Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Para sepultar a polarização que perversamente
tem dividido o país, cabe mais, para a maioria dos temas, o Lulinha Paz e Amor
A intentona golpista de 8 de janeiro teve
um duplo efeito sobre o governo Lula. O primeiro foi o fortalecimento do
presidente eleito, porque ficou nítido o golpismo armado pelo bolsonarismo, o
que geraria impactos deletérios não só para o petismo como ainda para o destino
de todo o país. De lá para cá, Bolsonaro e seus aliados só têm recebido
notícias ruins, inviabilizando qualquer oposição mais radical pelo menos nos
próximos dois anos. A luta contra a extrema direita se dá num clima de alta
tensão, típico de momentos de crise ininterrupta.
Manter-se nessa atmosfera tensa a todo momento, contudo, tende a atrapalhar a governabilidade e a tomada de decisões do governo federal. E é este o segundo efeito da intentona golpista que deve ser evitado. O governo Lula vai ter, portanto, que separar essas duas dimensões na lógica de seu mandato: a da luta contra o bolsonarismo extremista e a da governabilidade mais ampla.
Desmascarar e punir uma extrema direita que
atentou contra a democracia, desrespeitou princípios básicos de direitos
humanos contra seus próprios cidadãos e, como fica cada vez mais claro,
praticou delitos de corrupção para se manter no poder exige um tipo específico
de estratégia, mais duro e sem concessões. Transportar esse modo para o dia a
dia do governo, num momento em que o PT precisa de um apoio partidário e social
mais amplo, pode ser um tiro no pé. Uma outra forma de fazer política, mais
ponderada e incrementalista, terá de ser adotada para a governabilidade mais
geral.
Evidente que a luta contra o bolsonarismo
golpista não terminou. Há muito a investigar sobre os preparativos e o apoio ao
golpe, bem como sobre uma série de ações do governo anterior. Trata-se de um
jogo com vários atores, como o STF, o TSE, o Congresso Nacional, o Ministério
Público Federal e o Executivo Federal, com vários órgãos internos de controle
participando desse processo. Todos querem cooperar e punir os males provocados
pelas lideranças e golpistas bolsonaristas.
Mais do que isso, o intuito é dar uma
punição exemplar, porque há um sentimento de indignação na maior parte da
sociedade brasileira contra os crimes cometidos por Bolsonaro e seus aliados
extremistas. Por isso, nesta arena de ação política, o clima é de alta tensão,
pois é preciso evitar que o país chegue novamente ao caos dos últimos quatro
anos.
Há uma onda política impulsionada pelo ato
golpista de 8 de janeiro que terá um efeito arrasador sobre o bolsonarismo.
Como comparação histórica, criou-se uma situação política similar aos efeitos
da Lava-Jato sobre o petismo na década passada, embora o mais provável é que o
impacto agora seja muito maior, pois Bolsonaro tende a se tornar inelegível, um
número muito maior de apoiadores será condenado e preso, podendo chegar
inclusive ao núcleo familiar do ex-presidente, e muitos fatos escondidos ou não
investigados nos últimos anos virão à tona, com enorme potencial explosivo - se
Bolsonaro tiver de responder a cortes internacionais por crimes contra os
direitos humanos, aí até a prisão de Lula será um evento menor. Politicamente,
os bolsonaristas poderão ter no pleito municipal de 2024 um resultado tão ruim
ou pior do que o PT teve em 2016 e 2020.
Não é por acaso que boa parte dos políticos
mais moderados que apoiaram Bolsonaro quer se livrar do seu antigo líder.
Diversos parlamentares e políticos do PP, do Republicanos e até do PL pretendem
não só votar com o governo, como também pleiteiam espaço no Executivo. O
resultado das eleições nas duas casas congressuais realçou esse clima e a
postura extremista de oposição tende a se enfraquecer ainda mais nos próximos
meses.
O enfraquecimento do polo político do
bolsonarismo não significa o fim da polarização social. Há vários elementos,
para além de Bolsonaro, que têm favorecido no Brasil e no mundo uma
radicalização de estilo antidemocrático e mais próximo da extrema direita. A
violência e a intolerância, alimentadas nas redes sociais e hoje multiplicadas
para outros espaços sociais, ainda são problemas que devem incomodar os
democratas brasileiros. Reduzir o tamanho e a virulência desses grupos depende
em boa parte do sucesso do governo Lula, mas não só em termos de políticas
públicas. Construir uma nova visão coletiva de país e reaproximar as pessoas e
famílias de uma cultura de convivência saudável são igualmente questões que
envolvem a forma como o novo presidente vai governar.
