PEC da Anistia só faz aumentar o desgaste da política
O Globo
Que garantia terá o eleitor de que nos
próximos pleitos o Congresso não mandará às favas regras que aprovou?
Sem nenhum constrangimento, parlamentares
das mais variadas legendas e inclinações ideológicas aprovaram na terça-feira,
na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) que promove a maior anistia da
História recente a partidos que cometeram irregularidades na prestação das
contas eleitorais ou que descumpriram as cotas destinadas a aumentar a
participação de mulheres e negros nos pleitos.
Ninguém tem o direito de se dizer surpreso com a insólita e oportunista coalizão de apoio à PEC da Anistia, aprovada na CCJ por 45 votos a 10. O arco se estende do líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), ao líder da oposição, Carlos Jordy (PL-RJ), passando por parlamentares de direita, de esquerda e de centro — tudo para livrar as legendas de qualquer mordida nos fartos recursos públicos distribuídos pelos fundos eleitoral e partidário. Apenas o Novo e a federação PSOL-Rede foram contra a proposta.
Não é a primeira vez que os parlamentares
resolvem se conceder uma anistia. No ano passado, o Congresso já promulgara
outra emenda à Constituição anulando punições para legendas que descumpriram o
mínimo de 30% de repasses do fundo para financiar campanhas eleitorais de
mulheres. O mau exemplo deveria ter servido para barrar outras iniciativas do
tipo. Parece, em vez disso, tê-las perpetuado.
Uma análise do Tribunal Superior Eleitoral
sobre gastos partidários em 2017 detectou irregularidades nas prestações de
contas e determinou multas de R$ 40 milhões corrigidas pela inflação. Mas a PEC
da Anistia tudo perdoa. Põe-se uma pedra em cima do condenável uso de laranjas
para fraudar cotas de mulheres, das extravagantes inconsistências nas contas,
como o uso de recursos públicos para comprar toneladas de carne, equipamentos
para churrasqueira, taças de vinho e até construir piscina. A farra com o
dinheiro público, pelo visto, está liberada.
A sociedade tem reagido ao absurdo.
Organizações como Instituto Vladimir Herzog, Transparência Partidária e
Transparência Eleitoral Brasil torpedearam a PEC. O Instituto Não Aceito
Corrupção divulgou nota dizendo que a anistia “rasga a Constituição, estapeia o
povo, pisa no Estado Democrático de Direito e nem sequer deveria ser
admissível”. Mas os parlamentares não dão ouvidos, estão mais preocupados com
seus próprios interesses.
Que garantia o eleitor terá de que nos
próximos pleitos as regras votadas pelo próprio Congresso não serão mandadas às
favas e de que o dinheiro do contribuinte não será queimado noutras
churrasqueiras? Nenhuma. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, alega que as
multas fixadas pela Justiça Eleitoral são abusivas, inviabilizam os partidos e
deveriam ter apenas valor pedagógico. Ora, se com punição as normas já são
desrespeitadas — há sempre a perspectiva de uma anistia —, imagine-se como
seria sem.
A proposta ainda precisa passar por
Comissão Especial antes de ir a plenário. A despeito de contar com amplo apoio
no Congresso, precisa ser barrada. Os partidos deveriam ser responsabilizados
pelos atos que cometeram. Do jeito como está, a PEC da Anistia só acentua o
descrédito que contribui para aventureiros externos ao universo da política
ganharem espaço. O Brasil já sabe bem onde isso pode parar. Da última vez, a
democracia resistiu. Nada garante que resistirá da próxima.
Dissolução de Parlamento no Equador traz
mau augúrio para América Latina
O Globo
É alto o risco de crise constitucional, com
protestos nas ruas e paralisia econômica. Democracia está em risco
Num continente conhecido pela volatilidade
política, o Equador é
candidato a se tornar o maior foco de instabilidade. Na quarta-feira, o
presidente de centro-direita, Guillermo
Lasso, foi o primeiro na História a acionar um dispositivo
constitucional conhecido como “morte cruzada”, que lhe permite dissolver o
Parlamento e governar por decreto durante seis meses. Serão convocadas eleições
gerais para o final desse período. Antes, porém, é considerável o risco de
crise constitucional, com embate contínuo entre Executivo e Judiciário, de
agravamento da crise política com protestos de rua e de paralisia econômica.
