O Globo
Para o coautor de ‘Como as democracias
morrem’, se o ex-presidente voltar, será um autocrata autoritário, movido a
esteroides
Sempre houve tempos de cinismo
generalizado, quando a vida em sociedade ou nosso mundo interior se sentem
atropelados por um fluxo ininterrupto de reveses. O artista belga René Magritte
(1898-1967), órfão de mãe suicida e testemunha da desumanidade de duas guerras
mundiais, conseguiu descobrir uma forma alternativa de ser, de viver e de
criar. Na contramão da premissa tóxica de que, se você se concentra no pior,
você estará mais preparado para a eventualidade de alguma calamidade futura.
“Condeno a tirania cultural do pessimismo e do alarmismo”, escreveu em seu
manifesto conhecido como “Surrealismo solar”. E pôs-se a pintar quadros que
chamava de “contraofensiva à feiura rotineira de um mundo desagradável”.
Dias atrás, em Belo Horizonte, houve o lançamento mineiro da nova edição da revista da Academia Brasileira de Letras. O tema do evento, espelhando o conteúdo da publicação, foi o Brasil, com suas mazelas atuais e caminhos possíveis. Um comentário incidental feito pela ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia permaneceu pairando no ar, definitivo. “A vida é muito curta para não ser democrata”, resumiu a magistrada. Magritte aprovaria a concisão.
As coisas não andam fáceis. Nem no Brasil,
onde a cada dia emerge alguma ponta do encruado golpismo bolsonarista, nem nos
Estados Unidos, que está a se debater com uma enrascada quase existencial. Já
deixou de ser considerada completamente implausível uma cena até há pouco tida
como mera fantasia delirante: o presidente eleito americano erguer a mão
direita no dia 20 de janeiro de 2025 e proclamar: “Eu, Donald Trump,
juro solenemente que executarei fielmente o cargo...” .
Seria um pesadelo de proporção planetária o
retorno à Casa Branca desse predador sexual tornado réu, único presidente
americano a ter sofrido dois impeachments, adversário declarado de eleições
justas, de jornalismo independente e normas de convivência cívica, insuflador
de um atentado contra a posse de seu sucessor e agora réu federal no caso do
amontoado de documentos oficiais (dezenas deles de alta voltagem) ilegalmente
surrupiados e escondidos. Foi protagonista do mandato mais truculento e
vergonhoso da História americana.
Tempos atrás, o Washington Post ouviu 21
historiadores, cientistas políticos, especialistas em economia, direitos civis,
inteligência militar e diplomacia sobre um eventual retorno de Trump à Casa
Branca. “A meu juízo, seria o fim da república”, sintetizou o historiador Sean
Wilentz, da Universidade Princeton. “Ela seria derrubada de dentro para fora,
uma ruptura da forma como sempre entendemos os Estados Unidos”. Para Steven
Levitsky, coautor de “Como as democracias morrem” e professor de Harvard, a
índole revanchista de Trump assumiria seu real protagonismo. “Ele virá com tudo
e usará a força do Estado contra seus inimigos. Voltará como um autocrata
autoritário movido a esteroides.” Pela primeira vez, alguns estudiosos — mas
não a grande imprensa — começam a empregar o termo “fascista” para designar a
soldadesca trumpista dos Proud Boys ou do Patriot Front.
É nesse contexto, por sinal, que o governo
do estado de Minnesota, de maioria democrata pela primeira vez desde 2014,
adotou o lema “Let’s f**king go”( algo como “Bora, p**ra”) para aprovar uma
enxurrada de leis progressistas a toque de caixa. Só nos últimos seis meses, a
assembleia estadual reforçou o direito constitucional ao aborto, criou um programa
de licença médica e licença-maternidade, ampliou o controle do acesso a armas,
adotou um ambicioso programa de carbono zero, garantiu direitos sindicais,
aprovou um aumento de impostos para corporações e taxou dividendos. A vida é
muito curta para não ser democrata, concordaria a turma de Minnesota.
Recentemente, coube a dois nomes de primeira grandeza do jornalismo americano abordar com a merecida gravidade o papel da imprensa diante da erosão cotidiana da vida democrática. A.G. Sulzberger, publisher do New York Times e sexto integrante da dinastia que desde 1896 governa o matutino de referência mundial, aceitou ser entrevistado por David Remnick, diretor de redação da cultuada semanal The New Yorker. Recomenda-se, aqui, a quem tenha opinião fechada sobre jornalismo que acesse o link da entrevista, disponível na internet em inglês. É uma aula, sob qualquer ângulo. Remnick cutuca fundo questões centrais, como objetividade e independência. Cita o lendário Walter Lippmann, para quem o jornalismo não deveria estar a serviço de nenhuma causa, nem mesmo a democracia, e pergunta se Sulzberger contrataria algum colunista abertamente trumpista. “Independência nada tem a ver com ‘os dois lados’ ”, responde o publisher. A vida é mesmo curta para saber por onde andar.
Um comentário:
Muito bom.
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