Valor Econômico
Talvez as doações de renda ou comida entre
as famílias pobres sejam mais importantes do que pensávamos
Recentemente foi divulgada uma pesquisa
(Vigisan) mostrando que cerca de 33 milhões de pessoas passavam fome no Brasil
entre novembro de 2021 e abril de 2022. Essa pesquisa teve grande repercussão e
deixou a sociedade bastante preocupada. Além disto, várias outras pesquisas
sobre pobreza e desigualdade no Brasil são frequentemente divulgadas, algumas
vezes com dados inconsistentes entre si. Afinal, quantas pessoas são
extremamente pobres no Brasil? Quantas passam fome?
É bem difícil responder estas perguntas, pois não existe uma definição única para medir a pobreza e há vários problemas nos dados existentes. Em tese, para calcularmos o número de pessoas extremamente pobres, precisamos definir uma linha de pobreza. As pessoas com renda familiar per capita abaixo desta linha seriam as extremamente pobres. Mas como definir esta linha? Como não há uma linha oficial de pobreza no Brasil, cada pesquisador tem a sua.
Alguns pesquisadores usam ¼ do salário
mínimo como a linha de pobreza. Mas como o salário mínimo varia todos os anos,
sem relação direta com a variação dos preços dos produtos básicos, a linha de
pobreza pode variar sem que a renda das pessoas tenha mudado. Outros estudos
usam linhas de um ou dois dólares por dia, adotada pelo Banco Mundial. Mas uma
linha fixada em dólares varia com a taxa de câmbio, mesmo que a renda das
pessoas não tenha mudado.
A forma mais correta conceitualmente seria
definir a linha de pobreza extrema como a menor renda per capita necessária
para comprar os alimentos que forneceriam as calorias recomendadas para a
sobrevivência do ser humano com dignidade. Mas esta definição é de difícil
implementação, pois há inúmeros problemas. Em primeiro lugar, há inúmeras
combinações possíveis de alimentos que forneceriam as calorias, cada um com
preço diferente. Além disto, as pesquisas de orçamento familiar têm informações
sobre os alimentos comprados num intervalo de duas semanas e não os
efetivamente consumidos.
Além disto, as pessoas geralmente não
compram os alimentos maximizando as calorias para cada real gasto. As compras
são guiadas pela tradição, pela cultura local e pela propaganda. Os mais pobres
tendem a copiar os padrões de consumo dos mais ricos como sinal de status.
Assim, as famílias gastam muito mais do que o necessário para comprar as
calorias recomendadas, o que é um problema de saúde pública. E uma parte do que
é consumido não é comprado, mas sim resultado de doações ou de produção para
consumo próprio. Por fim, a renda mínima que permitiria que as pessoas
comprassem as calorias necessárias para a sua sobrevivência deveria ser
diferente para cada região, pois as diferenças de custo de vida são enormes.
Assim, vários ajustes são necessários para calcular uma linha de pobreza
apoiada nas pesquisas de consumo.
Após definirmos a linha de pobreza, é
necessário calcular a renda familiar per capita, para assim calcularmos o
número de pobres. Aqui surgem novos problemas. Para fazê-lo, é necessário
esperar as Pnads-Contínuas anuais do IBGE, que contêm a renda de todas as
fontes (não somente do trabalho) das pessoas, mas que só são divulgadas um ano
após o ano corrente. Estudos que não usam a renda de todas as fontes para
calcular a pobreza e desigualdade têm que usar algum método para imputá-la e
podem mostrar um quadro viesado da pobreza e da desigualdade, especialmente
quando os valores das transferências de renda variam muito ao longo do tempo.
Muitos municípios usam o cadastro único
para calibrar o público-alvo de suas políticas públicas, mas a renda declarada
no cadastro demora muito para ser atualizada e é muito volátil.
Por fim, temos as pesquisas que usam a
Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), como a pesquisa Vigisan, que
teve muita repercussão. Estas pesquisas perguntam diferentemente para as
pessoas se elas tiveram alguma dificuldade para se alimentar por falta de
dinheiro nos três meses anteriores à pesquisa. Estas perguntas sempre foram
feitas nas pesquisas domiciliares, mas não tinham muita repercussão. Faz todo o
sentido perguntar diretamente para as famílias se elas passaram fome. No
entanto, a discrepância entre os dados destas pesquisas e as que medem a
pobreza usando a renda causaram espécie.
A figura mostra as diferenças de
comportamento entre as linhas de pobreza que usam dados de renda e as que usam
a Ebia. Elas tinham um nível e trajetórias muito parecidas até a pandemia,
depois descolaram. Por que será que houve este descolamento? Uma explicação
possível é que a pandemia fez com que muitas pessoas perdessem acesso a fontes
informais de alimentos, que faziam com elas pudessem se alimentar em períodos
de desemprego, pois muitos pobres perderam o emprego ao mesmo tempo. Pode ser que
as doações de renda ou comida entre as famílias pobres, uma espécie de seguro
informal, sejam mais importantes do que pensávamos.
A figura mostra que em 2022 a fome medida
pela Ebia aumentou ainda mais. Ainda não temos dados de renda per capita neste
ano para fazermos uma comparação, mas, de qualquer forma, é muito importante
esclarecermos a razão para esta diferença entre as pesquisas que usam a Ebia e
as que usam a renda das pesquisas domiciliares. Faz muita diferença viver numa
sociedade em que 9 ou 33 milhões de pessoas passam fome. E as políticas
públicas necessárias para lidar com estas duas situações são bem diferentes.
Precisamos entender melhor as pessoas extremamente pobres no Brasil.
*Naercio Menezes Filho,
professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da
FEA-USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e Diretor do CPAPI
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