sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Fernando Abrucio* - Alta tensão atrapalha o governo

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Para sepultar a polarização que perversamente tem dividido o país, cabe mais, para a maioria dos temas, o Lulinha Paz e Amor

A intentona golpista de 8 de janeiro teve um duplo efeito sobre o governo Lula. O primeiro foi o fortalecimento do presidente eleito, porque ficou nítido o golpismo armado pelo bolsonarismo, o que geraria impactos deletérios não só para o petismo como ainda para o destino de todo o país. De lá para cá, Bolsonaro e seus aliados só têm recebido notícias ruins, inviabilizando qualquer oposição mais radical pelo menos nos próximos dois anos. A luta contra a extrema direita se dá num clima de alta tensão, típico de momentos de crise ininterrupta.

Manter-se nessa atmosfera tensa a todo momento, contudo, tende a atrapalhar a governabilidade e a tomada de decisões do governo federal. E é este o segundo efeito da intentona golpista que deve ser evitado. O governo Lula vai ter, portanto, que separar essas duas dimensões na lógica de seu mandato: a da luta contra o bolsonarismo extremista e a da governabilidade mais ampla.

Desmascarar e punir uma extrema direita que atentou contra a democracia, desrespeitou princípios básicos de direitos humanos contra seus próprios cidadãos e, como fica cada vez mais claro, praticou delitos de corrupção para se manter no poder exige um tipo específico de estratégia, mais duro e sem concessões. Transportar esse modo para o dia a dia do governo, num momento em que o PT precisa de um apoio partidário e social mais amplo, pode ser um tiro no pé. Uma outra forma de fazer política, mais ponderada e incrementalista, terá de ser adotada para a governabilidade mais geral.

Evidente que a luta contra o bolsonarismo golpista não terminou. Há muito a investigar sobre os preparativos e o apoio ao golpe, bem como sobre uma série de ações do governo anterior. Trata-se de um jogo com vários atores, como o STF, o TSE, o Congresso Nacional, o Ministério Público Federal e o Executivo Federal, com vários órgãos internos de controle participando desse processo. Todos querem cooperar e punir os males provocados pelas lideranças e golpistas bolsonaristas.

Mais do que isso, o intuito é dar uma punição exemplar, porque há um sentimento de indignação na maior parte da sociedade brasileira contra os crimes cometidos por Bolsonaro e seus aliados extremistas. Por isso, nesta arena de ação política, o clima é de alta tensão, pois é preciso evitar que o país chegue novamente ao caos dos últimos quatro anos.

Há uma onda política impulsionada pelo ato golpista de 8 de janeiro que terá um efeito arrasador sobre o bolsonarismo. Como comparação histórica, criou-se uma situação política similar aos efeitos da Lava-Jato sobre o petismo na década passada, embora o mais provável é que o impacto agora seja muito maior, pois Bolsonaro tende a se tornar inelegível, um número muito maior de apoiadores será condenado e preso, podendo chegar inclusive ao núcleo familiar do ex-presidente, e muitos fatos escondidos ou não investigados nos últimos anos virão à tona, com enorme potencial explosivo - se Bolsonaro tiver de responder a cortes internacionais por crimes contra os direitos humanos, aí até a prisão de Lula será um evento menor. Politicamente, os bolsonaristas poderão ter no pleito municipal de 2024 um resultado tão ruim ou pior do que o PT teve em 2016 e 2020.

Não é por acaso que boa parte dos políticos mais moderados que apoiaram Bolsonaro quer se livrar do seu antigo líder. Diversos parlamentares e políticos do PP, do Republicanos e até do PL pretendem não só votar com o governo, como também pleiteiam espaço no Executivo. O resultado das eleições nas duas casas congressuais realçou esse clima e a postura extremista de oposição tende a se enfraquecer ainda mais nos próximos meses.

O enfraquecimento do polo político do bolsonarismo não significa o fim da polarização social. Há vários elementos, para além de Bolsonaro, que têm favorecido no Brasil e no mundo uma radicalização de estilo antidemocrático e mais próximo da extrema direita. A violência e a intolerância, alimentadas nas redes sociais e hoje multiplicadas para outros espaços sociais, ainda são problemas que devem incomodar os democratas brasileiros. Reduzir o tamanho e a virulência desses grupos depende em boa parte do sucesso do governo Lula, mas não só em termos de políticas públicas. Construir uma nova visão coletiva de país e reaproximar as pessoas e famílias de uma cultura de convivência saudável são igualmente questões que envolvem a forma como o novo presidente vai governar.

A governança de alta intensidade é praticamente um imperativo frente à investigação e condenação do bolsonarismo em seus crimes contra a democracia e a humanidade - o genocídio dos Yanomamis é um dos capítulos mais tristes de toda a história brasileira e uma mácula universal. Todavia, seguir essa estratégia pode ser extremamente prejudicial em outras dimensões governamentais. O governo Lula não tem maioria congressual e a opinião média dos parlamentares está mais para o centro (ou mesmo centro-direita) do que as preferências dos petistas. Uma parcela decisiva do eleitorado que elegeu o novo governo o fez contra Bolsonaro e ainda desconfia bastante - para dizer o mínimo - do petismo. O mercado financeiro não é dono da verdade, nem pode governar o país, mas pode atrapalhar muito o sucesso de qualquer presidente.

Além da necessidade de adquirir apoios e de evitar obstáculos, a estratégia de governar terá de ser mais incremental, e não imediatista e de alta intensidade, por duas razões. A primeira é que grande parte das políticas públicas foi destruída pelo bolsonarismo. Num primeiro momento, a opinião pública fica toda contente porque os rumos estão sendo mudados e os discursos abandonam a lógica das trevas que imperava anteriormente. Entretanto, os resultados vão demorar a aparecer porque a tarefa de reconstrução é hercúlea. É preciso preparar a sociedade para ter mais paciência e isso não será conseguido usando uma linguagem predominantemente baseada no confronto.

Mas mesmo que não houvesse a situação de terra arrasada, políticas públicas bem construídas demandam um tempo maior, por vezes ultrapassando um único mandato. Dois exemplos podem ilustrar bem esse argumento. A equipe que lidera o MEC é a melhor que temos hoje para enfrentar os problemas da educação básica brasileira. Isso quer dizer sucesso rápido? Uma política como a da escola em tempo integral, que é corretíssima, vai ganhar corpo ao longo dos próximos quatro anos, no mínimo. No meio desse caminho, haverá críticas e insatisfações, não apenas da oposição, mas das famílias mais pobres. Se não houver uma perspectiva incremental e de diálogo permanente com a sociedade, um bom projeto se enfraquece, e a verdade técnica é derrotada politicamente.

O outro exemplo é o da polêmica das duas últimas semanas. A política monetária evidentemente está muito restritiva, algo que afeta negativamente o país no curto prazo. Os juros são os mais altos do mundo, e alguns podem mostrar que essas taxas estão descalibradas em comparação a outros países do mundo - embora outros economistas possam realçar que seria pior sem essa política, com uma inflação mais persistente, impactando mais fortemente os mais pobres. Sem querer bater o martelo sobre quem está certo neste debate, como cientista político posso dizer que a forma política como será resolvida essa questão é tão importante quanto o conteúdo dela.

As pressões contra taxas de juros e outras decisões macroeconômicas existem em todas as democracias, inclusive naquelas onde há um Banco Central independente. Mas é preciso lembrar que qualquer mudança institucional brusca também tem custos. No caso brasileiro, o BC autônomo é muito recente e sua construção dependerá da parcimônia e capacidade de diálogo de todos os atores relevantes, seja do seu presidente, seja do comandante máximo da nação. Cabe reforçar aqui: não há a menor chance de quebrar agora essa nova institucionalidade, pois o Executivo federal não tem maioria congressual para tomar essa decisão, bem como porque as explicações sobre a alteração tendem a gerar mais perdas econômicas do que as taxas de juros atuais.

Afora as questões de inexorável urgência ou vinculadas ao desmantelamento do autoritarismo bolsonarista, deve prevalecer uma lógica de diálogo, paciência e incrementalismo no governo Lula. O relógio do mandato do presidente é de quatro anos e isso que vai definir sua legitimidade última, derivada das eleições. Mudar agora bruscamente e perder lá na frente é um risco que deve ser levado em conta. Ademais, para sepultar a polarização que perversamente tem dividido o país, cabe mais, para a maioria dos temas, o Lulinha Paz e Amor. Quem sugere, de forma aparentemente utópica, um grupo para negociar a paz na Ucrânia tem tudo para gerar um círculo virtuoso de conversa, negociação e parceria entre a equipe econômica e o Banco Central.

A questão econômica precisa ser guiada por um calendário gradualista de mudanças e se sedimentar em amplas conversas com o Congresso e a sociedade - até porque alguns atores precisarão ser convencidos. O governo Lula tem toda legitimidade para mudar certos padrões macroeconômicos que prevaleceram nos últimos anos.

No entanto, é importante escolher a forma adequada de governança, em seus discursos e atos. Quase sempre as melhores decisões econômicas derivam da estratégia política correta.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

2 comentários:

Anônimo disse...

A saída do caos de 4 anos criado por Bolsonaro e seu DESgoverno será longa e difícil. As primeiras medidas de Lula estão no caminho certo e mostram uma nova visão de governo e de sociedade!

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo.