Valor Econômico
Alguns pesquisadores colocam o dinheiro
como fator que influencia a felicidade dos indivíduos e da sociedade - até
certo ponto
Jornalista de formação e diplomata de
carreira, auxiliar da ex-primeira-ministra social-democrata da Suécia por anos,
Karin Wallensteen chegou há cerca de três meses no Brasil para comandar a
embaixada do país nórdico. Foi um regresso ao lugar onde ela já havia morado e
trabalhado entre 2004 e 2006, como primeira-secretária, mas que não conseguiu
visitar por uma década e meia. Na volta, algumas surpresas. Boas e ruins.
As surpresas positivas de Karin começaram a
bordo do avião. Depois de anos ouvindo falar sobre crises econômicas, esperava
o entorno de Brasília dominado por favelas. “Deu para ver muitas comunidades
pobres, certamente, mas menos miséria do que eu temia”, notou.
Em terra firme, percebeu como os aeroportos brasileiros se modernizaram em 16 anos, graças ao investimento privado no setor. “Muitos se parecem até com terminais europeus”, disse a embaixadora. Finalmente, em suas reuniões na Esplanada dos Ministérios, veio uma satisfação: “Quando eu servi no Brasil, pela primeira vez, havia bem menos negros no governo”. Karin não se referia a ministros, mas aos servidores em geral, que fazem a máquina pública girar. Frisou que isso não significa, nem de longe, igualdade racial ou um suposto alívio no racismo. Sem exageros ou reflexões forçadas. Só lhe pareceu, olhando assim de soslaio, alguma evolução.
Interrompi a embaixadora ao me lembrar de
uma palestra de Bill Clinton, anos atrás, no Brasil. Dizia o ex-presidente
americano que os brasileiros somos muito críticos de nós mesmos, mas que
poderíamos observar o passado recente com mais benevolência.
Dos anos 1970 para os 1980, abandonamos a
ditadura militar e reconquistamos a democracia. Na década de 1990, superamos a
hiperinflação e surgiram as bases de uma rede de proteção social. Nos anos
2000, houve queda da pobreza e do abismo de classes, embora obviamente em
níveis insuficientes. Enfim, tentava o ex-ocupante da Casa Branca incutir na
plateia brasileira, não havia motivos para só lamentar. Talvez, se estivesse
fazendo hoje essa mesma palestra, ele pudesse citar a resiliência das
instituições como um ganho dos anos 2010. “Eu concordo com Bill Clinton”,
afirmou a embaixadora sueca, que retomou suas reflexões.
Com cautela e calculando as palavras, pois
diplomatas têm aversão a indelicadezas com os países onde atuam, Karin falou então
sobre algumas surpresas menos prazerosas. Uma delas: o custo de vida. Ficou
assustada com o preço das roupas, dos móveis em geral (que vontade de ver a
Ikea no Brasil!) e dos vinhos (a tarifa de importação está em 27%!!!). Viu
também um retrocesso na convivência entre os próprios brasileiros, com mais
tensionamento nas relações familiares e em grupos de amigos, o que ela atribui
- corretamente - à polarização e à baixa disposição de aceitar opiniões
políticas divergentes.
Começo daqui meu ponto: o Brasil está menos
feliz. Veja-se o World Happiness Report, uma espécie de ranking mundial da
felicidade, elaborado com base em entrevistas conduzidas pelo instituto Gallup
e metodologia feita por estudiosos de centros de prestígio, como a Columbia
University e a London School of Economics. Nas dez primeiras posições estão
países nórdicos, da Europa Ocidental, Israel e a Nova Zelândia. O Brasil
aparece em 38º lugar. Na rabeira estão Zimbábue, Líbano, Afeganistão.
Parece estranho: seriam mesmo os
noruegueses, com suas temperaturas gélidas e tão poucas horas de sol no
inverno, mais felizes que os portugueses, com clima ameno e uma comida
deliciosa? Os canadenses (15º no ranking) são mais felizes que os mexicanos (46º),
colombianos (66º) e africanos de modo geral?
