quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Daniel Rittner - Para o Brasil ser feliz de novo

Valor Econômico

Alguns pesquisadores colocam o dinheiro como fator que influencia a felicidade dos indivíduos e da sociedade - até certo ponto

Jornalista de formação e diplomata de carreira, auxiliar da ex-primeira-ministra social-democrata da Suécia por anos, Karin Wallensteen chegou há cerca de três meses no Brasil para comandar a embaixada do país nórdico. Foi um regresso ao lugar onde ela já havia morado e trabalhado entre 2004 e 2006, como primeira-secretária, mas que não conseguiu visitar por uma década e meia. Na volta, algumas surpresas. Boas e ruins.

As surpresas positivas de Karin começaram a bordo do avião. Depois de anos ouvindo falar sobre crises econômicas, esperava o entorno de Brasília dominado por favelas. “Deu para ver muitas comunidades pobres, certamente, mas menos miséria do que eu temia”, notou.

Em terra firme, percebeu como os aeroportos brasileiros se modernizaram em 16 anos, graças ao investimento privado no setor. “Muitos se parecem até com terminais europeus”, disse a embaixadora. Finalmente, em suas reuniões na Esplanada dos Ministérios, veio uma satisfação: “Quando eu servi no Brasil, pela primeira vez, havia bem menos negros no governo”. Karin não se referia a ministros, mas aos servidores em geral, que fazem a máquina pública girar. Frisou que isso não significa, nem de longe, igualdade racial ou um suposto alívio no racismo. Sem exageros ou reflexões forçadas. Só lhe pareceu, olhando assim de soslaio, alguma evolução.

Interrompi a embaixadora ao me lembrar de uma palestra de Bill Clinton, anos atrás, no Brasil. Dizia o ex-presidente americano que os brasileiros somos muito críticos de nós mesmos, mas que poderíamos observar o passado recente com mais benevolência.

Dos anos 1970 para os 1980, abandonamos a ditadura militar e reconquistamos a democracia. Na década de 1990, superamos a hiperinflação e surgiram as bases de uma rede de proteção social. Nos anos 2000, houve queda da pobreza e do abismo de classes, embora obviamente em níveis insuficientes. Enfim, tentava o ex-ocupante da Casa Branca incutir na plateia brasileira, não havia motivos para só lamentar. Talvez, se estivesse fazendo hoje essa mesma palestra, ele pudesse citar a resiliência das instituições como um ganho dos anos 2010. “Eu concordo com Bill Clinton”, afirmou a embaixadora sueca, que retomou suas reflexões.

Com cautela e calculando as palavras, pois diplomatas têm aversão a indelicadezas com os países onde atuam, Karin falou então sobre algumas surpresas menos prazerosas. Uma delas: o custo de vida. Ficou assustada com o preço das roupas, dos móveis em geral (que vontade de ver a Ikea no Brasil!) e dos vinhos (a tarifa de importação está em 27%!!!). Viu também um retrocesso na convivência entre os próprios brasileiros, com mais tensionamento nas relações familiares e em grupos de amigos, o que ela atribui - corretamente - à polarização e à baixa disposição de aceitar opiniões políticas divergentes.

Começo daqui meu ponto: o Brasil está menos feliz. Veja-se o World Happiness Report, uma espécie de ranking mundial da felicidade, elaborado com base em entrevistas conduzidas pelo instituto Gallup e metodologia feita por estudiosos de centros de prestígio, como a Columbia University e a London School of Economics. Nas dez primeiras posições estão países nórdicos, da Europa Ocidental, Israel e a Nova Zelândia. O Brasil aparece em 38º lugar. Na rabeira estão Zimbábue, Líbano, Afeganistão.

Parece estranho: seriam mesmo os noruegueses, com suas temperaturas gélidas e tão poucas horas de sol no inverno, mais felizes que os portugueses, com clima ameno e uma comida deliciosa? Os canadenses (15º no ranking) são mais felizes que os mexicanos (46º), colombianos (66º) e africanos de modo geral?

Há confusão frequente no conceito de felicidade. Não se deve enxergá-la como alegria eufórica, momentos de dança alucinada ou de clímax com gol em final de Copa, porque nada disso pode ser perene. A palavra hygge, do idioma dinamarquês, é intraduzível e talvez defina com perfeição a essência da felicidade.

Hygge é um estado de espírito no qual uma pessoa se encontra ao unir dez fatores: 1) estar em um ambiente com luz confortável e baixa; 2) fazer o exercício da presença, afastando celulares e outras tecnologias dispersivas; 3) usufruir de prazeres alimentares; 4) exercitar a generosidade; 5) ser grato pelo momento; 6) produzir um ambiente de harmonia; 7) sentir-se confortável com as suas roupas e no local onde estiver; 8) viver um momento de trégua, no qual não se fale sobre dramas ou assuntos áridos; 9) promover o convívio e partilhar lembranças; 10) sentir-se em um refúgio, um lugar de paz e de segurança.

Na Escandinávia, uma família precisa de duas gerações para que seus membros deixem a condição de pobreza e finquem os pés na classe média. No Brasil, são nove gerações, segundo o Fórum Econômico Mundial.

Alguns pesquisadores colocam o dinheiro como fator que influencia a felicidade dos indivíduos e da sociedade - até certo ponto. Estudos apontam que a sensação de bem-estar se eleva, gradualmente, à medida que a renda per capita cresce e chega perto de US$ 30 mil por ano. A partir disso, pouco muda e outros aspectos pesam mais.

Dá para ser feliz sem a certeza de fazer três refeições por dia? Deixando os próprios filhos pequenos em casa, em situação de improviso, para cuidar dos filhos da patroa? Gastando duas horas para ir e duas horas para voltar do trabalho? Sem clareza sobre uma aposentadoria digna ou tratamento médico em caso de doença grave? Para fins de pesquisa, a pergunta nunca deve ser feita no plano filosófico: você é feliz? O viés mais mensurável e objetivo da questão é outro: você dispõe dos recursos necessários para poder buscar a felicidade?

O ambiente radicalizado na sociedade, a desconfiança do outro, a descrença no sistema, a transformação do rival político em inimigo de vida, a perda de cumplicidade entre familiares e amigos longevos nos consome e nos entristece. Não deixemos que o roteiro da nossa felicidade seja escrito por terceiros. Não vivamos conforme expectativas alheias ou introjetadas por outros. Diálogo e respeito. Paz e tolerância. É do que estamos precisando, todos nós.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente e educativa coluna! Parabéns ao jornalista e ao blog que divulga este texto! Repito o que mais gostei:
"A palavra hygge, do idioma dinamarquês, é intraduzível e talvez defina com perfeição a essência da felicidade. Hygge é um estado de espírito no qual uma pessoa se encontra ao unir 10 fatores:
1) estar em um ambiente com luz confortável e baixa;
2) fazer o exercício da presença, afastando celulares e outras tecnologias dispersivas;
3) usufruir de prazeres alimentares;
4) exercitar a generosidade;
5) ser grato pelo momento;
6) produzir um ambiente de harmonia;
7) sentir-se confortável com as suas roupas e no local onde estiver;
8) viver um momento de trégua, no qual não se fale sobre dramas ou assuntos áridos;
9) promover o convívio e partilhar lembranças;
10) sentir-se em um refúgio, um lugar de paz e de segurança."
Eu acrescentaria um item:
11) não ser governado por Jair Bolsonaro e nem ouvir falar sobre ele ou sua família! Se ele estiver preso, valerá por 2 itens!

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo.