O Estado de S. Paulo
Há uma incontestável verdade diante da dessintonia entre a Lei de Execução Penal e a realidade: a prisão se tornou um eficiente fator de aumento da criminalidade
Há um aspecto da vida nacional marcado pelo
retrocesso e que gera profundo desalento quanto ao futuro do País. Refiro-me às
condições de vida de milhões de brasileiros. Elas estão piorando a olhos
vistos. Novas expressões da miséria estão chegando às nossas portas. Como
exemplo, temos os moradores de rua e a chamada cracolândia.
Significativa parte da sociedade não se
comove e vem se acostumando a conviver com toda sorte de mazelas que deveriam
cobrir de vergonha especialmente os segmentos mais privilegiados.
Pode-se pensar que o ordenamento legislativo passou ao largo de todos esses problemas sociais e não editou normas a respeito das respectivas situações. Ao contrário, há leis – e boas leis. Basta citar duas: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Execução Penal, que rege o sistema penitenciário.
A questão crucial é precisamente a
diferença entre o que é e o que deveria ser segundo o disposto pelas leis. O
que está no mundo real é captado pelo legislador. Mas o que consta da lei não é
aplicado à realidade. Daí a existência de dois países: o legal e o real.
Essa dicotomia entre o querer do legislador
e a sua execução parece ter as suas raízes fincadas no próprio modo de ser do
brasileiro. Temos dificuldade de nos submeter a normas e regras de conduta. O
jeitinho virou uma prática nacional e criou uma verdadeira cultura da
desobediência. Os pequenos e os grandes desvios de conduta nos levam a
contornar o cumprimento das leis.
Não apenas as que impõem regras de condutas
individuais são desobedecidas, mas também aquelas que são chamadas de leis
programáticas. Estas são editadas para regrar situações específicas que
necessitam de ter suas dificuldades superadas e as suas mazelas sanadas.
Nessas hipóteses, as razões do
descumprimento são outras. Pode-se apontar a inércia do Estado e a
insensibilidade da sociedade. O desinteresse histórico pelas carências sociais
encontra as suas raízes na ausência de solidariedade, no individualismo egoísta
e na rígida divisão das várias camadas sociais, que pouco se comunicam.
O sistema penitenciário é regido por uma
dessas leis, a de Execução Penal. Pois bem, em seu artigo primeiro está gravado
que o seu objetivo é “proporcionar condições para a harmônica integração social
do condenado e do internado”.
Inúmeros dos seus dispositivos estão
voltados para o alcance daquele objetivo. Assim, a lei prevê: a existência de
um Comitê de Classificação composto por psiquiatra, psicólogo e assistente
social; assistências à saúde, jurídica, educacional, religiosa; trabalho
interno e externo; preparação técnica do pessoal penitenciário; apoio ao
egresso; e vários outros comandos voltados ao desiderato de inserção social de
quem cumpriu pena. As normas contidas nessa lei têm como fonte a Constituição
federal.
No entanto, o sistema de proteção ao
encarcerado e ao egresso é sistematicamente descumprido sem nenhum escrúpulo ou
sinalização de futura obediência à lei. Ao contrário, a situação carcerária se
agrava e entra no rol já extenso das trágicas iniquidades sociais.
O Estado se empenha na construção de
prisões, mas não investe no homem preso e não o prepara para a liberdade. A
sociedade, por sua vez, em face do crime, exige o encarceramento como única
resposta a ele. Este lavar de mãos coloca o detento no quase total abandono.
Esquece-se de que as prisões não são perpétuas. O preso se transformará em
egresso e voltará a conviver em sociedade, estando, em face do esquecimento,
com uma carga criminógena superior a quando entrou no sistema. O corpo social
deveria acolher o egresso ao menos por uma questão de autopreservação. Se não
por solidariedade humana, por egoísmo.
Tanto os preceitos da Lei de Execução Penal
não são cumpridos que, dos 900 mil presos no Brasil, 70% já foram clientes do
sistema. Voltam ao cárcere porque a maioria não foi preparada para a liberdade.
Sem apoio, o egresso encontra a família desagregada, são inexistentes as
oportunidades de trabalho e o estigma de ex-presidiário o acompanha. Ele acaba
por não resistir aos apelos do crime organizado e volta a delinquir. Note-se
que, desse total, 45% não foram ainda julgados.
Há uma verdade incontestável em face da
dessintonia entre a lei que regula o sistema penitenciário e a sua realidade: a
prisão se transformou em eficiente fator de aumento da criminalidade. Há uma
trágica equação: mais prisões, mais crimes. Mesmo sendo notória as suas
inumanas e repugnantes condições, a cadeia não constitui fator de inibição da
prática de novos crimes.
O brado da sociedade por mais prisões deve
transformar-se em apelo humanitário para que o Estado atenda a todas as
imposições legais de adequação do sistema penitenciário aos desideratos de
reinserção do preso à sociedade. É imprescindível que o sistema não mais atue
em sentido contrário aos seus próprios objetivos. O Brasil legal precisa se
impor ao Brasil real.
*Advogado
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