quinta-feira, 1 de junho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Marco temporal prova protagonismo do Parlamento

O Globo

Aprovação na Câmara de lei que restringe demarcações é revés para Executivo e recado ao Judiciário

A aprovação na Câmara da lei que restringe a demarcação de terras indígenas é mais que um revés para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi também um recado do Parlamento ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao país sobre seu papel na democracia brasileira.

O projeto ainda deverá passar pelo Senado, onde não será tratado com a mesma urgência com que foi na Câmara. Mesmo assim, a aprovação pelos deputados reflete um movimento parlamentar sólido contra a agenda do governo nos campos indígena e ambiental. Sua força se faz notar no esvaziamento das pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas e no encaminhamento de outras pautas correlatas.

No caso das demarcações, o projeto aprovado estabelece que povos indígenas terão direito apenas a terras ocupadas ou disputadas até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Com isso, desfaz a dúvida que paira sobre terras ocupadas depois, cuja demarcação é questionada no STF.

Ao afirmar que “são reconhecidos aos índios (…) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, o texto constitucional abre margem a duas interpretações. Na primeira, o verbo usado no presente — “ocupam” — se refere à data de promulgação da Constituição. Na segunda, o tempo verbal se refere à data da leitura do texto, qualquer que seja. Daí os recursos à Justiça, exigindo demarcação de terras ocupadas posteriormente.

Contrariando interpretações anteriores do próprio Supremo, o ministro Edson Fachin, relator de um caso de Santa Catarina que criará jurisprudência a todos os demais, contesta o marco temporal usado para demarcação. Diante da votação que poderia referendar a tese, marcada para a semana que vem, os deputados se anteciparam. “É inaceitável que ainda prevaleça a insegurança jurídica”, afirmou o relator do projeto, Arthur Maia (União-BA).

Se o Congresso decidir a questão estabelecendo explicitamente o marco temporal, hoje apenas implícito na Constituição, o STF terá obrigação de respeitá-lo. Mas isso não encerra a questão. O texto aprovado pelos deputados está repleto de lacunas, e outros itens ensejarão contestação judicial.

Primeiro, estabelecer o marco temporal porá em risco áreas ocupadas posteriormente à Constituição que já tenham sido demarcadas. Também interromperá vários processos de demarcação em andamento. Se a lei continuar omissa a respeito, caberá aos tribunais decidir o que fazer nesses casos. A insegurança jurídica persistirá.

Segundo, o texto afirma que o “usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional”. Isso abre margem à construção de estradas, hidrelétricas e instalações militares sem consulta às comunidades afetadas. O mesmo dispositivo poderia, dizem ambientalistas, abrir brecha à exploração de minérios, num momento em que a prioridade na Amazônia é combater o garimpo ilegal. Tudo isso seria inaceitável.

Em que pesem tais ressalvas, o essencial na discussão é entender que a instituição mais representativa na democracia é o Parlamento. O Executivo é eleito para pôr em marcha seu programa dentro dos limites legais determinados pelo Congresso. E o Judiciário, nunca é demais repetir, não deve se meter a legislar como tem feito. A reação parlamentar, ainda que atabalhoada, é sinal do vigor que deve caracterizar os regimes democráticos.

Agressão a jornalistas no Itamaraty exige mais que protesto contra Maduro

O Globo

Truculência dos seguranças do ditador da Venezuela contou com apoio de profissionais brasileiros

Em qualquer democracia, é inaceitável que jornalistas sejam agredidos em pleno exercício da profissão. Pior ainda quando a agressão é cometida por agentes de um país estrangeiro em território nacional, em parceria com integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Foi o que aconteceu na terça-feira no Palácio Itamaraty, em Brasília, durante entrevista do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Entre as vítimas, a repórter Delis Ortiz, da TV Globo, levou um soco no peito.

