sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

José de Souza Martins*: - A falência da Cultura

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Uma livraria não pode se confundir com salsicharia ou supermercado

A decretação da falência da Livraria Cultura é má notícia para a geração que, privada de simpatia pelas livrarias de estilo antigo, se acostumou à concepção de livraria de estilo de supermercado, em que o livro é mais produto e mercadoria do que obra e cultura. Misturado com outros negócios, o livro se transformou em objeto de passatempo, mais para ver do que para ler. A principal Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, na avenida Paulista, com o imenso acúmulo de funções, tornou-se um lugar inóspito e cansativo.

Eu frequentava com a família a Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos. Foi lá que meu neto aprendeu a lidar com livro e a amar os livros. Nunca saíamos de lá sem um pacote de obras. Cada membro da família levava o seu.

Os jovens atendentes eram estudantes. Dificilmente alguém comprava um livro sem conversar com quem o atendia, com informações adicionais sobre o autor e a obra. Isso não acontecia na livraria do Conjunto Nacional, os vendedores poucos e sem tempo.

Quando a livraria do Conjunto Nacional foi ampliada, a do Villa-Lobos encolheu. Não porque os clientes tivessem se transferido para a nova livraria, mas porque procuraram outras alternativas.

Livraria é o tipo de estabelecimento que tem tamanho de referência. Nem pode ser muito pequeno nem pode ser muito grande. Nem pode se confundir com salsicharia nem pode se confundir com supermercado.

Existe uma cultura do livro que é mais ou menos igual nos diferentes países do mundo e que dá às livrarias as características que lhes são peculiares. Conheço livrarias em diferentes lugares, e em vários países a crise é mais ou menos a mesma. Em Cambridge, na Inglaterra, onde morei em duas ocasiões, fui cliente, por muitos anos, da Heffers, uma livraria que tem bem mais de 100 anos. Foi lá o lançamento de um livro de que sou coautor: “Scepticism: Hero and Villain”.

Em certo momento, foi aberta na cidade uma dessas livrarias das grandes, quatro vezes maior que a Heffers, filial de uma rede em que uma das lojas foi até “atriz” de cinema: aparece no filme “O Terminal”, com Tom Hanks.

Cambridge é uma cidade universitária desde 1250. Já era muito velha quando o Brasil foi descoberto. Portanto, lugar de gente que lê muito, cidade de muitos autores, tem o maior elenco de moradores que receberam o Prêmio Nobel em alguma área de conhecimento. No entanto, a livraria enorme fechou depois de poucos anos. A Heffers continua lá.

A livraria grande foi derrotada pelo livro mercadoria, o livro de valor de troca. A Heffers venceu com o livro como obra, de valor de uso. Uma diferença histórica entre objetos ligados à barbárie do primado do lucro e objetos do primado da civilização. De um lado, o livro a serviço do livreiro, de outro o livro a serviço do leitor.

Quando o dono da Livraria Cultura, há alguns anos, foi convidado a falar na Academia Paulista de Letras sobre a crise do livro, deixou em alguns de nós a impressão de que a culpa da crise era o leitor e não da nova concepção de livraria.

Aqui em São Paulo, os mais antigos somos de uma geração que ia às livrarias, relativamente pequenas, do centro, ao menos uma vez por semana, para ver o que havia de novo, dar uma espiada nos livros. Escolher um livro era como escolher a namorada, que podia ser para toda a vida.

Havia um programa na Rádio Gazeta, “A Hora do Livro”, feito por Fernando Soares, professor de língua portuguesa e de literatura no Instituto de Educação Padre Anchieta, e pelo poeta Paulo Bomfim, que dizia seus poemas. Autores eram convidados para falar sobre seus livros. Era ali que ficávamos sabendo das novidades literárias, que tínhamos notícia dos novos autores.

Depois do surto das livrarias-supermercado e de sua crise, estão renascendo as pequenas livrarias, intimistas, como a livraria de “Um Lugar Chamado Notting Hill”, com Julia Roberts e Hugh Grant, um lugar de afeto. Ou “Nunca Te Vi, Sempre Te Amei”, com Anne Bancroft e Anthony Hopkins, o livro e uma livraria de livros usados como elos afetivos entre duas pessoas de diferentes lugares do mundo.

Livrarias pequenas como cenários de grandes valores da condição humana. A livraria como lugar de encontro de sentimentos e não como lugar de encontro de compradores. Lugar de gente e não lugar de coisas.

A falência da Livraria Cultura é o deplorável indício de um grande equívoco em relação ao que é o livro e um grande erro em relação ao que ele não é.

Se olharmos bem veremos que não só em relação ao livro e às livrarias esse engano se difunde e aniquila recintos de civilidade, de encontro e de conforto interior em relação à condição humana. O economismo, felizmente, está sendo derrotado pelo romantismo que nos restitui a nós mesmos.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

4 comentários:

Anônimo disse...

Livros e livrarias são sempre um assunto relevante neste blog!

Anônimo disse...

Muito oportuna essa reflexão. As grandes livrarias me assustam, por causa daquele ímpeto de sair comprando e sem ter oportunidade de verificar se é aquilo mesmo que precisa no momento.

Anônimo disse...

Muito boa seu artigo!. Fiquei muito triste com desaparecimento da Livraria Cultura. Lembranças afetivas das tardes em livrarias são inesquecíveis, livros trazem alimento para alma. Ficarão estas lembranças

ADEMAR AMANCIO disse...

Amo os livros.