Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Estamos vendo os frutos de um movimento que
os torna diferentes de quase todas as minorias que vêm afirmando em sua
identidade a proposta de uma sociedade brasileira da diversidade
As populações indígenas, desde os anos
1960, têm tido uma presença crescente e diversificada na atenção dos
brasileiros. À medida que se disseminou sua tragédia, a do contato com a
barbárie dos falsos representantes da civilização, tornaram-se crescentemente
conhecidos e cada vez mais admirados e respeitados. Os indígenas brasileiros
estão anexando o Brasil à pluralidade do mundo civilizado.
Tribos desconhecidas foram descobertas e tiveram seu primeiro encontro com o homem branco. Não raro trágico. Justamente em dias passados, ao redor do Dia do Indígena, a “Folha de S. Paulo” publicou extensa matéria de Leão Serva e de Rogério Assis sobre o encontro, em 1973, dos agentes da Funai - Fundação Nacional do Índio, com os krenhakarore, na Serra do Cachimbo, na região da divisa do Mato Grosso com o Pará. Um encontro emblemático do desencontro e do desrespeito pelos nativos.
Descobriu-se que os krenhakarore, que a
mídia popularizara como índios gigantes, chamavam-se Panará. Lembro-me do dia,
naquele ano, em que um jornal publicou uma fotografia em preto e branco de um
jovem lindíssimo, meio escondido na mata, olhando para os brancos que se
aproximavam. A saga da aproximação e da iminência do encontro fora noticiada seguidamente.
Na verdade já estava começando o inferno
dos Panará, que se estenderia pelos seguintes 25 anos. Todas as maldades e
brutalidades que brancos têm sido capazes de cometer contra as populações
indígenas os vitimaram. Começou com a gripe e a pneumonia. Depois, a fome
decorrente da invasão do território, a mendicância à beira da estrada por um
bocado de comida, a prostituição.
Foi tantíssima a desgraça branca que sobre
eles se abateu, que seus inimigos tradicionais, os txukahamãi, os receberam e
abrigaram no Xingu. E foi tanta a proteção que lhes deram, que os anularam.
Teve a Funai de removê-los para uma área de seu território ancestral onde
pudessem voltar a ser eles mesmos.
Um dos aspectos mais significativos desse
acontecimento foi a descoberta, pelos indígenas, de que eles próprios não são
seus inimigos. Inimigo é quem os priva do território ancestral e os priva de si
mesmos.
Por esse tempo, quando eu fazia pesquisa em
Rondônia, houve o encontro dos brancos com os suruí, que na verdade se denominam
Paíter, gente. O cacique à frente de um assustado grupo dos seus aproximou-se,
levantou uma das mãos para os recém-chegados e saudou-os: “Branco, eu te
amanso”.
Diferentemente de uma concepção
autoindulgente do branco sobre seu encontro com o indígena, no Brasil existe
uma interpretação indígena do contato, em que o branco é bicho e o índio é
gente. Aracy Lopes da Silva, da USP, grande estudiosa dos xavante, do Mato
Grosso, lembra da dificuldade que eles tiveram para classificar os brancos
entre os animais do mundo. E concluíram que pertencem à família das onças, um
animal predador, que mata, come um pedaço da caça e abandona o resto.
Não é casual que os Parkatejê, do Pará, na
época uma tribo em estado terminal, tenham pedido à antropóloga Iara Ferraz,
que foi viver com eles, para estudá-los, que lhes explicasse como funciona a
cabeça do branco e assumiram seu destino.
Antropólogos das universidades brasileiras
dessa época inverteram a perspectiva antropológica, deixando-se estudar pelos
indígenas para que preparassem o grande evento de sua história. Dominar os
códigos e a mentalidade do branco e se propor para valer à sociedade branca como
protagonistas, senhores de cultura e sujeitos da história.
Estamos vendo agora os frutos desse
decisivo movimento para civilizar os brancos, o que os torna completamente
diferentes de quase todas as demais minorias que vêm afirmando em sua
identidade a proposta de uma sociedade brasileira da diversidade. Um outro
Brasil.
Na composição do governo democrático que
foi eleito em 2022 e tomou posse no dia 1º de janeiro, pela primeira vez na
história do país, indígenas assumiram ministérios e secretarias.
Joenia Wapichana, de Roraima, tornou-se
deputada federal. Fez há alguns anos um discurso em sua língua no STF em defesa
dos direitos territoriais de seu povo. Txai Suruí, de Rondônia, é poeta e
articulista da “Folha de S. Paulo”. O xamã Davi Kopenawa, Yanomami, é escritor,
autor de um best-seller, “A queda do céu”. Escritores, também, são vários
outros indígenas, como Daniel Munduruku e Ailton Krenak.
Diversamente do que aconteceu com os poetas
negros, como mostrou o sociólogo Roger Bastide, da USP, que fizeram excelente
poesia de branco, as necessidades expressionais dos indígenas estão se
manifestando como poética e visão de mundo indígenas, pluralidade do Brasil,
negação e superação da tirania do único.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A
Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Um comentário:
O mercado é inclusivo. A tudo e a todes.
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