sexta-feira, 28 de abril de 2023

José de Souza Martins* - Os indígenas civilizam o Brasil

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Estamos vendo os frutos de um movimento que os torna diferentes de quase todas as minorias que vêm afirmando em sua identidade a proposta de uma sociedade brasileira da diversidade

As populações indígenas, desde os anos 1960, têm tido uma presença crescente e diversificada na atenção dos brasileiros. À medida que se disseminou sua tragédia, a do contato com a barbárie dos falsos representantes da civilização, tornaram-se crescentemente conhecidos e cada vez mais admirados e respeitados. Os indígenas brasileiros estão anexando o Brasil à pluralidade do mundo civilizado.

Tribos desconhecidas foram descobertas e tiveram seu primeiro encontro com o homem branco. Não raro trágico. Justamente em dias passados, ao redor do Dia do Indígena, a “Folha de S. Paulo” publicou extensa matéria de Leão Serva e de Rogério Assis sobre o encontro, em 1973, dos agentes da Funai - Fundação Nacional do Índio, com os krenhakarore, na Serra do Cachimbo, na região da divisa do Mato Grosso com o Pará. Um encontro emblemático do desencontro e do desrespeito pelos nativos.

Descobriu-se que os krenhakarore, que a mídia popularizara como índios gigantes, chamavam-se Panará. Lembro-me do dia, naquele ano, em que um jornal publicou uma fotografia em preto e branco de um jovem lindíssimo, meio escondido na mata, olhando para os brancos que se aproximavam. A saga da aproximação e da iminência do encontro fora noticiada seguidamente.

Na verdade já estava começando o inferno dos Panará, que se estenderia pelos seguintes 25 anos. Todas as maldades e brutalidades que brancos têm sido capazes de cometer contra as populações indígenas os vitimaram. Começou com a gripe e a pneumonia. Depois, a fome decorrente da invasão do território, a mendicância à beira da estrada por um bocado de comida, a prostituição.

Foi tantíssima a desgraça branca que sobre eles se abateu, que seus inimigos tradicionais, os txukahamãi, os receberam e abrigaram no Xingu. E foi tanta a proteção que lhes deram, que os anularam. Teve a Funai de removê-los para uma área de seu território ancestral onde pudessem voltar a ser eles mesmos.

Um dos aspectos mais significativos desse acontecimento foi a descoberta, pelos indígenas, de que eles próprios não são seus inimigos. Inimigo é quem os priva do território ancestral e os priva de si mesmos.

Por esse tempo, quando eu fazia pesquisa em Rondônia, houve o encontro dos brancos com os suruí, que na verdade se denominam Paíter, gente. O cacique à frente de um assustado grupo dos seus aproximou-se, levantou uma das mãos para os recém-chegados e saudou-os: “Branco, eu te amanso”.

Diferentemente de uma concepção autoindulgente do branco sobre seu encontro com o indígena, no Brasil existe uma interpretação indígena do contato, em que o branco é bicho e o índio é gente. Aracy Lopes da Silva, da USP, grande estudiosa dos xavante, do Mato Grosso, lembra da dificuldade que eles tiveram para classificar os brancos entre os animais do mundo. E concluíram que pertencem à família das onças, um animal predador, que mata, come um pedaço da caça e abandona o resto.

Não é casual que os Parkatejê, do Pará, na época uma tribo em estado terminal, tenham pedido à antropóloga Iara Ferraz, que foi viver com eles, para estudá-los, que lhes explicasse como funciona a cabeça do branco e assumiram seu destino.

Antropólogos das universidades brasileiras dessa época inverteram a perspectiva antropológica, deixando-se estudar pelos indígenas para que preparassem o grande evento de sua história. Dominar os códigos e a mentalidade do branco e se propor para valer à sociedade branca como protagonistas, senhores de cultura e sujeitos da história.

Estamos vendo agora os frutos desse decisivo movimento para civilizar os brancos, o que os torna completamente diferentes de quase todas as demais minorias que vêm afirmando em sua identidade a proposta de uma sociedade brasileira da diversidade. Um outro Brasil.

Na composição do governo democrático que foi eleito em 2022 e tomou posse no dia 1º de janeiro, pela primeira vez na história do país, indígenas assumiram ministérios e secretarias.

Joenia Wapichana, de Roraima, tornou-se deputada federal. Fez há alguns anos um discurso em sua língua no STF em defesa dos direitos territoriais de seu povo. Txai Suruí, de Rondônia, é poeta e articulista da “Folha de S. Paulo”. O xamã Davi Kopenawa, Yanomami, é escritor, autor de um best-seller, “A queda do céu”. Escritores, também, são vários outros indígenas, como Daniel Munduruku e Ailton Krenak.

Diversamente do que aconteceu com os poetas negros, como mostrou o sociólogo Roger Bastide, da USP, que fizeram excelente poesia de branco, as necessidades expressionais dos indígenas estão se manifestando como poética e visão de mundo indígenas, pluralidade do Brasil, negação e superação da tirania do único.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

Um comentário:

Mais um amador disse...

O mercado é inclusivo. A tudo e a todes.