terça-feira, 30 de maio de 2023

Marli Olmos - Popular tumultua e esconde interesses

Valor Econômico

Cenário indica que mesmo que o programa do carro popular seja um sucesso, o governo continuará recebendo visitas dos executivos desse setor por um bom tempo

No início de 1993, Itamar Franco acabara de ser empossado presidente da República, depois do impeachment de Fernando Collor de Mello. Numa conversa com a direção da Volkswagen ele teve uma ideia: “Por que vocês não voltam a fabricar o Fusca?”. Os executivos imediatamente concordaram com a sugestão em troca, claro, de incentivos fiscais.

As outras montadoras bateram à porta da Presidência da República para pedir a mesma vantagem. Mas não tinham um Fusca. A Fiat ofereceu seu Uno. Ficou, então, acertado que, além do Fusca, o incentivo valeria para qualquer carro com motor 1.0.

Mas e a Kombi? Não era também popular? Sim, mas não tinha motor 1.0. Fizeram, então, um arranjo que ganhou o apelido de “decreto Kombi” para acomodar esse veículo também.

O IPI do 1.0, do Fusca e da Kombi foi logo reduzido à simbólica alíquota de 0,1%. Antes disso, agosto de 1993, Itamar foi à festa de reinauguração da linha do Fusca em São Bernardo do Campo. Desfilou a bordo de um conversível, tal como fizera, em 1959, no mesmo local, o então presidente Juscelino Kubitschek.

O Fusca conversível nunca foi produzido em série. Foram só dois - um ficou com a Volks e o outro com Itamar. O modelo serviu para dar charme ao evento. E também para mostrar como um simples carro pode marcar a história de um governo. No caso, dois - o de Juscelino e o de Itamar. Não parece haver espaço para consagrar um terceiro.

Essa história é conhecida. Mas nunca é demais relembrá-la diante da polêmica que surgiu com um novo programa de carro popular. A onda de comentários em torno do anúncio do governo, que vai reduzir PIS/Cofins para veículos abaixo de R$ 120 mil, parece não ter fim. E não se pode culpar os analistas que diariamente enchem o noticiário com comentários. A abundância das observações e das indignações surge a medida que o programa carece de fundamentos.

A começar pelo anúncio em si - um programa de subsídio ao transporte individual em meio ao esforço do governo para elevar receita. Chama, ainda, a atenção a insistência em dar mais benefícios a um setor que se acomodou em subsídios.

O plano revela, ainda, falta de sintonia entre ministérios. A Fazenda pediu 15 dias para analisar até que ponto o projeto anunciado pelo Ministério da Indústria poderia contrariar a Lei de Responsabilidade Fiscal.

O anúncio também mexe com um setor sensível a preços. Revelar com antecedência que o valor de um produto vai baixar retrai o consumidor em qualquer situação. No caso de um bem de alto valor, como o automóvel, a notícia paralisa vendas.

No fim de semana, lojistas baixaram preços de carros seminovos em estoque porque sabem que esses veículos vão desvalorizar quando os preços dos novos de até R$ 120 mil caírem entre 1,50% e 10,96%, como anunciou o governo.

Na indústria automotiva, qualquer novidade provoca efeito dominó em toda a cadeia. Na quinta-feira, as autopeças começaram a sonhar com aumento de vendas quando ouviram do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, que o programa privilegiará conteúdo local. Ou seja, ganhará mais incentivo o carro com maior quantidade de peças produzidas no Brasil.

Na sexta, porém, as expectativas esfriaram quando, em entrevista à GloboNews, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o programa vai durar três a quatro meses. Bem mais curto do que o do IPI reduzido para modelos 1.0.

O popular de Itamar não acabou. Quase 30 anos depois, veículos com motor 1.0, mesmo os “turbinados”, têm alíquota de IPI menor que os demais.

A confusão aumenta na medida em que nessa indústria, os contratos de compras são longos e fechados com antecedência. Ilustra essa situação o caso contado por um empresário do setor.

Recentemente, uma grande montadora fez cotação de preços de uma peça para um automóvel que ainda não foi lançado. Mas chegou à conclusão de que comprar da China saía bem mais barato.

A esperança dada por Alckmin de que a nacionalização seria privilegiada foi frustrada no dia seguinte por Haddad ao dizer que o plano é de curta duração. “Ninguém vai fechar com um fabricante local e cancelar quatro meses depois”, diz fonte do setor.

E as montadoras?

A indústria automobilística adora holofotes e costuma ser grata ao governo por qualquer incentivo fiscal. Mas desta vez a redução de impostos para carros mais simples não estava nos planos dessas empresas.

A ideia, na verdade, foi levantada pela Fenabrave, que representa os concessionários. E o presidente Lula gostou.

O popular passou a ter mais destaque do que dois importantes temas que decidirão o futuro do setor no país e sobre o qual as empresas estão divididas.

Um trata da isenção do Imposto de Importação para carros elétricos, em vigor desde 2015. Parte da indústria defende o fim desse benefício enquanto outra parte e importadores querem aumento gradual a partir de 2025.

Outro tema diz respeito aos incentivos fiscais para o setor automotivo no Nordeste e Centro-Oeste, que terminam em 2025. Empresas com fábricas nessas regiões brigam pela extensão do benefício, enquanto que rivais com produção concentrada no Sudeste fazem lobby no sentido contrário.

O cenário indica que, mesmo que o programa do carro popular seja um sucesso, o governo continuará recebendo visitas dos executivos desse setor por um bom tempo.

 

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