“É lamentável que, após todos os casos de violência contra repórteres brasileiros que faziam a cobertura em Brasília nos últimos anos, um episódio semelhante se repita”, afirmou o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech. “Esperamos que os compromissos públicos de apurar as responsabilidades e evitar que tais agressões jamais ocorram novamente se tornem realidade daqui para a frente.” ANJ, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) emitiram notas de repúdio contra o episódio.

No último ano do governo Jair Bolsonaro, as agressões físicas a jornalistas cresceram 38%, segundo pesquisa da Abert. Entre janeiro e dezembro de 2022, houve 47 episódios envolvendo 74 repórteres. Os alvos mais frequentes foram profissionais da televisão. Dois jornalistas foram mortos, o mais conhecido deles, Dom Phillips, assassinado na Amazônia. Com a derrota da extrema direita em outubro, muitos acharam que a hostilidade do público e de agentes de segurança contra a imprensa diminuiria. Por isso a surpresa com o comportamento dos seguranças brasileiros.

Dos que cercam o ditador Maduro não se esperava nada distinto. A Venezuela ocupa a 159ª posição entre os 180 países do ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteira. Depois de assumir o poder em 2013, Maduro adotou postura ainda mais autoritária que Hugo Chávez diante do jornalismo profissional. Um jornalista chegou a ser preso durante entrevista com ele em 2019 no Palácio de Miraflores, sede do governo. Prisões arbitrárias são corriqueiras. Nesse capítulo, a Venezuela não está longe da Rússia de Vladimir Putin.

A promessa do governo brasileiro é “apurar responsabilidades”. Pela gravidade do ocorrido, é pouco. É urgente punição exemplar para os agressores. Não há imagens do momento da agressão, mas há várias testemunhas da truculência dos seguranças, capazes de apontar quem praticou os atos violentos. É preciso haver treinamento de todos os demais para evitar que tais cenas se repitam. Por fim, mas não menos importante, o governo Lula deveria pensar duas vezes antes de voltar a receber ditadores como o venezuelano em solo brasileiro.

A escolha para o STF

Folha de S. Paulo

Lula comprometerá credibilidade da alta corte se indicar ministro por lealdade

Embora frequentemente criticado, o sistema de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal —indicação do presidente da República, submetida ao Senado— não compromete necessariamente a independência da corte.

A melhor prova disso é o julgamento do chamado mensalão, em 2012. Embora o STF fosse à época composto majoritariamente por indicados por presidentes petistas, os magistrados condenaram figuras de relevo do partido, como José Dirceu e José Genoino.

Muito dessa atitude tem a ver com o princípio da vitaliciedade que se aplica ao cargo. Uma vez nomeados, ministros do Supremo só costumam deixar o posto por morte, aposentadoria compulsória aos 75 anos ou vontade própria.

Isso significa que já não precisam agradar a ninguém para conservar seus empregos —e estão livres para se manifestar e votar segundo suas convicções.

Não chega a ser surpresa, pois, que presidentes tenham passado a valorizar a lealdade nas indicações para a corte, buscando candidatos que, pela história pessoal que têm com o governante ou por características da personalidade, pareçam menos propensos a contrariar quem os pôs no cargo.

Esse parece ter sido um critério importante para a escolha, por Jair Bolsonaro (PL), de Nunes Marques e André Mendonça. Eles, de fato, têm se mostrado mais alinhados com preferências do ex-mandatário, embora seja impossível determinar se isso ocorre por proximidade de pensamento, que seria uma razão legítima, ou por proximidade pessoal, o que seria uma perversão do sistema.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já deu todos os sinais de que gostaria de aprofundar ainda mais essa tendência pouco republicana com a indicação de seu advogado pessoal, Cristiano Zanin Martins, para a vaga aberta na corte.

A escolha pode servir aos interesses individuais do presidente, mas será péssima para as instituições. No caso de Zanin, há ainda o agravante de que ele atuou em casos da Lava Jato, o que o impediria de julgar essas ações.

O STF, porém, já manobrou para que Zanin, caso seja confirmado, vá para a Primeira Turma, uma vez que os processos da operação se concentram na Segunda.

Indicações desse tipo acabam se voltando contra a credibilidade do Supremo —o mesmo acontece, aliás, quando ministros do tribunal frequentam convescotes promovidos pelo chefe do Executivo.

Igualmente importante, o Senado, que tem a incumbência de sabatinar e votar os nomes apontados pelo presidente da República, deveria fazer valer suas prerrogativas e garantir que tal processo deixe de ser uma mera formalidade.

Traumas do trânsito

Folha de S. Paulo

Taxa de internação de motociclistas expõe grave problema para a saúde pública

Entre 2011 e 2021, o número de motocicletas circulando no Brasil cresceu 64,7%, de 18 milhões para 30,3 milhões. Como se sabe e boletim do Ministério da Saúde comprova, a escalada elevou a insegurança.

Em 2011, 70,5 mil motociclistas lesionados em acidentes de trânsito foram hospitalizados (3,9 a cada 100 mil habitantes). Já em 2021, foram 115,7 mil (6,1 a cada 100 mil) —aumento de 55% em dez anos.

Apesar de o número de mortos ter permanecido quase estável no período (11,5 mil e 11,1 mil, respectivamente), ele representa 26,6% das fatalidades no tráfego em 2011 e 35,3% em 2021.

Acidentes de trânsito são grave problema de saúde pública no país que, no caso de motocicletas, atinge estratos sociais fragilizados.

Em 2021, as hospitalizações de motociclistas custaram R$ 167 milhões ao Estado. Despesas por traumatismo cranioencefálico grave (TCE) passaram de R$ 123,7 milhões, em 2008, para R$ 278 milhões em 2019. Acidentes de trânsito são a principal causa de TCEs, seguidos por violência interpessoal.

Os custos não findam com a internação. Traumas geram sequelas que exigem tratamentos custosos para reabilitação e podem incapacitar o paciente por toda a vida. Ou seja, além dos gastos públicos, o país perde força laboral.

Ainda segundo o boletim do Ministério da Saúde, entre os motociclistas acidentados predominam homens (88,1%) e negros (64,9%), idades de 20 a 29 anos (30,8%) e 8 a 11 anos de estudo (39,6%). Ademais, boa parte sofre acidentes durante o exercício da profissão. Ou seja, trata-se de população economicamente ativa e com algum grau de vulnerabilidade social.

Isso ocorre porque o aumento do número de motocicletas está ligado à economia de combustível, à alta de compras por aplicativos de entrega e a más condições do transporte público, que afastam passageiros.

Em São Paulo, a quantidade de motos emplacadas nos primeiros quatro meses deste ano foi a maior para o período desde 2015.

Para diminuir gastos na saúde e proteger jovens trabalhadores, é fundamental que o poder público, nas esferas municipal, estadual e federal, implemente ações de fiscalização e de conscientização que integrem órgãos de transporte, Justiça, saúde e educação.

Tal orientação já consta do Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito, legislação aprovada pelo Congresso em 2018. Basta tirá-lo do papel.

Congresso mostra a Lula quem manda

O Estado de S. Paulo

Série de derrotas indica que o governo não entendeu sua condição minoritária e que o presidente ainda vive como se a distribuição das forças políticas fosse a mesma de 20 anos atrás

A surra que o governo de Lula da Silva vem tomando no Congresso, dia sim e outro também, é o corolário mais evidente da recalcitrância do presidente em querer governar o País como se tivesse contado com uma folgada margem de votos para impor uma agenda que não é, definitivamente, a agenda da ampla maioria dos cidadãos brasileiros.

Na noite do dia 30 passado, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que define o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, por 283 votos a 155. Esse placar é uma retumbante derrota política e moral para o governo. Política porque Lula definiu a proteção dos interesses dos indígenas como uma de suas prioridades, a ponto de criar um Ministério só para cuidar disso; e moral, porque esse mesmo governo não moveu um músculo para articular uma base de apoio a fim de evitar um vexame como esse. E não o fez, é bom enfatizar, porque Lula, como já dissemos nesta página, só se interessa pela proteção ambiental e pela qualidade de vida dos indígenas na exata medida de suas ambições eleitorais.

A votação do PL 490/2007 foi apenas mais um evento de uma semana desastrosa para o Palácio do Planalto no outro lado da Praça dos Três Poderes. Há poucos dias, a Câmara já havia alterado substancialmente a Medida Provisória (MP) 1.154/2023, que reorganiza o primeiro escalão do governo federal. Na mesma noite em que o marco temporal foi aprovado, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), adiou a votação da MP, aumentando dramaticamente o risco de caducidade. O próprio arcabouço fiscal, tido tanto por Lira como pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSB-MG), como um item da “pauta País”, não da “pauta governo”, foi aprovado em termos bem diferentes do que o governo gostaria.

E isso tudo com menos de seis meses de governo – o que obrigou Lula a convocar uma reunião de emergência com seus articuladores políticos para entender o que se passa. Nem precisava: o problema central do governo, ao que tudo indica, é que o presidente escolheu deliberadamente alhear-se da realidade irrefutável de que foi eleito para impedir a continuidade de Jair Bolsonaro na Presidência, e não para implementar a raivosa e inconsequente agenda petista.

Lula age como se tivesse vencido a eleição somente com votos de petistas e que, uma vez na Presidência, todas as forças políticas convergiriam naturalmente para o demiurgo – que ademais se considera injustiçado e que vê neste novo mandato uma espécie de indenização que o País lhe devia pelos 500 e tantos dias na cadeia. Trata-se de um equívoco de múltiplas dimensões, que pode comprometer todo o exercício de seu terceiro mandato presidencial.

O presidente, a quem sempre se atribuíram muitos predicados políticos, mostra espantoso amadorismo ao ignorar que o espectro ideológico majoritário da sociedade brasileira ainda se inclina para uma direita conservadora, como está refletido na composição do Congresso. O eleitorado, por margem muito estreita, repeliu Bolsonaro porque rechaça o extremismo bolsonarista, e não por morrer de amores por Lula.

Ademais, diferentemente do que acontecia duas décadas atrás, no primeiro mandato de Lula, o Congresso dispõe de instrumentos para fazer valer suas vontades muitas vezes à revelia do Executivo. Ou seja, o presidente deve ser ainda mais aberto ao diálogo e à negociação, aceitando o fato de que tem menos poder para ditar a agenda do País e que, por isso, deve se entender com as lideranças desse Congresso em que o governo é gritantemente minoritário.

Em certa medida, democracias funcionais rejeitam os extremos e obrigam os governantes a caminhar para o centro, a despeito da eventual virulência do discurso nas campanhas eleitorais. No Chile, por exemplo, o presidente esquerdista Gabriel Boric foi muito perspicaz ao direcionar seu governo para posições centristas, depois de ter malogrado na tentativa de reescrever a Constituição do país, entre outras ações, levando em consideração apenas os interesses das forças políticas que o conduziram ao poder. Lula é bem mais experiente que Boric, mas talvez tenha o que aprender com o jovem colega chileno.

O anêmico ‘Consenso de Brasília’

O Estado de S. Paulo

Fracasso da cúpula sul-americana mostra a resistência à pretensão de Lula de reviver a Unasul como eixo de integração e o forte dissenso em torno de uma agenda ideológica falida

Se o presidente Lula da Silva esperava confirmar sua liderança na América do Sul ao reunir os mandatários da região no último dia 30, em Brasília, fracassou. Suas ambições de relançar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e de promover a criação de uma moeda comum para o comércio da região submergiram na redação final do documento do encontro, o Consenso de Brasília. A menção aos dois projetos foi ceifada por exigência de alguns dos líderes presentes. O texto, anódino, refletiu o dissenso em torno de uma agenda ideológica falida.

Houve mal-estar entre os líderes com o discurso de Lula, na véspera, de que a Venezuela é vítima de “preconceito” dos Estados Unidos e de todos os que insistem em denunciar a ditadura de Nicolás Maduro, tratado pelo presidente brasileiro como legítimo governante de uma democracia plena. No encontro de cúpula, Lula dobrou a aposta no constrangimento, ao reiterar seu conselho ao tiranete venezuelano para valer-se “da verdade” em sua “narrativa” sobre a suposta natureza democrática do regime chavista. Além de envergonhar o Brasil, Lula constrangeu vários de seus pares, que exigiram a inclusão, no breve documento final, de um compromisso da América do Sul com a democracia e o Estado de Direito.

Os presidentes do Chile, o esquerdista Gabriel Boric, e do Uruguai, Luis Lacalle Pou, de centro-direita, expressaram seu mal-estar com o tratamento conferido pelo Brasil à ditadura da Venezuela. Nas entrelinhas, evidenciaram o limite real da liderança de Lula na região.

Tão grave como o alerta do líder uruguaio de que aceitar a “narrativa” venezuelana seria “tapar o sol com o dedo”, foi a contestação pública de Boric, que cobrou de Caracas o respeito aos direitos humanos. “Não se pode varrer para debaixo do tapete ou fazer vista grossa sobre princípios importantes. Respeitosamente, discordo do que Lula disse. Não é uma narrativa, é uma realidade, é séria, e tive a oportunidade de vê-la nos olhos e na dor de centenas de milhares de venezuelanos que vivem na nossa pátria e que exigem uma posição firme e clara”, afirmou o chileno à imprensa.

No mesmo espectro político de Boric, Gustavo Petro, ex-guerrilheiro do grupo M-19 e primeiro presidente de esquerda da Colômbia, criticou, em entrevista ao Estadão, a falta de união da América do Sul em torno de projetos. Em outras palavras, Petro quer menos discurso e mais ação, razão pela qual deve ter saído frustrado de uma cúpula cujo único propósito era reafirmar Lula como líder regional, tendo como eixo a ideologia retrógrada que norteou a Unasul nos anos áureos do chavismo, do kirchnerismo e do lulopetismo. Do drama dos refugiados venezuelanos que invadem sobretudo a Colômbia para fugir da miséria e da repressão chavista, pouco se falou.

O encontro de Brasília revelou-se outra oportunidade perdida para a política externa brasileira. Mais do que desejável, é imperativo reconstruir e dinamizar a integração comercial, energética e financeira da América do Sul em bases pragmáticas e democráticas. Os desafios do desenvolvimento sustentável, da transição energética, do aquecimento global e da desigualdade social são comuns aos 12 países, razão pela qual a superação desses desafios só será possível se houver uma agenda regional de diálogo sobre planos concretos e em contexto de fortalecimento das instituições.

O governo brasileiro, portanto, faria bem se investisse tempo e esforço na construção dessa integração, mas as bases para isso não podem ser ideológicas, como corretamente argumentou o presidente uruguaio a respeito da intenção de Lula de ressuscitar a Unasul. Mas o anêmico Consenso de Brasília mostra que o continente está longe de articular um plano em comum, sobretudo porque o presidente da principal economia regional, que naturalmente deveria liderar esse processo, deixou-se embalar pela nostalgia dos tempos em que a Unasul era o corolário do projeto de conversão da América do Sul em paraíso da esquerda atrasada e antidemocrática.

Os jabutis da Mata Atlântica

O Estado de S. Paulo

Lula faz bem ao prometer vetar o inaceitável afrouxamento das regras de proteção do bioma

O Palácio do Planalto antecipou seu veto à legislação que expõe a Mata Atlântica ao risco de acelerada devastação, aprovada pela Câmara dos Deputados no último dia 24. Seja por convicção sobre a importância da preservação da fração restante do bioma, seja por necessidade de compensar a sua ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, por perdas inevitáveis no jogo interno da atual gestão, o presidente Lula da Silva acerta ao impedir a conversão do texto integral em lei.

O afrouxamento de regras de proteção à Mata Atlântica surgiu com a Medida Provisória (MP) 1.150/2022, publicada no ocaso da gestão de Jair Bolsonaro. O texto estendia o prazo para proprietários rurais aderirem ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Na Câmara dos Deputados, neste ano, emendas parlamentares foram incluídas para ampliar o escopo original da MP. Conhecidas como jabutis, essas inserções atenderam às pressões dos lobbies dos setores agropecuário e do gás. Em especial, da Eletrobras.

O resultado foi uma legislação permissiva ao desmatamento do bioma – sem medidas compensatórias – para acomodar projetos de infraestrutura, sobretudo gasodutos e linhas de transmissão de energia. Para obras específicas, foram suspensos requisitos básicos de proteção, como o estudo de impacto ambiental, a licença e a captura e coleta de animais silvestres. O Senado extraiu as emendas. De volta à Câmara, os jabutis foram restaurados ao texto, aprovado com 364 votos no último dia 24.

A legislação reflete o desprezo dos deputados federais sobre a preservação de um bioma que abriga a maior diversidade de árvores por hectare do planeta e cerca de 2 mil espécies animais. Dele dependem serviços ecossistêmicos que garantirão a vida, inclusive humana, em suas áreas originais. Qualquer criança recém-alfabetizada em escola pública é capaz de apontar a inconsistência do texto e seus impactos para o planeta.

A Mata Atlântica, ao contrário da Amazônia, já cruzou o limite crítico de 30% de devastação. Requer desmatamento zerado e acompanhado por restauração em larga escala. Desse objetivo deveriam tratar os deputados. No Poder Executivo, o veto presidencial a esses trechos esdrúxulos da lei foi ecoado pelos ministros Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, e Marina Silva. Será contabilizado como derrota pontual de Alexandre Silveira, da pasta de Minas e Energia, que avalizou as emendas.

A posição governamental sobre o tema estará sedimentada. Mas ainda há risco de os jabutis ressuscitarem pela segunda vez na Câmara, no exame dos vetos. Como salvaguarda, um grupo de senadores recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob a alegação de que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PPAL), e o relator, Sergio Souza (MDB-PR), desviaram o rito legislativo durante a tramitação da medida provisória. Em última instância, caberá à Corte julgar a questão dos regulamentos do Legislativo – sem tratar do mérito, mais do que comprovado, da sobrevivência da Mata Atlântica.

Defesa de Maduro por Lula racha cúpula sul-americana

Valor Econômico

Os erros de Lula estão desenhando uma trajetória que une o antiamericanismo tosco à afinidade com regimes autoritários

O presidente Lula tem dedicado consideráveis esforços para se tornar um mediador reconhecido na guerra da Rússia contra a Ucrânia, mas não está conseguindo exercer um papel de liderança na entre os vizinhos sul-americanos, que politicamente compete ao Brasil. Na verdade, Lula fomentou divisões na segunda-feira, ao chamar de “momento histórico” seu encontro com o ditador Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, a quem engrandeceu como um exemplo de democracia. O presidente brasileiro culpou os EUA pela ruína assombrosa na qual os chavistas transformaram o país. Em reunião com 11 dos 12 presidentes da América do Sul, foi lembrado por 4 deles de que não falava a verdade sobre o país de Maduro e ainda viu seu desejo de recriar a Unasul, mencionando-a no documento final, rejeitado por uma clara falta de consenso.

Também na política externa o presidente parece fora de prumo, atraindo conflitos desnecessários, como tem feito em foro doméstico. Após o preâmbulo da recepção calorosa a Maduro, Lula colheu no dia seguinte, em reunião, uma polida indiferença por suas propostas de integração, encabeçadas pela criação de uma moeda comum regional. A declaração do “Consenso de Brasília” registra ao final que a integração regional e a democracia devem ser parte integrantes dos meios para enfrentar os desafios atuais, ao lado da luta contra a desigualdade, desenvolvimento social, Estado de direito etc. O Brasil sugeriu a formação de um grupo de trabalho para apresentar a rota da integração em 120 dias, composto por indicados dos presidentes. O documento final, porém, menciona um grupo composto por chanceleres, sem prazo para nada (Folha de S. Paulo, ontem).

Lula foi criticado por presidentes de direita e de esquerda. O mais vocal, que abriu a contestação aos elogios de Lula ao regime venezuelano, foi o uruguaio Lacalle Pou, que disse que se havia tantas iniciativas de mediação para que o governo venezuelano respeite o jogo democrático e os direitos humanos, era óbvio que Maduro era um problema para os presentes. O esquerdista Gabriel Boric, presidente do Chile, afirmou que os desrespeitos à democracia pelo regime chavista não eram uma “narrativa” dos inimigos de Maduro, como apontou Lula, mas a triste realidade. Até mesmo o discreto presidente do Paraguai, Mario Abdo Benites, citou relatório da ONU sobre violação de direitos humanos preparada pela equipe da ex-presidente socialista do Chile, Michelle Bachelet, de 2022, dando conta de 259 presos políticos no país. (O Globo, ontem).

O necessário reatamento de relações diplomáticas com a Venezuela, que deveria ser sóbrio, foi manchado pela tentativa canhestra de Lula de apagar todo o passado de desmandos políticos e econômicos do regime inaugurado por Hugo Chávez, admirado pelo presidente brasileiro. Chávez e Maduro produziram a maior tragédia humanitária em um país sul-americano em tempos de paz. A estatização sem freios, a ocupação das empresas do Estado por apaniguados da cúpula chavista, a perseguição à oposição, fizeram a proeza de derrubar para menos da metade a produção de petróleo do país, que tem as maiores reservas do mundo - praticamente sua única riqueza.

Após derrota em eleições parlamentares em 2015, Nicolás Maduro convocou uma Assembleia Constituinte de cartas marcadas e revogou o Legislativo, depois de ter dominado o Judiciário e a corte eleitoral. O fechamento do regime acompanhou a explosão inflacionária e outro feito chavista - encolher em 50% o PIB do país em poucos anos. O órgão para refugiados da ONU estima que 8,9 milhões de venezuelanos deixaram o país até 2022 para fugir da fome. O Brasil acolheu 609 mil venezuelanos até agosto de 2020 e, hoje, o número de migrantes aqui é de cerca de 300 mil.

Lula despreza a realidade quando se trata de amigos ideológicos, como Daniel Ortega, da Nicarágua, Fidel e Raul Castro, de Cuba, e considera verdade o que lhe contam as pessoas mais próximas. Ontem, Lula disse que ouviu de Celso Amorim, assessor especial para assuntos internacionais, que esteve na Venezuela, que o país vive sob regime democrático (O Globo). Os erros de Lula estão desenhando uma trajetória que une o antiamericanismo tosco à afinidade com regimes autoritários, como Rússia e China, com os quais convive nos Brics, que pode vir a se tornar uma aliança ampliada contra os EUA. Seria um passo ruim para o país e destrutivo para a reputação de Lula que, no Brasil, respeita a democracia e suas regras. No cenário doméstico, a bajulação a Maduro acirra a oposição e afasta simpatizantes que o apoiaram nas eleições exatamente para barrar um outro projeto ditatorial, o de Jair Bolsonaro.

A visão de Lula sobre a ditadura bolivariana é divisiva e não traz ganhos ao Brasil. A América do Sul perde terreno na economia mundial e sua integração traria vantagens a todos. O presidente Lula teria outras coisas a fazer, como tentar consertar Mercosul, que deveria ser prioridade e o centro em torno do qual construir eixos políticos, econômicos e sociais da integração. É um percurso que se faz com mais trabalho e menos discursos.

Câmara suprime direitos indígenas

Correio Braziliense

O PL 490 abriu as porteiras para que mineradores, garimpeiros, desmatadores e grileiros se apossem das terras indígenas sem cerimônia

Em primeiro de janeiro, a sociedade ficou emocionada com a representação da diversidade brasileira na rampa do Palácio do Planalto para entregar a faixa ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mulheres e homens negros, indígenas, brancos, crianças e deficientes compunham a face do Brasil miscigenado e plural. Seis meses depois, a cerimônia foi rasgada, e confirmou-se a ilusão constitucional de que todos são iguais perante a lei. Nesta terça-feira, por 283 votos a 155, a Câmara dos Deputados — casa representante dos cidadãos — aprovou o Projeto de Lei 490, que dispõe sobre o marco temporal para a demarcação dos territórios indígenas ocupados até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Os deputados aprovaram uma lei ordinária para mudar a Carta Magna, em detrimento dos direitos indígenas e favorável aos interesses dos opositores dos povos originários.

Os deputados decidiram suprimir o direito dos indígenas aos seus territórios originários, embora eles estivessem aqui antes da chegada brutal dos colonizadores europeus. O espaço ocupado por esses povos, se totalmente reconhecido, representa menos de 14% do território nacional. Ou seja, 86% estão à disposição do poder público e da sociedade para que as políticas de Estado sejam capazes de eliminar a miséria, a fome e as tragédias sociais que impõem ao Brasil a eterna condição de "país em desenvolvimento". Em 523 anos, o Brasil não conseguiu chegar ao patamar de nação desenvolvida.

O PL 490, construído em base suspeita de ser inconstitucional, vai além. Abriu as porteiras para que mineradores, garimpeiros, desmatadores e grileiros se apossem das terras indígenas sem cerimônia. É questionável a afirmação do relator do projeto, Arthur Maia (União-BA), de que a lei chega para acabar com os conflitos por terras. Os embates dos indígenas contra seus predadores não vão cessar. Eles reagirão aos intrusos. Mas estarão desprotegidos, o que, como sempre, os tornam presas fáceis dos agressores. Os parlamentares ignoram o que ocorre na Terra Yanomami, no Vale do Javari e em outras aldeias asfixiadas por garimpeiros, desmatadores e grileiros. Os invasores têm arsenal suficiente para eliminar os povos indígenas, seja pelas armas, seja pela contaminação dos indivíduos com doenças, seja pela destruição da floresta e dos rios que lhes garantem alimentos.

A aprovação do PL 490 é mais uma derrota do governo do presidente Lula. Tanto durante a campanha eleitoral quanto depois de chegar ao Palácio do Planalto, ele reafirmou compromissos com a política ambiental e com os povos originários e tradicionais. Garantiu que coibiria o desmatamento das florestas, sobretudo, na Região Amazônica. Se Lula contava com o apoio dos legisladores, não levou a sério a composição do Congresso, dominado por representantes do agronegócio, dos anti-indígenas e dos antiambientalistas. Hoje, o descompromisso do parlamento com a questão ambiental é notório. A maioria é negacionista em relação aos fenômenos climáticos, que só podem ser mitigados com a preservação das florestas e com outras iniciativas que levem o país à adoção de uma economia verde.

Neste cenário, as populações indígenas e tradicionais têm relevante papel para a preservação do patrimônio natural. No Brasil que vive de esperanças que nunca se concretizam, resta a expectativa de o Senado fazer uma correção em que prevaleça o mandamento da Constituição. Conta-se ainda com o desfecho do julgamento do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 7 de junho. É esperar para ver se a vida dos indígenas tem valor e importância para o Brasil, a fim de preservar a diversidade demográfica.

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