É necessário reequilibrar a Câmara
O Globo
Omissão de três décadas do Congresso
contribuiu para ampliar distorções na distribuição dos deputados
Por unanimidade, o Supremo
Tribunal Federal (STF) decidiu que o Congresso precisará definir o número de
deputados de cada estado de acordo com a população. É
exatamente o que determina o artigo 45 da Constituição Federal. O motivo é dar
a cada eleitor brasileiro peso comparável na Câmara Baixa do Parlamento.
Não se trata, é bom lembrar, de peso equivalente. Ao manter limites mínimo (8) e máximo (70) para as bancadas, a Constituição cria distorções intrínsecas (o voto de um roraimense para deputado equivale ao de dez paulistas). Mas isso não justifica ampliar as distorções. É inacreditável que a proporção atual seja idêntica à definida em 1993. Há 30 anos, a Câmara ignora as mudanças populacionais registradas por três edições do Censo. Um estado como Santa Catarina, com população de 7,6 milhões, tem 16 cadeiras na Câmara, enquanto o Maranhão, com 6,7 milhões de habitantes, tem 18.
Os 11 ministros do STF deram prazo até
junho de 2025 para redistribuição das vagas. Caso o Legislativo continue a se
omitir, o TSE ficará com a tarefa. A apreciação do tema foi motivada por uma
ação protocolada em 2017 pelo Pará, um dos estados mais afetados pela
sub-representação. Uma projeção do Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar (Diap) com base no último Censo estima que os paraenses terão
direito a eleger mais quatro deputados, mesmo número que ganhará Santa
Catarina. Amazonas terá dois a mais. Ceará, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais
um cada. O Rio perderá mais vagas (quatro), seguido de Bahia, Paraíba, Piauí e
Rio Grande do Sul (duas) e Alagoas e Pernambuco (uma).
É compreensível que as bancadas dos estados
que perderão representantes façam barulho. Mas, até o momento, nenhuma
liderança ousou argumentar contra o artigo 45 da Constituição. Ele estabelece
de modo claro que, enquanto a Câmara deve seguir distribuição proporcional à
população, no Senado todos os estados têm direito ao mesmo número de cadeiras:
três. A Câmara Alta funciona, na nossa arquitetura institucional, como meio de
equilíbrio de poder entre entes grandes e pequenos, ricos e pobres. Defender um
sistema com sub-representados e hiper-representados também na Câmara subverteria
o princípio segundo o qual o voto de todos deve ter o mesmo peso.
Críticos da decisão do STF tentam minar a
legitimidade do último Censo. É a mesma tática dos municípios cujos repasses
federais serão afetados pela redução populacional. Mas não adianta culpar o
mensageiro pela mensagem desagradável. Enquanto o Censo traz a melhor
aproximação possível para a população brasileira, é patente a omissão do
Congresso. Quando o Pará entrou com a ação, o então presidente do Senado,
Eunício Oliveira (MDB-CE), tentou negar a demora. O ministro do STF Luiz Fux,
relator do caso, foi certeiro ao dizer que o atraso era “ofensa ao direito
político fundamental ao sufrágio das populações dos estados sub-representados
e, por conseguinte, ao princípio democrático”.
Já houve tentativa de acabar com a
protelação. Em 2013, o TSE buscou alterar as bancadas, mas o STF entendeu que a
tarefa cabia ao Legislativo. O tempo passou e nada foi feito. É certo que não é
missão fácil. Muitos deputados terão de concordar em diminuir a representação
de seus próprios estados. A dificuldade, porém, não pode ser pretexto para
descumprir a Constituição e perpetuar uma injustiça.
Não faz sentido estender desoneração da
folha salarial para municípios
O Globo
Medida se justifica no setor privado por
gerar empregos. No setor público, tal lógica não se aplica
Tem sido infelizmente comum no Congresso a
prática de usar um Projeto de Lei em tramitação para emendá-lo com dispositivos
sobre outro assunto, o proverbial “jabuti”. Foi mais uma vez o que aconteceu no
Projeto de Lei que prorroga até 2027 a desoneração da folha de salários de 17
setores essenciais para a geração de empregos e renda. Desta vez, em benefício
de prefeituras.
No Senado,
acrescentaram ao texto a redução de 20% para 8% na contribuição previdenciária
de municípios de até 142.600 habitantes. Na Câmara, emenda do
deputado Elmar Nascimento (União-BA) manteve o benefício, mudando o critério
(de população para renda per capita). A perda para os cofres da Previdência é
estimada em R$ 9 bilhões — justamente num momento em que o governo precisa
aumentar as receitas, de modo a cumprir as metas fiscais.
Ao contrário da emenda dos municípios, o PL
da desoneração das empresas não transfere despesas à União. Entre 2017 e 2022,
os setores que puderam funcionar com a nova contribuição previdenciária criaram
1,2 milhão de postos de trabalho. O problema dos municípios é de outra
natureza. Não pode ser tratado como a desoneração da folha de empresas
privadas, que contribuem com impostos para União, para estados e para os
próprios municípios.
