Marco temporal prova protagonismo do Parlamento
O Globo
Aprovação na Câmara de lei que restringe
demarcações é revés para Executivo e recado ao Judiciário
A aprovação
na Câmara da lei que restringe a demarcação de terras indígenas é
mais que um revés para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi
também um recado do Parlamento ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao país
sobre seu papel na democracia brasileira.
O projeto
ainda deverá passar pelo Senado, onde não será tratado com a mesma urgência com
que foi na Câmara. Mesmo assim, a aprovação pelos deputados
reflete um movimento parlamentar sólido contra a agenda do governo nos campos
indígena e ambiental. Sua força se faz notar no esvaziamento das pastas do Meio
Ambiente e dos Povos Indígenas e no encaminhamento de outras pautas correlatas.
No caso das demarcações, o projeto aprovado estabelece que povos indígenas terão direito apenas a terras ocupadas ou disputadas até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Com isso, desfaz a dúvida que paira sobre terras ocupadas depois, cuja demarcação é questionada no STF.
Ao afirmar que “são reconhecidos aos índios
(…) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, o
texto constitucional abre margem a duas interpretações. Na primeira, o verbo usado
no presente — “ocupam” — se refere à data de promulgação da Constituição. Na
segunda, o tempo verbal se refere à data da leitura do texto, qualquer que
seja. Daí os recursos à Justiça, exigindo demarcação de terras ocupadas
posteriormente.
Contrariando interpretações anteriores do
próprio Supremo, o ministro Edson Fachin, relator de um caso de Santa Catarina
que criará jurisprudência a todos os demais, contesta o marco temporal usado
para demarcação. Diante da votação que poderia referendar a tese, marcada para
a semana que vem, os deputados se anteciparam. “É inaceitável que ainda
prevaleça a insegurança jurídica”, afirmou o relator do projeto, Arthur Maia
(União-BA).
Se o Congresso decidir a questão
estabelecendo explicitamente o marco temporal, hoje apenas implícito na
Constituição, o STF terá obrigação de respeitá-lo. Mas isso não encerra a
questão. O texto aprovado pelos deputados está repleto de lacunas, e outros
itens ensejarão contestação judicial.
Primeiro, estabelecer o marco temporal porá
em risco áreas ocupadas posteriormente à Constituição que já tenham sido
demarcadas. Também interromperá vários processos de demarcação em andamento. Se
a lei continuar omissa a respeito, caberá aos tribunais decidir o que fazer
nesses casos. A insegurança jurídica persistirá.
Segundo, o texto afirma que o “usufruto dos
índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania
nacional”. Isso abre margem à construção de estradas, hidrelétricas e instalações
militares sem consulta às comunidades afetadas. O mesmo dispositivo poderia,
dizem ambientalistas, abrir brecha à exploração de minérios, num momento em que
a prioridade na Amazônia é combater o garimpo ilegal. Tudo isso seria
inaceitável.
Em que pesem tais ressalvas, o essencial na
discussão é entender que a instituição mais representativa na democracia é o
Parlamento. O Executivo é eleito para pôr em marcha seu programa dentro dos
limites legais determinados pelo Congresso. E o Judiciário, nunca é demais
repetir, não deve se meter a legislar como tem feito. A reação parlamentar,
ainda que atabalhoada, é sinal do vigor que deve caracterizar os regimes
democráticos.
Agressão a jornalistas no Itamaraty exige
mais que protesto contra Maduro
O Globo
Truculência dos seguranças do ditador da
Venezuela contou com apoio de profissionais brasileiros
Em qualquer democracia, é inaceitável que
jornalistas sejam agredidos em pleno exercício da profissão. Pior ainda quando
a agressão é cometida por agentes de um país estrangeiro em território
nacional, em parceria com integrantes do Gabinete de Segurança Institucional
(GSI). Foi o que aconteceu na terça-feira no Palácio Itamaraty, em Brasília,
durante entrevista do ditador venezuelano Nicolás
Maduro. Entre as vítimas, a repórter Delis Ortiz, da TV Globo, levou
um soco no peito.
“É lamentável que, após todos os casos de
violência contra repórteres brasileiros que faziam a cobertura em Brasília nos
últimos anos, um episódio semelhante se repita”, afirmou o presidente da
Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech. “Esperamos que os
compromissos públicos de apurar as responsabilidades e evitar que tais
agressões jamais ocorram novamente se tornem realidade daqui para a frente.”
ANJ, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e
Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) emitiram notas de
repúdio contra o episódio.
No último ano do governo Jair Bolsonaro, as
agressões físicas a jornalistas cresceram 38%, segundo pesquisa da Abert. Entre
janeiro e dezembro de 2022, houve 47 episódios envolvendo 74 repórteres. Os
alvos mais frequentes foram profissionais da televisão. Dois jornalistas foram
mortos, o mais conhecido deles, Dom Phillips, assassinado na Amazônia. Com a
derrota da extrema direita em outubro, muitos acharam que a hostilidade do
público e de agentes de segurança contra a imprensa diminuiria. Por isso a surpresa
com o comportamento dos seguranças brasileiros.
Dos que cercam o ditador Maduro não se
esperava nada distinto. A Venezuela ocupa a 159ª posição entre os 180 países do
ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteira.
Depois de assumir o poder em 2013, Maduro adotou postura ainda mais autoritária
que Hugo Chávez diante do jornalismo profissional. Um jornalista chegou a ser
preso durante entrevista com ele em 2019 no Palácio de Miraflores, sede do
governo. Prisões arbitrárias são corriqueiras. Nesse capítulo, a Venezuela não
está longe da Rússia de Vladimir Putin.
A promessa do governo brasileiro é “apurar responsabilidades”. Pela gravidade do ocorrido, é pouco. É urgente punição exemplar para os agressores. Não há imagens do momento da agressão, mas há várias testemunhas da truculência dos seguranças, capazes de apontar quem praticou os atos violentos. É preciso haver treinamento de todos os demais para evitar que tais cenas se repitam. Por fim, mas não menos importante, o governo Lula deveria pensar duas vezes antes de voltar a receber ditadores como o venezuelano em solo brasileiro.
A escolha para o STF
Folha de S. Paulo
Lula comprometerá credibilidade da alta
corte se indicar ministro por lealdade
Embora frequentemente criticado, o sistema
de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal —indicação do presidente da
República, submetida ao Senado— não compromete necessariamente a independência
da corte.
A melhor prova disso é o julgamento do
chamado mensalão, em 2012. Embora o STF fosse à época composto majoritariamente
por indicados por presidentes petistas, os magistrados condenaram figuras de
relevo do partido, como José Dirceu e José Genoino.
Muito dessa atitude tem a ver com o
princípio da vitaliciedade que se aplica ao cargo. Uma vez nomeados, ministros
do Supremo só costumam deixar o posto por morte, aposentadoria compulsória aos
75 anos ou vontade própria.
Isso significa que já não precisam agradar
a ninguém para conservar seus empregos —e estão livres para se manifestar e
votar segundo suas convicções.
Não chega a ser surpresa, pois, que
presidentes tenham passado a valorizar a lealdade nas indicações para a corte,
buscando candidatos que, pela história pessoal que têm com o governante ou por
características da personalidade, pareçam menos propensos a contrariar quem os
pôs no cargo.
Esse parece ter sido um critério importante
para a escolha, por Jair Bolsonaro (PL), de Nunes Marques e André Mendonça.
Eles, de fato, têm se mostrado mais alinhados com preferências do
ex-mandatário, embora seja impossível determinar se isso ocorre por proximidade
de pensamento, que seria uma razão legítima, ou por proximidade pessoal, o que
seria uma perversão do sistema.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já deu todos
os sinais de que gostaria de aprofundar ainda mais essa tendência pouco
republicana com a indicação de
seu advogado pessoal, Cristiano Zanin Martins, para a vaga aberta na corte.
A escolha pode servir aos interesses
individuais do presidente, mas será péssima para as instituições. No caso de
Zanin, há ainda o agravante de que ele atuou em casos da Lava Jato, o que o
impediria de julgar essas ações.
O STF, porém, já manobrou para que Zanin,
caso seja confirmado, vá para a Primeira Turma, uma vez que os processos da
operação se concentram na Segunda.
Indicações desse tipo acabam se voltando
contra a credibilidade do Supremo —o mesmo acontece, aliás, quando ministros do
tribunal frequentam convescotes promovidos pelo chefe do Executivo.
Igualmente importante, o Senado, que tem a
incumbência de sabatinar e votar os nomes apontados pelo presidente da
República, deveria fazer
valer suas prerrogativas e garantir que tal processo deixe de ser uma mera
formalidade.
Traumas do trânsito
Folha de S. Paulo
Taxa de internação de motociclistas expõe
grave problema para a saúde pública
Entre 2011 e 2021, o número de motocicletas
circulando no Brasil cresceu 64,7%, de 18 milhões para 30,3 milhões. Como se
sabe e boletim do Ministério da Saúde comprova, a escalada elevou a
insegurança.
Em 2011, 70,5 mil motociclistas lesionados
em acidentes de trânsito foram hospitalizados (3,9 a cada 100 mil habitantes).
Já em 2021, foram 115,7 mil (6,1 a cada 100 mil) —aumento de
55% em dez anos.
Apesar de o número de mortos ter
permanecido quase estável no período (11,5 mil e 11,1 mil, respectivamente),
ele representa 26,6% das fatalidades no tráfego em 2011 e 35,3% em 2021.
Acidentes de trânsito são grave problema de
saúde pública no país que, no caso de motocicletas, atinge estratos sociais
fragilizados.
Em 2021, as hospitalizações de
motociclistas custaram R$ 167 milhões ao Estado. Despesas por traumatismo
cranioencefálico grave (TCE) passaram de
R$ 123,7 milhões, em 2008, para R$ 278 milhões em 2019. Acidentes de
trânsito são a principal causa de TCEs, seguidos por violência interpessoal.
Os custos não findam com a internação.
Traumas geram sequelas que exigem tratamentos custosos para reabilitação e
podem incapacitar o paciente por toda a vida. Ou seja, além dos gastos
públicos, o país perde força laboral.
Ainda segundo o boletim do Ministério da
Saúde, entre os motociclistas acidentados predominam homens (88,1%) e negros
(64,9%), idades de 20 a 29 anos (30,8%) e 8 a 11 anos de estudo (39,6%).
Ademais, boa parte sofre acidentes durante o exercício da profissão. Ou seja,
trata-se de população economicamente ativa e com algum grau de vulnerabilidade
social.
Isso ocorre porque o aumento do número de
motocicletas está ligado à economia de combustível, à alta de compras por
aplicativos de entrega e a más condições do transporte público, que afastam
passageiros.
Em São Paulo, a quantidade
de motos emplacadas nos primeiros quatro meses deste ano foi a maior para o
período desde 2015.
Para diminuir gastos na saúde e proteger
jovens trabalhadores, é fundamental que o poder público, nas esferas municipal,
estadual e federal, implemente ações de fiscalização e de conscientização que
integrem órgãos de transporte, Justiça, saúde e educação.
Tal orientação já consta do Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito, legislação aprovada pelo Congresso em 2018. Basta tirá-lo do papel.
Congresso mostra a Lula quem manda
O Estado de S. Paulo
Série de derrotas indica que o governo não
entendeu sua condição minoritária e que o presidente ainda vive como se a
distribuição das forças políticas fosse a mesma de 20 anos atrás
A surra que o governo de Lula da Silva vem
tomando no Congresso, dia sim e outro também, é o corolário mais evidente da
recalcitrância do presidente em querer governar o País como se tivesse contado
com uma folgada margem de votos para impor uma agenda que não é,
definitivamente, a agenda da ampla maioria dos cidadãos brasileiros.
Na noite do dia 30 passado, a Câmara dos
Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que define o marco temporal
para a demarcação de terras indígenas, por 283 votos a 155. Esse placar é uma
retumbante derrota política e moral para o governo. Política porque Lula
definiu a proteção dos interesses dos indígenas como uma de suas prioridades, a
ponto de criar um Ministério só para cuidar disso; e moral, porque esse mesmo
governo não moveu um músculo para articular uma base de apoio a fim de evitar
um vexame como esse. E não o fez, é bom enfatizar, porque Lula, como já
dissemos nesta página, só se interessa pela proteção ambiental e pela qualidade
de vida dos indígenas na exata medida de suas ambições eleitorais.
A votação do PL 490/2007 foi apenas mais um
evento de uma semana desastrosa para o Palácio do Planalto no outro lado da
Praça dos Três Poderes. Há poucos dias, a Câmara já havia alterado
substancialmente a Medida Provisória (MP) 1.154/2023, que reorganiza o primeiro
escalão do governo federal. Na mesma noite em que o marco temporal foi
aprovado, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), adiou a votação da MP,
aumentando dramaticamente o risco de caducidade. O próprio arcabouço fiscal,
tido tanto por Lira como pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSB-MG),
como um item da “pauta País”, não da “pauta governo”, foi aprovado em termos
bem diferentes do que o governo gostaria.
E isso tudo com menos de seis meses de
governo – o que obrigou Lula a convocar uma reunião de emergência com seus
articuladores políticos para entender o que se passa. Nem precisava: o problema
central do governo, ao que tudo indica, é que o presidente escolheu
deliberadamente alhear-se da realidade irrefutável de que foi eleito para
impedir a continuidade de Jair Bolsonaro na Presidência, e não para implementar
a raivosa e inconsequente agenda petista.
Lula age como se tivesse vencido a eleição
somente com votos de petistas e que, uma vez na Presidência, todas as forças
políticas convergiriam naturalmente para o demiurgo – que ademais se considera
injustiçado e que vê neste novo mandato uma espécie de indenização que o País
lhe devia pelos 500 e tantos dias na cadeia. Trata-se de um equívoco de
múltiplas dimensões, que pode comprometer todo o exercício de seu terceiro
mandato presidencial.
O presidente, a quem sempre se atribuíram
muitos predicados políticos, mostra espantoso amadorismo ao ignorar que o espectro
ideológico majoritário da sociedade brasileira ainda se inclina para uma
direita conservadora, como está refletido na composição do Congresso. O
eleitorado, por margem muito estreita, repeliu Bolsonaro porque rechaça o
extremismo bolsonarista, e não por morrer de amores por Lula.
Ademais, diferentemente do que acontecia
duas décadas atrás, no primeiro mandato de Lula, o Congresso dispõe de
instrumentos para fazer valer suas vontades muitas vezes à revelia do
Executivo. Ou seja, o presidente deve ser ainda mais aberto ao diálogo e à
negociação, aceitando o fato de que tem menos poder para ditar a agenda do País
e que, por isso, deve se entender com as lideranças desse Congresso em que o
governo é gritantemente minoritário.
Em certa medida, democracias funcionais
rejeitam os extremos e obrigam os governantes a caminhar para o centro, a
despeito da eventual virulência do discurso nas campanhas eleitorais. No Chile,
por exemplo, o presidente esquerdista Gabriel Boric foi muito perspicaz ao
direcionar seu governo para posições centristas, depois de ter malogrado na
tentativa de reescrever a Constituição do país, entre outras ações, levando em
consideração apenas os interesses das forças políticas que o conduziram ao
poder. Lula é bem mais experiente que Boric, mas talvez tenha o que aprender
com o jovem colega chileno.
O anêmico ‘Consenso de Brasília’
O Estado de S. Paulo
Fracasso da cúpula sul-americana mostra a
resistência à pretensão de Lula de reviver a Unasul como eixo de integração e o
forte dissenso em torno de uma agenda ideológica falida
Se o presidente Lula da Silva esperava
confirmar sua liderança na América do Sul ao reunir os mandatários da região no
último dia 30, em Brasília, fracassou. Suas ambições de relançar a União de
Nações Sul-Americanas (Unasul) e de promover a criação de uma moeda comum para
o comércio da região submergiram na redação final do documento do encontro, o
Consenso de Brasília. A menção aos dois projetos foi ceifada por exigência de
alguns dos líderes presentes. O texto, anódino, refletiu o dissenso em torno de
uma agenda ideológica falida.
