Folha de S. Paulo
A omissão pode custar caro, ainda mais
quando a radicalização política aponta para o risco de novas insurgências
Testemunhar militares
do GSI,
que deveriam cuidar da segurança do presidente, ciceroneando
golpistas na sede do Executivo dá uma clara dimensão dos desafios em
qualificar nosso sistema de defesa da democracia. Passados 35 anos da nova
ordem constitucional, corpos e práticas autoritárias permanecem insepultas em
órgãos de inteligência e segurança.
O desafio é ainda maior quando constatamos que dispositivos de defesa da democracia e dos direitos fundamentais, como o impeachment, não foram acionados, mesmo em face das graves e sucessivas ofensas aos poderes constituídos. Da mesma forma, o Ministério Público, a quem foi atribuída a função expressa de "defesa da ordem jurídica" e "do regime democrático" (artigo 127 da CF), desapareceu. Essas omissões deixam claro que precisamos corrigir gargalos em nosso sistema de proteção da democracia.
Da agenda de reformas deveriam constar,
necessariamente, os seguintes tópicos.
Rever a atribuição monocrática do presidente
da Câmara dos Deputados, no caso de apreciação de pedido de impeachment,
assim como do procurador-geral da República, nos crimes comuns praticados pelo
presidente da República e demais autoridades com foro no Supremo Tribunal Federal.
Como costuma dizer o ex-ministro Celso de
Mello, numa República não pode haver espaços de poder indevassável a
controle. E quando falamos em poder de expressar a última palavra, essa palavra
deve ser sempre proferida por um colegiado.
Promover uma cuidadosa revisão dos vetos
impostos pelo ex-presidente
Jair Bolsonaro à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito,
aprovada em 2021, sem a qual não teríamos o necessário arcabouço penal para
responsabilizar todos aqueles que se envolveram na intentona de 8 de janeiro e
nos demais atos antidemocráticos. Especial atenção merece o veto ao artigo 359-O,
que estabelecia como crime "promover ou financiar, pessoalmente ou por
interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo
provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para
disseminar fatos falsos e inverídicos, que sejam capazes de comprometer a
higidez do processo eleitoral"; assim como o veto ao artigo 359-Q, que
justamente estabelecia a possibilidade de uma ação penal subsidiária, de
"iniciativa de partido político com representação no Congresso Nacional,
se o Ministério Público não atuar no prazo...", em casos de crimes contra
o funcionamento das instituições democráticas. Por fim, é necessário
urgentemente profissionalizar a Abin e o GSI, expurgando agentes desleais à
Constituição.
São questões difíceis, como aquelas
inseridas na discussão sobre a responsabilização das redes por atos antidemocráticos
ou discursos de ódio que impulsionam. Não podem ficar adormecidas, até que a
próxima crise nos engolfe. A omissão poderá custar muito caro, ainda mais
quando a radicalização política em que imergimos aponta para os riscos de novas
insurgências e insatisfações
com os resultados das urnas.
*****
Fui aluno de Boris
Fausto no Departamento de Ciência Política da USP, no início dos anos
1990. Pela sua lente incisiva, irônica e cortante fui apresentado aos clássicos
do pensamento político brasileiro. E por isso serei eternamente seu devedor.
Muito mais tarde, à mesa de meus queridos amigos Malak e Pedro Paulo Poppovic,
que dão verdadeiro significado à palavra amizade, conheci um Boris doce, mas
que nunca terminava uma frase sem uma pequena ironia. Às vezes me ligava para
discutir um tema jurídico que apareceria em suas colunas
na Folha. No dia seguinte discordava
gentil e publicamente de minhas ideias. A perda só não é maior porque nos legou
uma grande obra intelectual e uma pequena, mas fabulosa, prole.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes,
2023)
Nenhum comentário:
Postar um comentário