A governança de alta intensidade é
praticamente um imperativo frente à investigação e condenação do bolsonarismo
em seus crimes contra a democracia e a humanidade - o genocídio dos Yanomamis é
um dos capítulos mais tristes de toda a história brasileira e uma mácula
universal. Todavia, seguir essa estratégia pode ser extremamente prejudicial em
outras dimensões governamentais. O governo Lula não tem maioria congressual e a
opinião média dos parlamentares está mais para o centro (ou mesmo centro-direita)
do que as preferências dos petistas. Uma parcela decisiva do eleitorado que
elegeu o novo governo o fez contra Bolsonaro e ainda desconfia bastante - para
dizer o mínimo - do petismo. O mercado financeiro não é dono da verdade, nem
pode governar o país, mas pode atrapalhar muito o sucesso de qualquer
presidente.
Além da necessidade de adquirir apoios e de
evitar obstáculos, a estratégia de governar terá de ser mais incremental, e não
imediatista e de alta intensidade, por duas razões. A primeira é que grande
parte das políticas públicas foi destruída pelo bolsonarismo. Num primeiro
momento, a opinião pública fica toda contente porque os rumos estão sendo
mudados e os discursos abandonam a lógica das trevas que imperava
anteriormente. Entretanto, os resultados vão demorar a aparecer porque a tarefa
de reconstrução é hercúlea. É preciso preparar a sociedade para ter mais
paciência e isso não será conseguido usando uma linguagem predominantemente
baseada no confronto.
Mas mesmo que não houvesse a situação de
terra arrasada, políticas públicas bem construídas demandam um tempo maior, por
vezes ultrapassando um único mandato. Dois exemplos podem ilustrar bem esse
argumento. A equipe que lidera o MEC é a melhor que temos hoje para enfrentar
os problemas da educação básica brasileira. Isso quer dizer sucesso rápido? Uma
política como a da escola em tempo integral, que é corretíssima, vai ganhar
corpo ao longo dos próximos quatro anos, no mínimo. No meio desse caminho,
haverá críticas e insatisfações, não apenas da oposição, mas das famílias mais
pobres. Se não houver uma perspectiva incremental e de diálogo permanente com a
sociedade, um bom projeto se enfraquece, e a verdade técnica é derrotada
politicamente.
O outro exemplo é o da polêmica das duas
últimas semanas. A política monetária evidentemente está muito restritiva, algo
que afeta negativamente o país no curto prazo. Os juros são os mais altos do
mundo, e alguns podem mostrar que essas taxas estão descalibradas em comparação
a outros países do mundo - embora outros economistas possam realçar que seria
pior sem essa política, com uma inflação mais persistente, impactando mais
fortemente os mais pobres. Sem querer bater o martelo sobre quem está certo
neste debate, como cientista político posso dizer que a forma política como
será resolvida essa questão é tão importante quanto o conteúdo dela.
As pressões contra taxas de juros e outras
decisões macroeconômicas existem em todas as democracias, inclusive naquelas
onde há um Banco Central independente. Mas é preciso lembrar que qualquer
mudança institucional brusca também tem custos. No caso brasileiro, o BC
autônomo é muito recente e sua construção dependerá da parcimônia e capacidade
de diálogo de todos os atores relevantes, seja do seu presidente, seja do
comandante máximo da nação. Cabe reforçar aqui: não há a menor chance de
quebrar agora essa nova institucionalidade, pois o Executivo federal não tem
maioria congressual para tomar essa decisão, bem como porque as explicações
sobre a alteração tendem a gerar mais perdas econômicas do que as taxas de
juros atuais.
Afora as questões de inexorável urgência ou
vinculadas ao desmantelamento do autoritarismo bolsonarista, deve prevalecer
uma lógica de diálogo, paciência e incrementalismo no governo Lula. O relógio
do mandato do presidente é de quatro anos e isso que vai definir sua
legitimidade última, derivada das eleições. Mudar agora bruscamente e perder lá
na frente é um risco que deve ser levado em conta. Ademais, para sepultar a
polarização que perversamente tem dividido o país, cabe mais, para a maioria
dos temas, o Lulinha Paz e Amor. Quem sugere, de forma aparentemente utópica,
um grupo para negociar a paz na Ucrânia tem tudo para gerar um círculo virtuoso
de conversa, negociação e parceria entre a equipe econômica e o Banco Central.
A questão econômica precisa ser guiada por
um calendário gradualista de mudanças e se sedimentar em amplas conversas com o
Congresso e a sociedade - até porque alguns atores precisarão ser convencidos.
O governo Lula tem toda legitimidade para mudar certos padrões macroeconômicos
que prevaleceram nos últimos anos.
No entanto, é importante escolher a forma
adequada de governança, em seus discursos e atos. Quase sempre as melhores
decisões econômicas derivam da estratégia política correta.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
2 comentários:
A saída do caos de 4 anos criado por Bolsonaro e seu DESgoverno será longa e difícil. As primeiras medidas de Lula estão no caminho certo e mostram uma nova visão de governo e de sociedade!
Muito bom o artigo.
Postar um comentário