Houve mal-estar entre os líderes com o
discurso de Lula, na véspera, de que a Venezuela é vítima de “preconceito” dos
Estados Unidos e de todos os que insistem em denunciar a ditadura de Nicolás
Maduro, tratado pelo presidente brasileiro como legítimo governante de uma
democracia plena. No encontro de cúpula, Lula dobrou a aposta no
constrangimento, ao reiterar seu conselho ao tiranete venezuelano para valer-se
“da verdade” em sua “narrativa” sobre a suposta natureza democrática do regime
chavista. Além de envergonhar o Brasil, Lula constrangeu vários de seus pares,
que exigiram a inclusão, no breve documento final, de um compromisso da América
do Sul com a democracia e o Estado de Direito.
Os presidentes do Chile, o esquerdista
Gabriel Boric, e do Uruguai, Luis Lacalle Pou, de centro-direita, expressaram
seu mal-estar com o tratamento conferido pelo Brasil à ditadura da Venezuela.
Nas entrelinhas, evidenciaram o limite real da liderança de Lula na região.
Tão grave como o alerta do líder uruguaio
de que aceitar a “narrativa” venezuelana seria “tapar o sol com o dedo”, foi a
contestação pública de Boric, que cobrou de Caracas o respeito aos direitos
humanos. “Não se pode varrer para debaixo do tapete ou fazer vista grossa sobre
princípios importantes. Respeitosamente, discordo do que Lula disse. Não é uma
narrativa, é uma realidade, é séria, e tive a oportunidade de vê-la nos olhos e
na dor de centenas de milhares de venezuelanos que vivem na nossa pátria e que
exigem uma posição firme e clara”, afirmou o chileno à imprensa.
No mesmo espectro político de Boric,
Gustavo Petro, ex-guerrilheiro do grupo M-19 e primeiro presidente de esquerda
da Colômbia, criticou, em entrevista ao Estadão, a falta de união da América do
Sul em torno de projetos. Em outras palavras, Petro quer menos discurso e mais
ação, razão pela qual deve ter saído frustrado de uma cúpula cujo único
propósito era reafirmar Lula como líder regional, tendo como eixo a ideologia
retrógrada que norteou a Unasul nos anos áureos do chavismo, do kirchnerismo e
do lulopetismo. Do drama dos refugiados venezuelanos que invadem sobretudo a
Colômbia para fugir da miséria e da repressão chavista, pouco se falou.
O encontro de Brasília revelou-se outra
oportunidade perdida para a política externa brasileira. Mais do que desejável,
é imperativo reconstruir e dinamizar a integração comercial, energética e
financeira da América do Sul em bases pragmáticas e democráticas. Os desafios
do desenvolvimento sustentável, da transição energética, do aquecimento global
e da desigualdade social são comuns aos 12 países, razão pela qual a superação
desses desafios só será possível se houver uma agenda regional de diálogo sobre
planos concretos e em contexto de fortalecimento das instituições.
O governo brasileiro, portanto, faria bem
se investisse tempo e esforço na construção dessa integração, mas as bases para
isso não podem ser ideológicas, como corretamente argumentou o presidente
uruguaio a respeito da intenção de Lula de ressuscitar a Unasul. Mas o anêmico
Consenso de Brasília mostra que o continente está longe de articular um plano
em comum, sobretudo porque o presidente da principal economia regional, que
naturalmente deveria liderar esse processo, deixou-se embalar pela nostalgia
dos tempos em que a Unasul era o corolário do projeto de conversão da América
do Sul em paraíso da esquerda atrasada e antidemocrática.
