Folha de S. Paulo
Proponho questões para esclarecer a posição
oficial do Brasil sobre a invasão russa
Lula tem dois chanceleres: Mauro Vieira,
que comanda o Itamaraty, e Celso Amorim, assessor presidencial. O primeiro
representa a política institucional, que definiu o voto brasileiro na resolução
da ONU exigindo a retirada das forças russas de ocupação da Ucrânia. O segundo
representa a política ideológica, lulista e petista, que renegou aquele voto.
Proponho dez perguntas a eles, destinadas a esclarecer a posição oficial do Brasil sobre a invasão russa:
1) A Carta da ONU e a Constituição
brasileira consagram os princípios da soberania nacional e do respeito à
integridade territorial das nações. É nesses princípios que o Brasil apoia sua
pretensão de ajudar a mediar negociações entre Rússia e Ucrânia?
2) O encontro de Amorim com Putin, em
Moscou, seguido pelas declarações de Lula na visita à China e pela recepção de
Serguei Lavrov em Brasília, paralelamente à ausência de visitas à Ucrânia,
indicam que o Brasil escolheu o lado russo. Ou existe explicação diferente para
o desequilíbrio diplomático?
3) O Tribunal Penal Internacional (TPI), do
qual o Brasil participa, emitiu ordem de prisão contra Vladimir Putin, pelo
crime de deportação forçada de crianças ucranianas para a Rússia. O Itamaraty
não se pronunciou sobre o tema e Amorim visitou Putin pouco depois do gesto do
TPI. O governo brasileiro decidiu ignorar o TPI?
4) Lavrov declarou, em Brasília, que Rússia
e Brasil compartilham "posição similar" sobre a "gênese" da
guerra na Ucrânia. Lula afirmou, repetidamente, que a raiz da invasão russa é o
alargamento da Otan –e, ainda, que os EUA e seus aliados europeus estimulam a
continuidade da guerra. Deve-se concluir disso que, de fato, o governo
brasileiro concorda com a declaração do chanceler russo?
5) Segundo Lula, a responsabilidade pela
guerra cabe, igualmente, a Putin e Zelenski. O governo brasileiro não distingue
o país agressor do país agredido, o invasor do invadido?
6) A Casa Branca classificou as afirmações
de Lula como um alinhamento com a propaganda de guerra russa. Vieira reagiu,
negando a interpretação do governo dos EUA –mas não negou a veracidade da
declaração de Lavrov sobre a similaridade entre as visões russa e brasileira.
Quem cala consente?
7) Tradicionalmente, Amorim abusa do
conceito de soberania, usando-o para evitar qualquer crítica a ditadores amigos
que violam os direitos humanos. Contudo, nega solidariedade à nação cuja
soberania é destruída por uma guerra de agressão destinada a promover anexações
territoriais. Na política externa do governo, soberania é um princípio com
validade geral ou mero álibi utilizado para justificar alinhamentos
ideológicos?
8) A Crimeia é território ucraniano
internacionalmente reconhecido. A própria Rússia reconheceu as fronteiras
ucranianas em tratado firmado em 1994 –pelo qual, aliás, a Ucrânia entregou
suas armas nucleares à Rússia. Com que direito Lula sugere a cessão da Crimeia
à Rússia como condição para futuras e hipotéticas negociações de paz?
9) A Carta da ONU suporta o princípio da
"autodefesa coletiva", isto é, o direito de fornecer ajuda bélica a
nações que resistem a uma invasão não provocada. Sem auxílio militar ocidental,
a Ucrânia já não existiria como Estado independente. A "paz" pela
rendição –é isso que deseja o governo ao criticar tal auxílio?
10) No seu pronunciamento sobre o diálogo
com Lavrov, Vieira mencionou as "preocupações securitárias" russas e
ucranianas mas não se referiu às anexações territoriais russas ou à soberania
ucraniana. Lula pretende realmente ser aceito pela Ucrânia como mediador de
negociações de paz ou simplesmente invoca a palavra paz para legitimar as
narrativas imperiais russas?
O jornalismo adulatório faz, no máximo, as
indagações fáceis. Haverá, ainda, jornalistas dispostos a confrontar os dois
chanceleres com as perguntas difíceis?
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