Há confusão frequente no conceito de
felicidade. Não se deve enxergá-la como alegria eufórica, momentos de dança
alucinada ou de clímax com gol em final de Copa, porque nada disso pode ser
perene. A palavra hygge,
do idioma dinamarquês, é intraduzível e talvez defina com perfeição a essência
da felicidade.
Hygge é um estado de espírito no qual uma
pessoa se encontra ao unir dez fatores: 1) estar em um ambiente com luz
confortável e baixa; 2) fazer o exercício da presença, afastando celulares e
outras tecnologias dispersivas; 3) usufruir de prazeres alimentares; 4)
exercitar a generosidade; 5) ser grato pelo momento; 6) produzir um ambiente de
harmonia; 7) sentir-se confortável com as suas roupas e no local onde estiver;
8) viver um momento de trégua, no qual não se fale sobre dramas ou assuntos
áridos; 9) promover o convívio e partilhar lembranças; 10) sentir-se em um
refúgio, um lugar de paz e de segurança.
Na Escandinávia, uma família precisa de
duas gerações para que seus membros deixem a condição de pobreza e finquem os
pés na classe média. No Brasil, são nove gerações, segundo o Fórum Econômico
Mundial.
Alguns pesquisadores colocam o dinheiro
como fator que influencia a felicidade dos indivíduos e da sociedade - até
certo ponto. Estudos apontam que a sensação de bem-estar se eleva,
gradualmente, à medida que a renda per capita cresce e chega perto de US$ 30
mil por ano. A partir disso, pouco muda e outros aspectos pesam mais.
Dá para ser feliz sem a certeza de fazer
três refeições por dia? Deixando os próprios filhos pequenos em casa, em
situação de improviso, para cuidar dos filhos da patroa? Gastando duas horas
para ir e duas horas para voltar do trabalho? Sem clareza sobre uma
aposentadoria digna ou tratamento médico em caso de doença grave? Para fins de
pesquisa, a pergunta nunca deve ser feita no plano filosófico: você é feliz? O
viés mais mensurável e objetivo da questão é outro: você dispõe dos recursos
necessários para poder buscar a felicidade?
O ambiente radicalizado na sociedade, a
desconfiança do outro, a descrença no sistema, a transformação do rival
político em inimigo de vida, a perda de cumplicidade entre familiares e amigos
longevos nos consome e nos entristece. Não deixemos que o roteiro da nossa
felicidade seja escrito por terceiros. Não vivamos conforme expectativas
alheias ou introjetadas por outros. Diálogo e respeito. Paz e tolerância. É do
que estamos precisando, todos nós.
2 comentários:
Excelente e educativa coluna! Parabéns ao jornalista e ao blog que divulga este texto! Repito o que mais gostei:
"A palavra hygge, do idioma dinamarquês, é intraduzível e talvez defina com perfeição a essência da felicidade. Hygge é um estado de espírito no qual uma pessoa se encontra ao unir 10 fatores:
1) estar em um ambiente com luz confortável e baixa;
2) fazer o exercício da presença, afastando celulares e outras tecnologias dispersivas;
3) usufruir de prazeres alimentares;
4) exercitar a generosidade;
5) ser grato pelo momento;
6) produzir um ambiente de harmonia;
7) sentir-se confortável com as suas roupas e no local onde estiver;
8) viver um momento de trégua, no qual não se fale sobre dramas ou assuntos áridos;
9) promover o convívio e partilhar lembranças;
10) sentir-se em um refúgio, um lugar de paz e de segurança."
Eu acrescentaria um item:
11) não ser governado por Jair Bolsonaro e nem ouvir falar sobre ele ou sua família! Se ele estiver preso, valerá por 2 itens!
Muito bom o artigo.
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