O Globo
Festa de 2023 será de retomada, reconexão,
reencontro
Não são segredos minha paixão pelo carnaval
das escolas de
samba, meu respeito pelos profissionais que o realizam, meu amor
pela cidade que inventou e abriga a festa, o Rio de Janeiro. A fábrica de
sonhos que é a Cidade do Samba, o fervo nas quadras e nas ruas que abrigam
ensaios na temporada de preparação para o espetáculo — bem distribuídas na
Região Metropolitana a ponto de escancararem a viabilidade de planos de
desenvolvimento local quase sempre desprezados pelo poder público — me comovem.
No domingo passado, me peguei emocionada também com as imagens de foliões paramentados
às 6h da manhã para a maratona chamada Cordão do Boitatá.
No álbum dos sambas do desfile fora de época do Grupo Especial, no feriadão de Tiradentes, em abril de 2022, Neguinho da Beija-Flor anunciava no fim da faixa que renderia à agremiação de Nilópolis o vice-campeonato: “Alô, Brasil. Alô, mundo. O carnaval voltou”. Retornara o espetáculo na Marquês de Sapucaí — e também o do sambódromo do Anhembi, em São Paulo. O carnaval, propriamente, no Rio — e Brasil afora — está de volta agora, neste 2023 de pandemia não revogada, mas sob relativo controle. Salve a vacina. Viva o SUS.
O carnaval é a festa mais importante do
Brasil. Importante a ponto de nos definir como nação, como sugeriu o
historiador Luiz Antonio Simas num post recente em rede social. “O Brasil não
inventou o carnaval”, escreveu. “Mas o povo do Brasil se aconchegou de tal
forma à folia, que ocorreu o inverso: foi o carnaval que inventou um país
possível e original, às margens e nas frestas do projeto de horror que nos
constituiu.”
São as delícias dos festejos de Momo que me
aquecem o coração neste 2023 de retomada, reconexão, reencontro.
Como não se emocionar com o povo de Olinda
celebrando o retorno do Homem da Meia-Noite? O calunga mais famoso do carnaval
pernambucano só deixou de atravessar as ladeiras históricas por duas vezes, o
biênio 2021-22, em 91 anos de existência. Ninguém em sã consciência pode ser
indiferente a Daniela Mercury deixando o palco do Mercado Iaô (Ribeira), que
dividia com Margareth Menezes e as Ganhadeiras de Itapuã num domingo de lua
cheia, para ensaiar com os Filhos de Gandhy no Pelourinho. Eu vi.
O que dizer de o Cortejo Afro homenagear
Logunedé, o orixá filho de Oxum e Oxóssi no carnaval da volta; do Olodum
aquecendo os tambores? Não há meio de ser racional com o Ilê Aye retomando a
Noite da Beleza Negra para, depois de um par de anos sem disputa, fazer de Dalila
Santos de Oliveira sua nova Deusa do Ébano.
Numa dezena de dias de férias em Salvador,
no início do mês, testemunhei o efeito viral da “Zona de perigo”, ora tornado
hit do carnaval 2023. Léo Santana apresentou canção e coreografia num
pré-carnaval improvisado na véspera da celebração a Iemanjá, o 2 de Fevereiro,
na casa de Regina Casé e Estevão Ciavatta. Vibrei com meu neto, Martin, em
pleno café da manhã no hotel puxando o coro à moda da hoje titular de um
ressuscitado Ministério da Cultura: “Eu falei faraóóó”.
Uma manifestação cultural que alcança
humanos de 8 meses a 80 anos — e contando — precisa ser reverenciada. São algo
inacreditáveis as imagens da massa pipocando ao som do BaianaSystem no
encerramento do Furdunço, festa que toma as ruas da capital baiana no domingo
anterior ao carnaval. Na Sapucaí, no fim de semana pré-desfiles, as baianas de
branco, sob chuva torrencial, retornaram ao ritual de lavagem da avenida. Oxalá
explica.
No dia derradeiro dos ensaios técnicos,
Grande Rio e Beija-Flor, campeã e vice do carnaval incompleto de 2022, sambaram
como se amanhã não houvesse — e eu com elas. Vai ser lindo revê-las no domingo
e segunda, homenageando, respectivamente, Zeca Pagodinho e as revoluções
populares, bem como suas denominadas coirmãs.
A Mangueira pisará na avenida sob o comando
de sua primeira presidente negra eleita, Guanayra Firmino, para apresentar a
africanidade baiana. A Portela celebrará
o próprio centenário, que é também da festa como conhecemos. Dá orgulho ver a
renovação da festa pela safra de jovens carnavalescos e pesquisadores que
concebem o espetáculo, sob perspectiva afrocentrada, antirracista, de respeito
a tradições religiosas, regionais, culturais. Dá-lhe valorização da negritude,
do Nordeste, dos direitos humanos, da riqueza ambiental.
O carnaval é rico também economicamente.
Neste ano, a Riotur estima que 5 milhões de pessoas circularão pela cidade nos
dias de folia. Na publicação Carnaval de Dados, a Prefeitura do Rio estima que
a festa movimentará R$ 4,5 bilhões, 12,5% a mais que em 2020. A arrecadação com
ISS nas atividades de turismo deverá ultrapassar R$ 23 milhões, dez vezes a
subvenção destinada às escolas do Grupo Especial. O mês do carnaval é o de
maior receita tributária do tipo.
É duro pensar que a festa das delícias tem
suas dores. Muitas. Dois anos de pandemia e grave crise na cadeia produtiva do
carnaval não serviram para poder público e organizadores planejarem o fim das
mazelas, a diminuição das assimetrias. O carnaval voltou também com a Sapucaí
inundada, se chove forte; com agremiações do Rio e de São Paulo tendo o ano de
trabalho destruído pela falta de espaço adequado para abrigá-las das
intempéries. Os supercamarotes do sambódromo carioca continuarão perturbando o
samba com o bate-estaca da música eletrônica. As arquibancadas ainda se
ressentirão da ausência do povo que ama escola de samba, mas não pode pagar
pelos ingressos.
As rainhas negras das baterias, dançarinas
de primeira, seguirão invisibilizadas por celebridades de cintura dura, como
tem denunciado a eterna Quitéria Chagas, imperiana de fé. Mariene de Castro não
cantará no carnaval de Salvador, exclusão imperdoável. Assim se passaram dois
anos. Parafraseando o maestro Tom Jobim, tudo continua lindo, mas uma m**da;
tudo uma m**da, mas lindo.
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