Os jabutis da Mata Atlântica
O Estado de S. Paulo
Lula faz bem ao prometer vetar o
inaceitável afrouxamento das regras de proteção do bioma
O Palácio do Planalto antecipou seu veto à
legislação que expõe a Mata Atlântica ao risco de acelerada devastação,
aprovada pela Câmara dos Deputados no último dia 24. Seja por convicção sobre a
importância da preservação da fração restante do bioma, seja por necessidade de
compensar a sua ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, por perdas inevitáveis
no jogo interno da atual gestão, o presidente Lula da Silva acerta ao impedir a
conversão do texto integral em lei.
O afrouxamento de regras de proteção à Mata
Atlântica surgiu com a Medida Provisória (MP) 1.150/2022, publicada no ocaso da
gestão de Jair Bolsonaro. O texto estendia o prazo para proprietários rurais
aderirem ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Na Câmara dos Deputados,
neste ano, emendas parlamentares foram incluídas para ampliar o escopo original
da MP. Conhecidas como jabutis, essas inserções atenderam às pressões dos
lobbies dos setores agropecuário e do gás. Em especial, da Eletrobras.
O resultado foi uma legislação permissiva
ao desmatamento do bioma – sem medidas compensatórias – para acomodar projetos
de infraestrutura, sobretudo gasodutos e linhas de transmissão de energia. Para
obras específicas, foram suspensos requisitos básicos de proteção, como o
estudo de impacto ambiental, a licença e a captura e coleta de animais
silvestres. O Senado extraiu as emendas. De volta à Câmara, os jabutis foram
restaurados ao texto, aprovado com 364 votos no último dia 24.
A legislação reflete o desprezo dos
deputados federais sobre a preservação de um bioma que abriga a maior
diversidade de árvores por hectare do planeta e cerca de 2 mil espécies
animais. Dele dependem serviços ecossistêmicos que garantirão a vida, inclusive
humana, em suas áreas originais. Qualquer criança recém-alfabetizada em escola
pública é capaz de apontar a inconsistência do texto e seus impactos para o
planeta.
A Mata Atlântica, ao contrário da Amazônia,
já cruzou o limite crítico de 30% de devastação. Requer desmatamento zerado e
acompanhado por restauração em larga escala. Desse objetivo deveriam tratar os
deputados. No Poder Executivo, o veto presidencial a esses trechos esdrúxulos
da lei foi ecoado pelos ministros Alexandre Padilha, das Relações
Institucionais, e Marina Silva. Será contabilizado como derrota pontual de
Alexandre Silveira, da pasta de Minas e Energia, que avalizou as emendas.
A posição governamental sobre o tema estará sedimentada. Mas ainda há risco de os jabutis ressuscitarem pela segunda vez na Câmara, no exame dos vetos. Como salvaguarda, um grupo de senadores recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob a alegação de que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PPAL), e o relator, Sergio Souza (MDB-PR), desviaram o rito legislativo durante a tramitação da medida provisória. Em última instância, caberá à Corte julgar a questão dos regulamentos do Legislativo – sem tratar do mérito, mais do que comprovado, da sobrevivência da Mata Atlântica.
Defesa de Maduro por Lula racha cúpula
sul-americana
Valor Econômico
Os erros de Lula estão desenhando uma
trajetória que une o antiamericanismo tosco à afinidade com regimes
autoritários
O presidente Lula tem dedicado
consideráveis esforços para se tornar um mediador reconhecido na guerra da
Rússia contra a Ucrânia, mas não está conseguindo exercer um papel de liderança
na entre os vizinhos sul-americanos, que politicamente compete ao Brasil. Na
verdade, Lula fomentou divisões na segunda-feira, ao chamar de “momento
histórico” seu encontro com o ditador Nicolás Maduro, presidente da Venezuela,
a quem engrandeceu como um exemplo de democracia. O presidente brasileiro
culpou os EUA pela ruína assombrosa na qual os chavistas transformaram o país.
Em reunião com 11 dos 12 presidentes da América do Sul, foi lembrado por 4
deles de que não falava a verdade sobre o país de Maduro e ainda viu seu desejo
de recriar a Unasul, mencionando-a no documento final, rejeitado por uma clara
falta de consenso.
Também na política externa o presidente
parece fora de prumo, atraindo conflitos desnecessários, como tem feito em foro
doméstico. Após o preâmbulo da recepção calorosa a Maduro, Lula colheu no dia
seguinte, em reunião, uma polida indiferença por suas propostas de integração,
encabeçadas pela criação de uma moeda comum regional. A declaração do “Consenso
de Brasília” registra ao final que a integração regional e a democracia devem
ser parte integrantes dos meios para enfrentar os desafios atuais, ao lado da
luta contra a desigualdade, desenvolvimento social, Estado de direito etc. O
Brasil sugeriu a formação de um grupo de trabalho para apresentar a rota da
integração em 120 dias, composto por indicados dos presidentes. O documento
final, porém, menciona um grupo composto por chanceleres, sem prazo para nada
(Folha de S. Paulo, ontem).
Lula foi criticado por presidentes de
direita e de esquerda. O mais vocal, que abriu a contestação aos elogios de
Lula ao regime venezuelano, foi o uruguaio Lacalle Pou, que disse que se havia
tantas iniciativas de mediação para que o governo venezuelano respeite o jogo
democrático e os direitos humanos, era óbvio que Maduro era um problema para os
presentes. O esquerdista Gabriel Boric, presidente do Chile, afirmou que os
desrespeitos à democracia pelo regime chavista não eram uma “narrativa” dos
inimigos de Maduro, como apontou Lula, mas a triste realidade. Até mesmo o
discreto presidente do Paraguai, Mario Abdo Benites, citou relatório da ONU
sobre violação de direitos humanos preparada pela equipe da ex-presidente
socialista do Chile, Michelle Bachelet, de 2022, dando conta de 259 presos
políticos no país. (O Globo, ontem).
O necessário reatamento de relações
diplomáticas com a Venezuela, que deveria ser sóbrio, foi manchado pela
tentativa canhestra de Lula de apagar todo o passado de desmandos políticos e
econômicos do regime inaugurado por Hugo Chávez, admirado pelo presidente
brasileiro. Chávez e Maduro produziram a maior tragédia humanitária em um país
sul-americano em tempos de paz. A estatização sem freios, a ocupação das
empresas do Estado por apaniguados da cúpula chavista, a perseguição à
oposição, fizeram a proeza de derrubar para menos da metade a produção de
petróleo do país, que tem as maiores reservas do mundo - praticamente sua única
riqueza.
Após derrota em eleições parlamentares em
2015, Nicolás Maduro convocou uma Assembleia Constituinte de cartas marcadas e
revogou o Legislativo, depois de ter dominado o Judiciário e a corte eleitoral.
O fechamento do regime acompanhou a explosão inflacionária e outro feito
chavista - encolher em 50% o PIB do país em poucos anos. O órgão para
refugiados da ONU estima que 8,9 milhões de venezuelanos deixaram o país até
2022 para fugir da fome. O Brasil acolheu 609 mil venezuelanos até agosto de
2020 e, hoje, o número de migrantes aqui é de cerca de 300 mil.
Lula despreza a realidade quando se trata
de amigos ideológicos, como Daniel Ortega, da Nicarágua, Fidel e Raul Castro,
de Cuba, e considera verdade o que lhe contam as pessoas mais próximas. Ontem,
Lula disse que ouviu de Celso Amorim, assessor especial para assuntos
internacionais, que esteve na Venezuela, que o país vive sob regime democrático
(O Globo). Os erros de Lula estão desenhando uma trajetória que une o
antiamericanismo tosco à afinidade com regimes autoritários, como Rússia e
China, com os quais convive nos Brics, que pode vir a se tornar uma aliança
ampliada contra os EUA. Seria um passo ruim para o país e destrutivo para a
reputação de Lula que, no Brasil, respeita a democracia e suas regras. No
cenário doméstico, a bajulação a Maduro acirra a oposição e afasta
simpatizantes que o apoiaram nas eleições exatamente para barrar um outro
projeto ditatorial, o de Jair Bolsonaro.
A visão de Lula sobre a ditadura bolivariana é divisiva e não traz ganhos ao Brasil. A América do Sul perde terreno na economia mundial e sua integração traria vantagens a todos. O presidente Lula teria outras coisas a fazer, como tentar consertar Mercosul, que deveria ser prioridade e o centro em torno do qual construir eixos políticos, econômicos e sociais da integração. É um percurso que se faz com mais trabalho e menos discursos.
Câmara suprime direitos indígenas
Correio Braziliense
O PL 490 abriu as porteiras para que
mineradores, garimpeiros, desmatadores e grileiros se apossem das terras
indígenas sem cerimônia
Em primeiro de janeiro, a sociedade ficou
emocionada com a representação da diversidade brasileira na rampa do Palácio do
Planalto para entregar a faixa ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mulheres e homens negros, indígenas, brancos, crianças e deficientes compunham
a face do Brasil miscigenado e plural. Seis meses depois, a cerimônia foi
rasgada, e confirmou-se a ilusão constitucional de que todos são iguais perante
a lei. Nesta terça-feira, por 283 votos a 155, a Câmara dos Deputados — casa
representante dos cidadãos — aprovou o Projeto de Lei 490, que dispõe sobre o
marco temporal para a demarcação dos territórios indígenas ocupados até 5 de
outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Os deputados aprovaram
uma lei ordinária para mudar a Carta Magna, em detrimento dos direitos
indígenas e favorável aos interesses dos opositores dos povos originários.
Os deputados decidiram suprimir o direito
dos indígenas aos seus territórios originários, embora eles estivessem aqui
antes da chegada brutal dos colonizadores europeus. O espaço ocupado por esses povos,
se totalmente reconhecido, representa menos de 14% do território nacional. Ou
seja, 86% estão à disposição do poder público e da sociedade para que as
políticas de Estado sejam capazes de eliminar a miséria, a fome e as tragédias
sociais que impõem ao Brasil a eterna condição de "país em
desenvolvimento". Em 523 anos, o Brasil não conseguiu chegar ao patamar de
nação desenvolvida.
O PL 490, construído em base suspeita de
ser inconstitucional, vai além. Abriu as porteiras para que mineradores,
garimpeiros, desmatadores e grileiros se apossem das terras indígenas sem
cerimônia. É questionável a afirmação do relator do projeto, Arthur Maia
(União-BA), de que a lei chega para acabar com os conflitos por terras. Os
embates dos indígenas contra seus predadores não vão cessar. Eles reagirão aos
intrusos. Mas estarão desprotegidos, o que, como sempre, os tornam presas
fáceis dos agressores. Os parlamentares ignoram o que ocorre na Terra Yanomami,
no Vale do Javari e em outras aldeias asfixiadas por garimpeiros, desmatadores
e grileiros. Os invasores têm arsenal suficiente para eliminar os povos
indígenas, seja pelas armas, seja pela contaminação dos indivíduos com doenças,
seja pela destruição da floresta e dos rios que lhes garantem alimentos.
A aprovação do PL 490 é mais uma derrota do
governo do presidente Lula. Tanto durante a campanha eleitoral quanto depois de
chegar ao Palácio do Planalto, ele reafirmou compromissos com a política
ambiental e com os povos originários e tradicionais. Garantiu que coibiria o
desmatamento das florestas, sobretudo, na Região Amazônica. Se Lula contava com
o apoio dos legisladores, não levou a sério a composição do Congresso, dominado
por representantes do agronegócio, dos anti-indígenas e dos antiambientalistas.
Hoje, o descompromisso do parlamento com a questão ambiental é notório. A
maioria é negacionista em relação aos fenômenos climáticos, que só podem ser
mitigados com a preservação das florestas e com outras iniciativas que levem o
país à adoção de uma economia verde.
Neste cenário, as populações indígenas e tradicionais têm relevante papel para a preservação do patrimônio natural. No Brasil que vive de esperanças que nunca se concretizam, resta a expectativa de o Senado fazer uma correção em que prevaleça o mandamento da Constituição. Conta-se ainda com o desfecho do julgamento do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 7 de junho. É esperar para ver se a vida dos indígenas tem valor e importância para o Brasil, a fim de preservar a diversidade demográfica.
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