domingo, 16 de outubro de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto* - Votar para valer, não para ficar em paz com os próprios botões

Voto nulo é um voto legítimo, em qualquer situação. Mesmo em momentos de alto perigo, como esse que atravessamos, ninguém pode ser censurado moralmente por não se sentir à vontade com o cardápio que lhe foi oferecido nesta eleição, primeiro pelos partidos, depois pela maioria de eleitores que decidiu quem disputará o segundo turno. O direito à dieta eleitoral faz parte da democracia.

Posto isso, quero conversar com quem quer fazer dieta nessa eleição por rejeitar igualmente Lula e Bolsonaro. E com quem está admitindo votar em Bolsonaro tapando o nariz. É conversa política, democrática, de igual pra igual, não conversa moralista ou professoral. Sou brasileiro tanto quanto quem quer votar nulo ou de nariz tapado e não sou mais sábio ou mais ético do que quem fazer dieta.

A democracia precisa do seu voto válido em Lula. Ela - não Lula - é o endereço de um voto político nessa hora difícil. Sei que através de votos válidos em Lula é ele e não outra a pessoa que governará. E que o seu partido, o PT, terá papel importante no governo. Papel maior ou menor, a depender do tamanho da frente que apoiar o candidato. Como ela ficou ampla, temos razões para pensar que o PT não poderá, mesmo que queira, governar sozinho. E seja como for, numa democracia nada obriga quem votou num candidato a apoiar seu governo depois. A oposição é livre e necessária na democracia. O voto que defendo não é ideológico, nem de facção. No dia 30 vamos votar também pelo direito a haver oposição.

Já o adversário de Lula, se reeleito, ameaçará esse nosso tesouro democrático comum. Quem já nasceu na democracia talvez não tenha ideia bastante do que significa perdê-la. O preço alto seria pago também por nós, que somos hoje idosos ou adultos, mas principalmente por quem está começando a vida agora.

Digo que a reeleição de Bolsonaro pode fazer desse perigo, que hoje já existe, uma realidade, talvez por décadas. Sim, pois o script que a extrema-direita encena no mundo todo é este: no primeiro mandato o populista é candidato a ditador; no segundo mandato ganha um salvo-conduto para ser, de fato, ditador. Quando, no horário eleitoral, Bolsonaro diz que o Congresso que acaba de ser eleito trabalhará em harmonia com ele, essa harmonia quer dizer o seguinte: o presidente dará aos parlamentares recursos do Estado para que, em troca, eles aprovem o controle do Judiciário e da imprensa, leis que persigam minorias, que retirem recursos da ciência, que permitam o desmonte de agências públicas como IBGE, IBAMA e outras; que asfixiem o SUS e por aí vai.  No fim dessa linha o plano é dar fim à atual Constituição (o controle do Judiciário facilita isso) e no seu lugar colocar outra, ao gosto da maioria bolsonarista. Vamos pensar juntos: essa maioria, se houver mesmo (para isso Bolsonaro anda precisa virar os números), será provisória, como toda maioria eleitoral. Em condições normais será testada de novo, daqui a quatro anos. Tem sentido uma maioria ocasional alterar a seu favor as regras de um jogo que é permanente? Só tem sentido para a extrema-direita, porque esse é o caminho para o ditador se perpetuar, fabricando sucessivos mandatos, como acontece com Orban, Edorgan e Putin, na Hungria, na Turquia e na Rússia e como aconteceu e acontece na Venezuela, antes com Chávez, hoje com Maduro.  

Nada disso é profecia. É bem provável que a sociedade resista a esse plano. Mas convenhamos que se Bolsonaro se reeleger mais de meio caminho terá sido andado para que ele tenha sucesso. Reverter isso vai custar muito tempo, energias, dores e provavelmente vidas. Tudo isso pode ser evitado nesse dia 30.

Quem é ou se tornou bolsonarista certamente não concorda comigo. É do jogo. Se não usarem violência – de músculos, de armas ou de fakenews – está tudo certo. Disputaremos nas urnas e quem ganhar leva.  Como disse no começo, quero conversar agora é com quem quer votar nulo e com quem admite até votar em Bolsonaro, mas sem tanta convicção, porque considera a opção de Lula tão nefasta ou até pior.

Tenho plena noção de que um novo governo Lula não será um mar de rosas. Estou distante daquelas pessoas que acreditam numa volta a um suposto paraíso, como tem sido prometido em sua campanha. Propaganda não faz minha cabeça.  O êxito na economia e os inegáveis avanços sociais obtidos nos primeiros anos de governos petistas não apagam a crise econômica, social e ética a que levaram o país na sequência, da qual a recessão econômica e o desemprego em massa foram a maior herança. Do mesmo modo tenho noção de que nos governos anteriores de Lula houve muita corrupção. Não creio que tenha sido esse o maior problema, mas admito que é a razão maior da rejeição atual ao candidato. Se e até que ponto ele esteve envolvido pessoalmente naqueles fatos não me sinto em condições de afirmar pois seus processos foram juridicamente anulados e não nos compete tomar o lugar dos juízes. Mas de todo modo não há como um presidente deixar de ter responsabilidade política pelo que ocorre em seu governo. Queira ou não, Lula está lidando com essa responsabilidade política na sua campanha. É principalmente por causa dela que Bolsonaro existe politicamente após tantos crimes. E ainda posa de satanás pregando quaresma num mar de rachadinhas e golpes bilionários contra os cofres públicos. 

Com tudo isso, pergunto aos amigos (mesmo àqueles que, diferentemente de mim, acham que existe um DNA petista diferenciado que faz dele um partido pior que os outros) se há evidências concretas de que, num futuro governo, Lula repetirá os erros anteriores. De saída, ele vai enfrentar uma dura e aguerrida oposição que vigiará cada passo seu e de seu governo. Por causa disso será pressionado, em razão da ampla frente que acabou reunindo, a fazer um governo de coalizão e não só um governo de cooptação, como fez antes.  Além disso não é razoável supor que ele queira encerrar sua carreira atraindo para si novos processos depois de ter se livrado de vários. 

Lula é um democrata que cometeu muitos e graves erros, mas que tem seu futuro político amarrado à continuidade da democracia. Ao contrário do seu oponente, que é um autocrata que usa a democracia para destruí-la e assim continuar no poder indefinidamente.  Lula não tentou fazer isso quando estava no auge de sua popularidade. Foi exatamente isso que Simone Tebet reconheceu ao lhe dar apoio no segundo turno sem retirar nenhuma das críticas que lhe fez antes. É esse o voto político em Lula que estou sugerindo. Um voto que não se deve ao seu passado (no qual se pode ver muitas coisas boas e muitas ruins), nem mesmo principalmente ao que de positivo ele esteja dizendo e fazendo hoje. É um voto político para que possamos ter um amanhã dentro da democracia. 

Alguém poderá dizer que votando nulo não votará contra um amanhã. E é verdade, do ponto de vista da intenção desse eleitor. Mas sua boa intenção pode se misturar com todas as nossas num só inferno que pode acontecer se o número de votos válidos cair muito. A abstenção (não ir votar) é impossível de prever e ela já é, a princípio, aliada de Bolsonaro, porque ele tem bem menos votos entre os eleitores mais pobres, que são aqueles que têm mais dificuldade objetiva para se deslocar até as urnas, especialmente quando precisam viajar para isso. Se além da abstenção houver votos não válidos da parte de quem reconhece o perigo da reeleição de Bolsonaro, a situação pode ficar mais difícil para todos o que querem um amanhã.  Votemos para valer e não só para ficarmos em paz com nossos botões!

*Cientista político e professor da UFBa

Um comentário:

Jorge disse...

São ótimos argumentos, Paulo!