Países da região, o Brasil entre eles, devem acompanhar atentamente os
desdobramentos.
Lasso optou pela morte cruzada para
interromper um processo de impeachment com acusações de corrupção que avançava
veloz no Congresso. Desde que assumiu, há dois anos, teve dificuldade de formar
base parlamentar. O atalho pensado para lidar com a dificuldade deu errado. Em
fevereiro, foi derrotado num referendo com oito propostas nas áreas de
segurança, política e economia. Apesar de ter atingido as metas de vacinação na
pandemia e de ter renegociado a dívida com a China, Lasso tem pouco a
apresentar como resultado de sua gestão. Sua aprovação está abaixo de 20%.
A crise de segurança pública, uma das
maiores preocupações dos eleitores, não foi criada por Lasso nem será resolvida
milagrosamente com sua saída. O ano passado foi o mais violento da História do
Equador. A taxa de homicídios chegou a 25,5 por 100 mil habitantes, patamar
próximo ao do México conflagrado entre as máfias do narcotráfico. O Equador,
que antes parecia uma ilha circundada pelo crime organizado, hoje lembra os
piores momentos da narcoguerrilha no Peru ou na Colômbia.
A economia tem se recuperado de forma lenta
depois da pandemia. A pobreza extrema continua acima do nível de 2019. A
desigualdade persiste. É difícil culpar Lasso por tudo, uma vez que ele não
conseguiu aprovar sua agenda liberal diante da oposição no Congresso. A origem
da falta de dinamismo está, ao contrário, nas políticas protecionistas do
passado, que, a exemplo da Venezuela chavista, impediram o Equador de
transformar a riqueza do petróleo em desenvolvimento para a população.
Em junho de 2022, movimentos contrários ao presidente tomaram as ruas, com bloqueio de estradas e ocupação de centros produtores de petróleo. Os opositores, que haviam perdido nas urnas fazia pouco mais de um ano, paralisaram o país por mais de duas semanas. Em 2019, o alvo de protestos fora o então presidente Lenín Moreno, que se viu obrigado a temporariamente sair de Quito. É provável que a democracia equatoriana continue refém de grupos organizados que conseguem parar o país com base na violência. As crises recorrentes e a morte cruzada são indícios de que a democracia está em risco no Equador. Não é bom augúrio para a América Latina.
TSE no metaverso
Folha de S. Paulo
Cassação de Dallagnol extrapola Lei da
Ficha Limpa e abre precedente perigoso
Em uma decisão que consumiu cerca de um
minuto, alcançou a unanimidade e foi comemorada pelo governismo, o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) cassou o
registro da candidatura e, por conseguinte, o mandato de deputado federal de
Deltan Dallagnol (Podemos-PR).
Mais que a velocidade e a união da corte
contra o outrora coordenador da Lava Jato em Curitiba, o que chamou a atenção
no julgamento —motivado por representação da federação composta por PT, PC do B
e PV e do PMN— foi o seu desfecho, e não por boas razões.
Todos os membros do TSE acompanharam o voto
do ministro Benedito Gonçalves, que identificou, na trajetória de Deltan rumo
ao mundo da política, elementos suficientes para caracterizar fraude à lei:
conduta que aparenta legalidade, mas que, no fundo, objetiva driblar alguma
restrição jurídica.
Segundo Gonçalves, Deltan exonerou-se do
cargo de procurador da República cinco meses antes do que seria necessário não
porque desejaria pavimentar sua estrada até o Congresso, mas com a finalidade
de burlar a Lei da Ficha Limpa.
É que a lei, ao listar quem não pode
concorrer a cargos eletivos, inclui os membros do Ministério Público "que
tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo
administrativo disciplinar".
Segundo o argumento de Gonçalves, as
circunstâncias sugerem que Deltan antecipou sua exoneração a fim de evitar que
ao menos 1 dos 15 procedimentos preliminares que existiam contra ele se
transformasse, nos meses seguintes, no processo administrativo disciplinar
(PAD) referido pela lei.
Não se negue à tese o seu engenho; é
possível, até provável, que um dos procedimentos tenha de fato avançado em
algum metaverso, para recorrer a um termo da moda.
Mas, neste universo em que vivemos, o
Judiciário deveria se guiar não por hipóteses, mas por fatos. E os fatos são
simples: não havia
nenhum PAD contra Deltan no momento de sua exoneração, e a lei
menciona de maneira explícita justamente esse tipo de processo.
Note-se que nada há de arbitrário na
escolha do legislador. O PAD foi listado porque, no âmbito da administração
pública, sua instauração pressupõe um juízo quanto à gravidade dos fatos. Ir
além desse ponto numa decisão judicial representa um atropelo do princípio da
separação de Poderes.
Não cabe ao Judiciário criar tantos
pretextos para, sob a dupla pena do paternalismo e do arbítrio, cassar direitos
políticos dos cidadãos —no caso, de um eleito com a maior votação de seu estado
para a Câmara dos Deputados.
As regras, para terem o respeito de todos,
não podem se dobrar ao sabor das circunstâncias. Os que hoje aplaudem a
aplicação voluntariosa da lei não estão livres de, amanhã, serem alvo dessa
mesma sanha punitivista. Deltan que o diga.
Morte cruzada
Folha de S. Paulo
Dissolução do Parlamento no Equador é mais
uma ação extrema em região conturbada
Em tempos de polarização política, a
América do Sul vive turbulências que atingem governos à esquerda e à direita. O
Equador é o mais recente exemplo do segundo caso.
Na quarta-feira (17), o presidente
Guillermo Lasso dissolveu o Parlamento do país e convocou novas eleições.
Além de se tratar de uma decisão extrema, a motivação é deveras questionável.
Lasso quis interromper um processo de impeachment movido devido a acusações de
desvio de dinheiro.
A medida não é ilegal, apesar de traumática
—não à toa, seu apelido é "morte cruzada". Pode ser acionada em três
ocasiões: se o Legislativo assumir funções que não são suas, se obstruir o
governo de modo injustificado ou em caso de grave crise política e comoção
interna. Esta última hipótese foi a alegada pelo presidente.
Assim, Lasso livra-se pela segunda vez de
uma cassação. Em junho de 2002, faltaram 12 votos para a aprovação de seu
impedimento pela Assembleia Nacional.
Grande parte da oposição deve acatar a
decisão, mas o Partido Social Cristão pretende acionar a Corte Constitucional
para anular a medida, dado que não haveria crise política ou comoção no país.
Ainda que a morte cruzada seja legal,
dissoluções de Casas legislativas, que atentam contra o voto popular,
obviamente não são providências triviais. Também era problemática a tentativa
de impeachment, que parecia mais impulsionada pela impopularidade de Lasso do
que por motivos jurídicos.
Segundo a Constituição equatoriana, o
presidente passa agora a governar por decreto por até três meses —prazo para o
novo pleito.
No continente, mandatários de esquerda
também vivem suas agruras —e nem é preciso mencionar o drama sem paralelo da
Venezuela, que há anos vive um caos econômico e humanitário.
No Peru, também para se livrar de uma
espécie de impeachment ("moção de vacância") no final do ano passado,
o então presidente Pedro
Castillo, sem amparo institucional, dissolveu o Congresso e decretou estado de
exceção e reestruturação do Judiciário. Contudo parlamentares
votaram a moção, Castilho foi preso, e a vice Dina Boluarte assumiu o cargo.
Nos dois países, a radicalização da disputa política pode fragilizar a governança e até a democracia.
Decisão esquisita em tempos estranhos
O Estado de S. Paulo
Cassação de Dallagnol numa sentença
juridicamente duvidosa é, afinal, coerente com o espírito da era lavajatista,
em que leis e direitos foram atropelados por imperativos messiânicos
Cassação de Dallagnol é, afinal, coerente
com o espírito da era lavajatista.
Os sete ministros do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) votaram pela cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol
(Podemos-PR) com base na Lei da Ficha Limpa. Apesar de unânime, a decisão é
controversa. Isso porque a Lei é incontroversa: ex-magistrados ou procuradores
podem se candidatar a menos que tenham sido demitidos em decorrência de
processo administrativo ou judicial, ou se exonerado na pendência de processos
administrativos disciplinares (PADs). No caso do ex-procurador não havia nem
uma coisa nem outra. Ele já fora penalizado em dois PADs, mas com advertência e
censura. Quando se exonerou, tramitavam 15 procedimentos, entre reclamações e
sindicâncias, mas ainda não convertidos em PADs.
A interpretação de regras de
inelegibilidade deve ser restritiva, privilegiando maximamente o gozo do
direito fundamental de se candidatar. Por isso, o Ministério Público Eleitoral
e o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (por unanimidade) entenderam que a
candidatura era limpa.
Ainda assim, o relator no TSE, ministro
Benedito Gonçalves, justificou sua decisão alegando “fraude à lei”: a
instauração de um ou mais PADs era iminente e ao se exonerar Dallagnol teria se
valido de um exercício regular de direito para burlar a finalidade da lei. Num
eventual recurso, a Suprema Corte avaliará a legitimidade dessa fundamentação.
Mas, mesmo admitindo-se uma interpretação indevidamente extensiva da lei, a
decisão não contraria seu espírito.
Para garantir que o Ministério Público
cumpra sua missão de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis”, a Constituição multiplicou
suas prerrogativas e lhe conferiu ampla autonomia. Em contrapartida, vedou aos
procuradores “exercer atividade político-partidária”. As restrições eletivas
regulamentam disposições constitucionais que visam a “proteger a probidade
administrativa” e “a legitimidade das eleições” contra “o abuso do exercício de
função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
Em alguns casos, os abusos de operadores da
Lava Jato restaram demonstrados de jure (vide as anulações de processos
julgados por Sérgio Moro por suspeição de motivação política). E, de facto, a
politização da operação foi ampla e notória. Tanto Dallagnol quanto Moro (e até
a esposa deste) a usaram como trunfo para alavancar suas candidaturas. A
operação cujo objetivo era apurar desvios de recursos públicos para fins
particulares tornou-se ela mesma instrumento para promover ambições
particulares: as carreiras políticas de servidores e seus parentes.
A Lava Jato deixou um inestimável legado ao
desbaratar casos escabrosos de corrupção e resgatar a confiança dos brasileiros
na igualdade de todos perante a lei. Mas, ao colocarem-se acima da lei para
combater a corrupção e abusarem de seus poderes para viabilizar seus projetos
políticos e inviabilizar os de adversários, os operadores da Lava Jato traíram
esse legado. Ao punir corruptos, a Lava Jato elevou a Justiça; ao justiçar
políticos, o lavajatismo a desmoralizou.
O corolário aí está. O messianismo
punitivista inflamou os humores anti-instituições que catapultaram o
bolsonarismo ao poder. Dallagnol fez seu discurso de desagravo ladeado por essa
malta. De sua parte, os petistas hoje no poder, sem disfarçar seus ânimos
vingativos e seu próprio messianismo, festejaram a cassação de um representante
eleito com mais de 300 mil votos como mais um “inimigo do povo” abatido.
A revolução, como se diz, devora seus
filhos. Dallagnol usou e abusou da interpretação extensiva das leis para
perseguir políticos, a pretexto de regenerar o País de acordo com suas
convicções delirantes. Sua derrocada política – por uma sentença juridicamente
duvidosa, cuja unanimidade sugere um ânimo punitivista político – é,
ironicamente, um emblema dessa desvirtuação. Que ao menos esse desfecho sirva
de advertência a quem confunde política com messianismo e justiça com vingança.
Intermináveis tropeços na educação
O Estado de S. Paulo
Brasil vai muito mal em avaliação de
alfabetização de crianças; especialistas reunidos em evento do ‘Estadão’
mostram que o problema se estende até os anos finais do fundamental
A divulgação dos resultados da avaliação
internacional Pirls (sigla em inglês de Progress in International Reading
Literacy Study) deu um motivo a mais para o País se preocupar com a baixa
aprendizagem de seus estudantes. Não que seja novidade o Brasil figurar nas
últimas posições de rankings de desempenho educacional, algo que acaba de se
repetir. A questão é que o Pirls tem foco em leitura e compreensão de texto por
alunos do 4.º ano do ensino fundamental, isto é, por crianças em início da
trajetória escolar. E mau desempenho nessa fase, claro, não é bom presságio.
Como noticiou o Estadão, a prova foi aplicada
em 2021, no segundo ano da pandemia de covid-19, em 57 países e territórios.
Único representante da América Latina, o Brasil participou pela primeira vez e
ficou na 52.ª posição, atrás de Kosovo, Omã e Uzbequistão − e distante não só
das nações desenvolvidas, mas também da Turquia, a mais bem colocada no grupo
de países da parte de baixo da tabela, na qual aparecem o Brasil e os demais
países que não lograram atingir sequer a nota média registrada na primeira
edição do teste, em 2001.
Por motivos operacionais, alunos de 14
países fizeram a prova quando já haviam iniciado o 5.º ano do ensino
fundamental, prejudicando a comparação. Nem isso, porém, alivia o fraco
desempenho brasileiro: mesmo considerando unicamente os 43 países e territórios
cujos estudantes estavam no 4.º ano do fundamental por ocasião do exame, o
Brasil permanece entre os últimos colocados, em 39.º lugar.
Os resultados do Pirls devem ser analisados
com redobrada atenção pelas autoridades educacionais. Primeiro, porque revelam
graves deficiências de leitura, um obstáculo e tanto para as futuras
aprendizagens. A nota média obtida pelas crianças brasileiras indica uma
capacidade limitada de compreender textos, com dificuldades para ir além das
informações explicitamente enunciadas. Ora, num mundo em que as escolas
precisam ensinar os alunos a ler nas entrelinhas, definitivamente isso é mau
começo. Não surpreende, então, que o desempenho de cerca de 75% das crianças
brasileiras tenha ficado abaixo da média registrada em Israel − país longe do topo
do ranking liderado por Cingapura.
Os efeitos deletérios da pandemia sobre a
educação, por óbvio, não podem ser ignorados. Menos ainda no Brasil, uma das
nações onde as escolas ficaram mais tempo fechadas e onde o ensino remoto, como
se sabe, deixou a desejar. O fato de que o Pirls tenha sido aplicado em 2021
joga luz sobre as sequelas desse período − e sobre a necessidade de todos os
níveis de governo somarem esforços para reverter esse quadro.
Pensando nisso, o primeiro dia da série de
eventos Reconstrução da Educação, uma iniciativa do Estadão e de longa lista de
entidades parceiras, debateu a urgência da recomposição das aprendizagens. Como
bem lembrou o secretário municipal de Educação do Recife, Fred Amâncio, as
deficiências educacionais já existentes foram agravadas pelo ensino remoto. No
caso da alfabetização, criou-se uma espécie de efeito cascata: “Crianças de
sexto, sétimo, oitavo e até nono ano que não estão plenamente alfabetizadas”,
disse Amâncio. Corretamente, ele chamou a atenção para uma agravante: os
professores que lecionam nos anos finais do fundamental não são alfabetizadores
e estão tendo que lidar com uma situação para a qual não foram preparados.
O cenário é desolador e requer ações
urgentes, sob pena de que um contingente ainda maior de jovens conclua o ensino
fundamental com graves lacunas na sua formação. Evidentemente, não será a
escola de ensino médio que depois conseguirá mudar essa realidade. A propósito,
o professor Tiago Bartholo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
observou, no evento do Estadão, que as perdas decorrentes da longa suspensão
das aulas presenciais afetaram também as crianças da pré-escola, com déficit de
cerca de um ano em seu desenvolvimento cognitivo. O atraso educacional cobra
respostas emergenciais e duradouras. A menos que o Brasil queira manter seu até
aqui interminável pacto com o subdesenvolvimento.
Demanda em alta
O Estado de S. Paulo
Nível de atividade do primeiro trimestre
surpreende positivamente, o que pode adiar queda dos juros
As boas notícias sobre o desempenho da economia
brasileira neste ano, que surpreenderam os especialistas em projeções,
significam, como contraponto, que o tão esperado início do ciclo de redução dos
juros continua distante. O custo do crédito para consumidores e empresas tende
a permanecer alto por meses a fio, enquanto economistas embarcam em um debate
sobre por que a política monetária apertada adotada pelo Banco Central (BC) não
está fazendo com que a inflação caia mais rapidamente, como se poderia esperar.
Todos os principais indicadores de atividades
do primeiro trimestre, segundo a apuração do IBGE, vieram mais fortes do que se
esperava. O exemplo mais recente foi o crescimento do comércio varejista em
março, de 0,8%, contra uma previsão diametralmente oposta do mercado
financeiro, uma queda de 0,8%. Também vieram promissores os resultados mais
recentes da indústria e do setor de serviços.
Com base nesses dados, estão sendo revistas
as projeções para o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano. Na terça-feira, o
Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um informe em que se mostra mais
otimista, passando a projetar um aumento de 1,2%, acima do 0,9% da previsão
anterior. As estimativas dos especialistas do mercado financeiro, recolhidas
semanalmente pelo Banco Central para o Boletim Focus, passaram de uma média
inferior a 0,8% de expansão econômica, no início de fevereiro, para 1,02%,
segundo o levantamento mais recente.
A face complicada desse panorama é o
entendimento, pelo Banco Central, de que a inflação está caindo lentamente
porque há demanda por bens e serviços, alimentando a pressão sobre os preços. O
presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem batido frequentemente nesta tecla.
“Hoje, existem mais componentes de demanda na inflação do que oferta. E as
pessoas podem perceber isso. Se você vai nos aeroportos, você vê que o
aeroporto voltou a estar cheio. Os bares e restaurantes voltaram a estar
cheios”, disse.
No seminário promovido nesta semana pelo BC
reunindo autoridades monetárias de vários países e a principal economista do
FMI, Gita Gopinath, Campos reiterou que o combate à inflação continua sendo um
grande desafio para os bancos centrais, dando a entender, portanto, que não vai
abrir mão da sua política monetária de tentar cumprir a meta de inflação o mais
rapidamente possível. No seu discurso, Gita Gopinath pregou a necessidade de
perseverança no combate à inflação porque, se os índices de preços não caírem
agora, essa batalha será mais dura no futuro.
Com essa perspectiva, o cenário mais provável é de juros elevados, que gradualmente devem corroer as atividades econômicas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seus ministros e outras pessoas da equipe econômica vão continuar dando murro em ponta de faca nas críticas ao BC por manter a taxa Selic em 13,75%, das mais elevadas do mundo pela maioria dos critérios. Como este jornal tem defendido, o caminho para crescimento econômico expressivo e duradouro passa pela adoção por Brasília de uma política fiscal responsável e sustentável.
Novo regime fiscal poderá gastar mais do
que permite
Valor Econômico
Há indícios de que haverá uma aprovação
tranquila do novo regime fiscal pela Câmara, sem sinal de sobressaltos no
Senado
O novo regime fiscal proposto pelo governo
Lula pretende começar com “pegadinhas” que, se aprovadas pelo Congresso,
contribuem para desmoralizá-lo logo de início e reforçam as suspeitas de que
ele não será cumprido. O relator do projeto de lei complementar 93, deputado
Claudio Cajado, preencheu lacunas importantes da nova estrutura, acrescentando
compensações pelo descumprimento das metas que simplesmente não existiam.
Atendeu a pedidos do governo, no entanto, ao afrouxar os gastos.
Como informou O Globo (16 de maio), foram
incluídos dois expedientes que limitam a austeridade no início de implantação
do novo regime. Uma delas é a que estabelece que, independentemente do
mecanismo fixado no projeto de lei, as despesas poderão ter avanço real de 2,5%
em 2024, o máximo permitido, desobedecendo o preceito de que elas evoluam no
máximo a 70% da variação real das receitas. A regra do novo regime estabelece
um avanço real de gastos em qualquer circunstância, de 0,6% a 2,5%, mesmo no
caso em que haja frustração de receitas e a meta de superávit primário (ou
déficit) não seja atingida.
