Um fenômeno que trafega entre o cinismo e a
irresponsabilidade começa a se consolidar à medida que vão se definindo os
quadros das eleições nos estados: partidos e líderes políticos que passaram os
últimos três anos e meio criticando Jair Bolsonaro e suas práticas
negacionistas no combate à pandemia, populistas no manejo do gasto público e
antidemocráticas na lida com as instituições acabam, de alguma forma, se
irmanando ou fazendo vista grossa ao bolsonarismo nos palanques regionais, na
esperança de herdar uma parcela do eleitorado conservador.
O que dizer da insólita aliança entre
Gilberto Kassab, cacique único do PSD, e Tarcísio de Freitas na sucessão
paulista? Em várias entrevistas recentes, o ex-prefeito de São Paulo e
ex-ministro de Dilma e Temer disse que Bolsonaro é o “pior presidente” com quem
conviveu. Nacionalmente, Kassab faz gestos de reaproximação com o PT. Só não
levou seu partido oficialmente para a aliança com Lula porque não conseguiu ser
o vice na chapa e porque, em alguns estados, não há liga possível.
Do outro lado, a antipatia é recíproca.
Bolsonaro disse o seguinte sobre Kassab quando nomeou Marcos Pontes — o
ex-astronauta, agora cotado para ser candidato ao Senado na mesma São Paulo —
para o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, antes ocupado pelo
presidente do PSD:
— Antes do Marcos Pontes, quem era o ministro da Ciência e Tecnologia? Não sabia a diferença de gravidade e gravidez. Era o senhor Kassab. Olha o que ele faz hoje em dia. Está colado no Lula. Quer a volta do Lula. Com a volta do Lula, vai ser ministro, vai pegar a Caixa Econômica para ele administrar.
Como explicar, então, tal aliança? Kassab,
com a conhecida retórica que tudo abarca, diz que Tarcísio não é bolsonarista,
que é um técnico, que já atuou nos governos do PT e do MDB. Não é bolsonarista?
Tarcísio, de fato, não pensa que a Terra é plana e se vacinou, mas só está na
política porque assim decidiu Bolsonaro. Caso o presidente não seja reeleito e
ele vença a disputa pelo Palácio dos Bandeirantes, São Paulo passará a ser o
laboratório de manutenção do bolsonarismo como força política. Ou seja: depois
de tanto excomungar, Kassab está, sim, irmanado ao bolsonarismo. Negar isso
equivale a alegar a quadratura do círculo.
E o prefeito do Rio, Eduardo Paes? Outro
antibolsonarista empedernido no discurso nacional. Que, no entanto, ainda
ensaia uma aliança explícita ou branca com o governador Cláudio Castro no
estado, de olho na própria conveniência política, pelo fato de Castro não
poder, por lei, ser candidato à reeleição em 2026, o que deixaria o terreno livre
para ele.
Na mesma São Paulo em que o bolsonarismo
tenta fincar sua bandeira, o governador tucano Rodrigo Garcia se dedica a uma
ginástica: superar Tarcísio e ir ao segundo turno sem criticar o presidente,
pois almeja ser o escolhido pelo eleitor bolsonarista no lugar do ex-ministro
de Infraestrutura.
Nesse jogo que leva em conta apenas o
imediatismo da estratégia contábil de votos e conceitos muitas vezes tirados da
prancheta do marketing político, o que falta é responsabilidade com o país e
com a democracia.
Os partidos desses caciques votaram a favor
da gastança da PEC do vale-tudo eleitoral e aceitaram rasgar ao mesmo tempo a
lei eleitoral e os mecanismos de austeridade fiscal em nome desse mesmo cálculo
ligeiro.
Depois não adiantará a tucanos, pessedistas
e outros que se declaram representantes de um tal centro com mais cara da
omissão que do comedimento se dizerem surpresos caso o presidente comece a
tirar a cabeça para fora do atoleiro eleitoral e se torne competitivo.
Quando isso acontecer, terá sido
fundamental essa boa vontade dos “democratas” que não estão nem aí para
defender a democracia.
Um comentário:
Não há política séria,há apenas um jogo de interesse.
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