Valor Econômico
Episódios como a ajuda ao setor automotivo
ofuscam as tentativas de se fazer um debate mais maduro sobre o uso do dinheiro
público
Manter as contas públicas controladas não
é, nem deveria ser, preocupação apenas da área econômica do governo. Seus
integrantes afirmam que o novo arcabouço fiscal vai deixar mais evidente como
decisões tomadas pelos três Poderes da República afetarão o retorno que o
Estado brasileiro dará aos seus cidadãos pelos impostos recebidos.
Em conversa com o Valor, o secretário do Tesouro
Nacional, Rogério Ceron, explicou por quê. A regra fiscal atual, o teto de
gastos, é pautada apenas por uma variável: a despesa. Existe em 2023 um limite
de R$ 1,947 trilhão que, em tese, não pode ser ultrapassado. Se o andar da
carruagem apontar para um estouro, bloqueiam-se recursos, como foi feito há
duas semanas.
O novo arcabouço fiscal, em tramitação no Senado Federal, propõe uma nova lógica, pois é formado por três variáveis: receita, despesa e resultado primário. Isso quer dizer que o desempenho das receitas será importante para definir o espaço para as despesas e o saldo das contas públicas.
O arcabouço cria um novo teto de gastos,
não tão rígido como o atual. Vai se mover a cada ano conforme o desempenho das
receitas. Como regra básica, os gastos crescerão ao ritmo de 70% do aumento da
arrecadação.
Assim, o que acontece com as receitas
importa para o ajuste fiscal, destacou o secretário. Se o Judiciário dá uma
decisão que tira bilhões de reais dos cofres públicos, isso tem impacto nos
gastos públicos, exemplificou. Da mesma forma, se o Legislativo quiser cortar
impostos de um determinado setor ou produto, haverá como consequência menos
recursos para o Orçamento.
Ceron não questionou a legitimidade dessas
decisões. Apenas apontou que o impacto delas nas políticas públicas ficará mais
evidente. Nisso, repetiu o que tem dito seu chefe, o ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, desde a transição: o ajuste fiscal não é tarefa só do
Executivo.
Essa tese foi levantada também no governo
anterior, pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes. Em 2019, ele encaminhou ao
Congresso um conjunto de propostas para ajustar as contas públicas, entre elas
a criação de um Conselho Fiscal da República, que igualmente buscava
compartilhar a responsabilidade pelo equilíbrio fiscal.
A grande novidade este ano na cena do
ajuste fiscal é a presença mais forte de decisões judiciais. A vitória do
governo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), num contencioso envolvendo a
dedução de incentivos fiscais estaduais da base de cálculo do Imposto de Renda
e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) fortaleceu a confiança de
que será possível fechar este ano com um déficit menor do que os R$ 228 bilhões
previstos no Orçamento.
Também na área de contenciosos entre fisco
e contribuinte, desta vez na esfera administrativa, está a tentativa do governo
de recuperar o poder de desempatar, a seu favor, disputas no Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Uma medida provisória (MP) que ia nessa
direção perdeu a validade na semana passada. O governo aguarda votação de um
projeto de lei com conteúdo semelhante. Enquanto isso, processos no valor de R$
1,3 trilhão aguardam decisão.
Essa ênfase nas disputas judiciais reflete
a agenda de Haddad, avaliou Manoel Pires, coordenador do Observatório de
Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas
(FGV Ibre). O atual governo decidiu fazer o ajuste fiscal com base no aumento
da arrecadação, e não no corte de despesas. Por isso, o esforço em buscar
receitas novas.
E há muitos bolsos a remexer, porque o
governo anterior focava o ajuste nas despesas. Houve, avaliou Pires, uma certa
leniência pelo lado das receitas.
Um exemplo citado por ele é uma decisão
tomada pelo Judiciário em 2018, que excluiu o Imposto sobre a Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo das contribuições PIS/Cofins.
Provocou uma perda bilionária para a União ao longo dos anos seguintes.
Mas havia um ponto da decisão que não
ficara claro: se os créditos tributários do PIS/Cofins também deveriam perder a
parcela correspondente ao ICMS, o que traria ganho de receitas. Essa
interpretação foi colocada em uma MP, que caducou. Porém, seus dispositivos
pegaram carona em outra proposição e foram aprovados.
Até o momento, Haddad tem sido feliz em
suas iniciativas para aumentar receitas, avaliou Pires. Elas tiveram o cuidado
de não criar pontos de atrito com o sistema tributário que se quer implementar,
com a reforma que a Câmara pretende votar nas próximas semanas.
“A questão é se isso não gera fadiga
política, como o teto gerou”, observou Pires. Dado que o arcabouço opera com
receitas e despesas, não há por que utilizar só um desses elementos, comentou.
Nesta semana, no sentido oposto ao da
estratégia de ajuste fiscal, o governo criou um novo gasto tributário. Abriu
mão de R$ 1,5 bilhão para apoiar a indústria automobilística.
Além disso, segue malparada a relação entre
o Planalto e o Congresso Nacional, por causa da gestão de emendas parlamentares
ao Orçamento.
São episódios assim que ofuscam as
tentativas de se fazer um debate mais maduro sobre o uso do dinheiro público.
Mas já passa da hora de a conversa mudar de nível.
Um comentário:
Lendo e aprendendo.
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