Correio Braziliense
A magistratura é uma atividade essencialmente
iluminista. Um juiz procura tomar suas decisões à luz da sua consciência e com
base na sua interpretação da lei. Há uma espécie de “penso, logo julgo”
Não haveria a moderna civilização ocidental
se o Iluminismo não corroesse as entranhas do Antigo Regime até liquidá-lo, nas
revoluções Inglesa, Americana e Francesa. Começou como um movimento cultural
europeu nos séculos XVII e XVIII, que buscava mudanças políticas, econômicas e
sociais. Os iluministas acreditavam no conhecimento e na razão, em detrimento
do pensamento religioso. A maioria apostava que o homem chegaria a Deus por
meio da razão. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) definiu-o assim: “O
iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma menoridade que estes
mesmos se impuseram a si. (…) Sapere aude! (Ouse saber!) Tem coragem para fazer
uso da tua própria razão!”
O precursor do iluminismo René Descartes (1596-1650), considerado o pai do racionalismo, no Discurso do Método, preconizava que se questionasse tudo. Os governos absolutistas e a Igreja católica não permitiam questionamentos. Graças ao Iluminismo que pregavam, a racionalidade humana, a ciência e o humanismo acabaram se impondo. As ideias iluministas foram consolidadas por Denis Diderot (1713-1784) na Enciclopédia, com 35 volumes, que continha milhares de artigos e ilustrações de diversos cientistas, filósofos e pesquisadores de campos de conhecimentos distintos, a mais importante exposição do conhecimento humano até então realizada.
A limitação do poder do Estado sobre o
indivíduo, os ideais e lutas pelos direitos individuais, tal como a vida, a
liberdade, a dignidade; o sistema de repartição de poderes entre Executivo,
Legislativo e Judiciário são legados iluministas. Além da liberdade e da
justiça social, os iluministas pregavam o progresso. Na economia, as ideias de
Adam Smith (1723-1790), ao defender a economia de livre mercado e liberal,
foram sua resposta ao velho modelo mercantilista. “Penso, logo existo”, a frase
icônica do filósofo francês René Descartes, colocando a razão humana como única
forma de existência, é a síntese do sujeito iluminista, um ser centrado e
unificado.
O sujeito do Iluminismo — um “indivíduo
soberano”, singular e indivisível —, porém, foi ultrapassado pelo sujeito
sociológico, fruto da sociedade industrial e sua estrutura de classes, que
protagonizou as grandes mudanças dos séculos XIX e XX. Era um ser interativo,
configurado pelo seu processo de socialização e absorção de caracteres de suas
relações e experiências vividas junto aos demais sujeitos que o rodeavam.
Entretanto, esse sujeito entrou em crise na sociedade pós-moderna, por uma
série de razões, entre as quais a “desconstrução” da sua própria identidade,
pelas revoluções científica, tecnológica, cultural e de gêneros.
Na sociedade atual, o sujeito não tem uma,
mas várias identidades. Não é um ser configurado de forma plena e estável, mas
fragmentado, partilhando, por vezes, identidades contraditórias entre si. Em
meio a tantas mudanças, o sujeito pós-moderno constrói identidades provisórias,
variáveis e problemáticas. Essa “crise de identidade” é parte de um processo
mais amplo de mudanças sociais, muitas das quais impostas pelas novas formas de
produção de riqueza. O descolamento da sociedade atual das estruturas da
democracia representativa, que entrou em crise, faz parte desse processo, assim
como a radicalização política em curso no mundo, inclusive aqui no Brasil. A
polarização é entre os indivíduos que querem acompanhar essas mudanças e os que
tentam contê-las.
Magistratura
O exercício da magistratura é uma atividade
essencialmente iluminista. Um juiz procura tomar suas decisões à luz da sua
consciência e com base na sua interpretação da lei. Há uma espécie de “penso,
logo julgo”, principalmente quando as decisões são monocráticas. É comum
advogados se referirem ao Supremo Tribunal Federal (STF) como um arquipélago,
no qual cada ilha é absolutamente autossuficiente, tamanho o poder de decisão
de seus ministros. Entretanto, se a relação entre o velho “sujeito iluminista”
e a sociedade formada por “sujeitos sociológicos” estruturados em classes
sociais já era difícil, essa relação se tornou mais conflituosa e
dessintonizada na “sociedade líquida” em que vivemos, na definição do sociólogo
polonês Zygmunt Bauman. O processo decisório na Justiça está cada vez mais
defasado da nova realidade, principalmente quanto à velocidade de suas
respostas às demandas judiciais.
A radicalização política em curso nas
eleições, na qual se digladiam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o
presidente Jair Bolsonaro, reflete essa nova situação. O sujeito pós-moderno
que conhecemos, na campanha eleitoral, entrou na política pelas redes sociais,
digamos, em estado gasoso. A nove dias das eleições, a temperatura sobe a cada
pesquisa de intenções de voto, o que torna mais complexo o ambiente de tomada
de decisão pela Justiça Eleitoral. Segundo as projeções, será uma disputa
decidida por eleitores ainda indecisos, no dia da eleição, que pode virar um
barril de pólvora durante o processo de apuração dos votos, se não houver uma
compreensão generalizada das forças políticas e instituições de que o Tribunal
Superior Eleitoral(TSE) mantém uma posição equidistante de Lula e Bolsonaro e
de que o sistema de votação é legítimo. Decisões contraditórias da Corte e exageros
monocráticos podem servir de pretexto para a contestação dos resultados da
eleição.
Um comentário:
Excelente artigo,quem sabe,sabe.
Postar um comentário