segunda-feira, 18 de julho de 2022

Miguel de Almeida - Faz falta um Ulysses Guimarães em 2022

O Globo

Oposição é um remendo de rebotalho

Benito Mussolini, no cargo de primeiro-ministro da Itália e depois no papel de ditador, escapou de quatro atentados. Alguns mais sérios (chegou a ser ferido no ombro, por tiro), outros menos eficazes. Até que sua esperteza não o cobriu mais — ou a sorte deixou de lhe sorrir —, e ele acabou preso pela resistência italiana, já no fim da Segunda Guerra Mundial.

Como se sabe, terminou abatido a tiros, perto do lindo Lago de Como, e pendurado de ponta-cabeça, ao lado de uma de suas amantes, Clara Petacci, na Praça Loreto, junto a um posto de gasolina, em Milão, com ligeira barriga à mostra.

Seu cérebro, autopsiado nos Estados Unidos, não indicou ser portador de sífilis, como muitos procuravam justificar sua loucura. Em resumo, era apenas um cara muito mau.

Uma das figuras centrais do século passado, Mussolini, com sua ideologia fascista de violência física contra os adversários, inspirou fortemente o nacional-socialismo de Hitler e Goebbels, a quem de início esnobara. Sua execução sumária e a exposição pública de seu cadáver, se muito chocaram à época, compreendem-se pelo retorno em dobro do ódio que disseminou entre os italianos, com o assassinato de adversários, a destruição de sedes de partidos de esquerda, mais os sistemáticos espancamentos pelas milícias fascistas de seus inimigos políticos.

No YouTube se encontra gratuito “O delito Mateotti”, de Florestano Vancini, sobre o assassinato do líder socialista Giacomo Mateotti (vivido por Franco Nero) pelas milícias de Mussolini. Vários outros adversários, socialistas e comunistas, sucumbiriam sob intensa violência fascista. Como ainda alguns de seus ex-aliados de primeira hora, abandonados no campo de batalha.

Os dois livros de Antonio Scurati — será uma trilogia — “M, o filho do século” e “M, o filho da providência” recontam a trajetória do líder fascista dentro do espírito de um romance “documental”. Os acontecimentos são todos verídicos, mas em narrativa com técnicas ficcionais.

Mussolini é filho de uma crise econômica brutal, resultado também dos escombros da Primeira Guerra Mundial, mas ainda de uma oposição ingênua, incrédula e honesta, pia enfim. Ler Scurati e reencontrar o fantasma de Mussolini — após noites de votação da “PEC Kamikaze” e discursos covardes como o da senadora Simone Tebet, seguido de seu voto favorável — mostram em poucos quadros por que Bolsonaro e Lira violam tranquilamente as leis. A oposição é um remendo de rebotalho.

Foi assim que Mussolini implantou a ditadura na Itália, é assim que os bolsonaristas avançam a tiros no Brasil — não há oposição. Um único senador — José Serra — e apenas 18 deputados se colocaram contra a sanha eleitoreira de Bolsonaro. A passividade do Legislativo agora contamina também o Supremo, até então um Poder resistente aos arreganhos das milícias. Tá tudo dominado.

Mais uma vez permitem vender o futuro do país, e das próximas gerações, portanto, por receio de confrontar Bolsonaro e suas milícias. Suas medidas de agora implementarão o caos social e político logo mais. São os pobres que amanhã darão seus miseráveis dízimos na espera de uma vida talvez melhor no além.

Valeria lembrar Rimbaud? Por delicadeza, perdi a vida, lamentou o poeta. Não estamos em tempos de sutileza, porque estão soltos os cães. A realidade de bíblia rasa dos pastores (alguém ouviu algum deles protestar contra o assassinato em Foz do Iguaçu, praticado por um cristão e conservador?) merece a lembrança de outros heróis.

A ditadura militar brasileira ruiu por dentro (é a turma do voto impresso) e por fora (pela notória inteligência de alguns líderes). O regime de exceção teve de enfrentar Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, entre outros liberais.

No pior momento dos anos duros, Ulysses rodou o Brasil como anticandidato. Sem eleições diretas, com o Congresso votando sob fuzil no nome indicado pelos militares (no caso, o general Ernesto Geisel), ele denunciou a falta de liberdade, a censura, as torturas e a carestia.

Em Salvador, impedido de circular pela polícia com armas e cães, avançou e gritou:

— Baioneta não é voto, e cachorro não é urna.

Sua movimentação, seu encontro em plateias reduzidas, com declarações fortes, sem medo nem passividade, resultou na chegada de um ditador que assumiu com a promessa de iniciar o fim do ciclo militar. Nas eleições parlamentares de 1974, a oposição ganhou em 16 dos 22 estados. Era o começo do fim.

Não se pode esquecer o apoio do presidente Jimmy Carter contra a ditadura militar. Mesma posição democrática de Biden diante dos suspiros autoritários de Bolsonaro.

Infelizmente, falta um Ulysses Guimarães em 2022.

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