Folha de S. Paulo
O mérito da extrema direita foi extrair do
medo e da raiva do brasileiro o combustível para sua boataria
Fábulas são eficientes recursos
pedagógicos. Fábulas infantis foram usadas desde sempre para que toda noite as
crianças assimilem valores, representações e significados compartilhados em sua
comunidade.
E tão cientes estamos de que se educa por
meio de mitos, relatos e lendas mais do que por qualquer outro meio, que até os
textos sagrados mais arcaicos, transmitidos oralmente ou por escrituras, são em
grande parte coleções de histórias.
Há vários lugares-comuns nas histórias que
contamos. Um desses lugares-comuns diz respeito aos personagens usados para se
colocar os ouvintes exatamente na posição cognitiva e na disposição emocional
que o narrador deseja.
O bicho-papão, por exemplo, representa o que nos assombra e deve ser temido, a condensação do mal. O sedutor —que, literalmente, nos desvia do caminho— é outro lugar-comum das fábulas moralizantes. Não por nos assombrar, mas, ao contrário, porque captura nosso desejo, como o lobo mau que desencaminhou a menina do chapeuzinho vermelho e a levou sorrateiramente à floresta sombria.
A política é também uma arte narrativa,
pois depende da conquista de corações e mentes, e de histórias emocionantes e
plausíveis que são o meio mais curto e eficiente para a realização dessa
tarefa.
Novos movimentos políticos não se
estabelecem sem capturar a imaginação de uma parte importante da sociedade, sem
novas mitologias políticas que redesenhem valores e virtudes, sem uma nova
épica.
Na semana passada, flagramos um dos
roteiristas desses novos movimentos, Eduardo
Bolsonaro, enquanto vendia a sua história para —vejam só— lobistas de
armas.
"Prestem atenção na educação dos
filhos. Tirem um tempo para ver o que eles estão aprendendo nas escolas e não
vai ter espaço para professor doutrinador tentar sequestrar nossas crianças.
Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante de drogas que
tenta sequestrar e levar os nossos filhos para o mundo do crime. Talvez até o
professor doutrinador seja ainda pior."
O professor doutrinador é personagem
frequente nessa forma de fabulação que são os boatos que os ultraconservadores
contam e em que acreditam. Assim como o gay pedófilo, o liberal cristofóbico, o
esquerdista que induz criancinhas à homossexualidade, a pessoa trans que se
esgueira em banheiros unissex para espiar mulheres, o sinistro comunista,
dentre outros tantos tipos extravagantes que povoam as suas histórias de terror
moral, o professor doutrinador, basicamente, serve para assombrar.
Aliás, o
grande mérito da extrema direita no período da sua ascensão foi a sua
capacidade de identificar os estratos de medo e de raiva dos brasileiros e de
extrair deles o combustível para a sua boataria.
Na doutrina por trás da fábula, o professor
doutrinador é um bicho-papão e um lobo mau. Ele sequestra e alicia criancinhas,
mas é, também, a soma de todos os nossos medos, uma vez que a sua maldade
consegue alcançar até mesmo a dimensão mais preciosa e protegido da nossa vida
particular: nossos filhinhos.
Depois de identificar o mal e de isolá-lo
em um grupo, os professores, duas ações precisam ser tomadas. A primeira é uma
clivagem moral, pela qual nos separamos dos que participam ou são cúmplices da
maldade, no caso, a esquerda progressista, classe a que os docentes
pertenceriam.
Com isso, os virtuosos conservadores
reivindicam sua superioridade moral ante o vício e a malignidade dos que
profanam a infância. A segunda ação requerida depois de isolar a maldade
consiste em projetá-la sobre quem pode ser materialmente punido: o bode
expiatório.
Lugares-comuns dizem muito sobre as
sociedades e os grupos em que prosperam, pois costumam expressar e, ao mesmo
tempo, reforçar, determinados sentimentos subjacentes aos coletivos, como
hostilidade, esperanças ou temor.
A distribuição proporcional do tipo de
personagem tende a indicar qual é a moral dominante em um grupo: excesso de
confiança e otimismo dão margem a personagens de sonhos dourados; desespero
social e moral em baixa são povoados por personagens de pesadelos:
bichos-papões, lobos maus e bodes para a conveniente expiação coletiva.
Não sei quantos creem nas
fábulas que o bolsonarismo conta para assombrar e organizar a raiva, a
ansiedade e a frustração das massas ultraconservadoras a que se dirigem. Só sei
que os seus roteiristas e dramaturgos suam a camisa várias vezes todos os dias
para, como diria Carluxo, disputar a narrativa. E vender assombrações.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
Análise brilhante! Parabéns ao autor e ao blog que divulga o trabalho dele.
Postar um comentário