Como a arrecadação subiu bastante de julho
de 2021 a junho de 2022 e está desacelerando em função do desaquecimento da
economia, o cumprimento das regras indica, segundo cálculos de economistas, que
os gastos, na largada do plano fiscal, poderiam crescer algo em torno de 1%
acima da inflação.
A justificativa dada pelo relator,
reproduzindo palavras dos interlocutores do governo, é a que deveria haver uma
compensação pela queda da arrecadação no período abrangido pela nova regra
fiscal, de julho de 2022 a junho deste ano, decorrente da desoneração dos
combustíveis. O argumento é desarrazoado.
O governo Lula teve a chance de eliminar a
desoneração e elevar as receitas seis meses depois, logo que assumiu, mas, por
motivos políticos, não o fez em janeiro. Essa foi, aliás, a primeira derrota
pública logo na estreia do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Lula prorrogou
a desoneração de PIS-Pasep do álcool e da gasolina por 60 dias, mas a manteve
por um ano para o diesel, biodiesel, gás de cozinha e gás natural até 31 de
dezembro do corrente ano. O governo poderá então gastar mais em 2024 por uma
perda de arrecadação que poderia interromper logo no começo do mandato.
Este não foi o único ajuste favorável ao
governo aceito pelo relator, aliado e indicado pelo presidente da Câmara dos
Deputados, Arthur Lira (PP-AL). O período de cálculo do IPCA, que permitirá
determinar o aumento das receitas e dos gastos, foi mudado. Pela proposta
governista, seria utilizado o índice já apurado no ano até julho e se estimaria
o dos meses restantes. Cajado fez coincidir os prazos da apuração da receita
líquida com o da inflação. Caso a inflação seja maior do que a que foi
utilizada na confecção do orçamento, o governo poderá realizar gastos
correspondentes no decorrer do ano seguinte. Se a inflação for menor, não
haverá cortes.
O governo Bolsonaro tentou fazer uma
gambiarra para gastar mais, estendendo em 2022, sob o teto de gastos, o período
de apuração da inflação, que encerrava em junho, para dezembro. A mesma coisa
ocorrerá agora com o orçamento do segundo ano do mandato de Lula. O IPCA deve
continuar caindo até junho, quando, em 12 meses, conforme a regra, deverá ficar
um pouco abaixo de 4%. Mas, com a saída das deflações de julho, agosto e
setembro do índice, ele encerrará o ano bem perto de 6%.
Com os dois mecanismos contemplados pelo
relator, o governo Lula poderá gastar mais em 2024, depois de obter de Lira a
aprovação da PEC de Transição com aumento de R$ 168 bilhões de despesas. Os
cálculos sobre o montante extra variam de R$ 40 bilhões a R$ 80 bilhões. Esse
valor incorpora-se ao saldo de despesas que será corrigido no exercício
seguinte. O relator argumenta que a Consultoria de Orçamento previa avanço de
3,6% nas receitas, caso não houvesse desoneração. Com ela, haverá alta de 2,9%,
o que se traduz em aumento real de despesas de 1,9%. Segundo ele, houve
acréscimo de 0,6%, algo como R$ 12 bilhões. Mas o aumento da inflação, de quase
dois pontos percentuais, elevará a permissão de despesas em cerca de R$ 40
bilhões.
Os dois “presentes” dados pelo
intermediário de Lira ao governo Lula indicam compromisso firme de que haverá
uma aprovação tranquila do novo regime fiscal pela Câmara, sem sinal de
sobressaltos no Senado.
Cajado, por outro lado, criou amarras no
novo regime que o governo preferia não ter. O descumprimento das metas no
primeiro ano será seguido de restrições, como proibição de criação de novas
despesas obrigatórias, concessão de novos subsídios etc. Se o mesmo ocorrer
pela segunda vez, serão proibidos aumentos e reajustes para o funcionalismo.
A licença ampliada para gastar torna mais
difícil zerar o déficit em 2024, como previsto no novo regime fiscal. O governo
precisava arrumar receitas de mais de R$ 100 bilhões para que isso ocorra e,
agora, terá de se virar para conseguir bem mais que isso. O ajuste fiscal
proposto, que já parecia feito com má vontade, torna-se menos crível.
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