A lógica que rege a desoneração da folha
das empresas não se aplica ao setor público. No caso das corporações, a troca
dos 20% da contribuição previdenciária pela incidência de alíquotas de 1% a
4,5% sobre o faturamento já provou ser instrumento eficaz para manter e criar
empregos. O caixa da Previdência se beneficia com as novas contratações
decorrentes da desoneração. O alívio a caixa de municípios, em contraste, não
gera nem elimina postos de trabalho, pois os servidores municipais têm
estabilidade. Apenas atende ao clamor de prefeitos sem recursos, preocupados
com as eleições do ano que vem.
É verdade que apenas o aumento do salário
mínimo anunciado pelo governo deverá gerar impacto de R$ 5 bilhões nos caixas
municipais. Mas, se os municípios estão com dificuldades, deveriam tratar de
fazer ajustes. De acordo com levantamento do próprio Ministério da Previdência,
menos de um terço dos municípios realizou a reforma previdenciária determinada
na Emenda Constitucional que mudou as aposentadorias e pensões em 2019. Os
prefeitos deveriam tratar disso como prioridade.
Não dá para misturar a Previdência
municipal com a desoneração de empresas de setores fundamentais. O risco, com a
emenda, é o PL ter de voltar para a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado,
quando o próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já se comprometera
com a votação final da proposta nesta semana. A relatora do projeto na Câmara,
deputada Any Ortiz (Cidadania-RS), não desconsidera as dificuldades dos
municípios, mas diz, com razão, que a prioridade é aprovar a matéria o mais
rapidamente possível.
Estados reclamam de caixa vazio e União
eleva limite de crédito
Valor Econômico
Tesouro raramente conseguiu recuperar
recursos com a execução de contrapartidas de Estados e municípios que deixaram
de pagar empréstimos garantidos pela União
Depois de terem passado os dois primeiros
anos da pandemia com os caixas cheios, os Estados reclamam de falta de dinheiro
neste ano. Chegou a conta daquele período em que o governo federal fez repasses
para compensar a queda da arrecadação e atender a demanda dos sobrecarregados
sistemas de saúde e serviços de assistência social estaduais, e os gastos foram
reduzidos por uma legislação especial que congelou os salário dos servidores,
suspendeu os concursos e os pagamentos das dívidas com a União.
A pressão pelos reajustes salariais voltou
já no ano passado. Para complicar, no segundo semestre de 2022, o governo
Bolsonaro impôs a redução do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e
telecomunicações para conter a inflação em período eleitoral, cortando uma das
principais fontes de arrecadação dos Estados.
As consequências ficaram evidentes nos
resultados do primeiro semestre deste ano, conforme levantamento feito
pelo Valor, que
mostrou queda nas receitas e o aumento dos gastos, principalmente com pessoal (Valor, 21/08). Para complicar,
a base de comparação das receitas é elevada, uma vez que a arrecadação havia
crescido no primeiro semestre de 2022 com o aumento da inflação e o impacto da
invasão da Ucrânia pela Rússia nos preços das commodities e do petróleo.
A receita tributária de 26 Estados e do
Distrito Federal diminuiu 7,8% em termos reais no primeiro semestre em
comparação com o mesmo período de 2022, encolhendo a receita corrente, que
recuou 2,3%. Por outro lado, as despesas correntes cresceram 4,7% reais no
primeiro semestre, infladas principalmente pelo aumento de 6,6% do gasto com
pessoal, que representou 58,3% do total. Contratações e a demanda por reajustes
salariais dos servidores já vinham pesando nas contas desde o início do ano. A
elevação do piso salarial dos professores e dos profissionais da saúde e do
próprio salário mínimo são fatores que vão manter a pressão.
Outro levantamento do Valor mostrou que o Rio
Grande do Norte já estava acima do teto estabelecido pela Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF) no início do ano passado e continuou gastando.
Minas Gerais e Rio de Janeiro romperam o limite máximo de despesa de pessoal em
abril. Outros três Estados, Rio Grande do Sul, Roraima e Acre, superaram o
limite prudencial.
Esse ambiente afeta o humor dos
governadores em relação à reforma tributária, que vai alterar diretamente a
receita com ICMS. Um dos pontos de atrito é o artigo incluído no apagar das
luzes no texto da reforma aprovado na Câmara dos Deputados, que permite a
Estados criar novos impostos, defendido por Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul e Pará. Ele autoriza que governadores apliquem uma tributação sobre
produtos primários e semielaborados até 2043. Os recursos seriam destinados à
infraestrutura. Para os críticos, fragiliza-se o objetivo da reforma de
simplificar e unificar impostos.
Nesse momento, o governo federal chega com
um pacote importante que muda as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)
e o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para os entes muito endividados, além de
alterar as condições de acesso ao crédito pelos Estados e municípios, e da
obtenção de garantias a concessões e Participações Público-Privadas (PPPs). Algumas
medidas ainda precisam passar pelo Legislativo.
As propostas geraram reações variadas.
Algumas foram apoiadas e consideradas necessárias, outras, especialmente as
relacionadas ao crédito, foram vistas com desconfiança e receio. Há um razoável
consenso e até apoio de governadores de que as regras da LRF e da RRF
precisavam ser modernizadas. Criada em 2017 e revista em 2021, a LRF ainda tem
algumas amarras como o prazo de ajuste, considerado curto, e que pode ser agora
ampliado de 9 para 12 anos; e a rigidez prescrita para se chegar lá. De modo
que mudanças nesses pontos foram consideradas bem-vindas.
O pacote, apresentado no mês passado,
inclui também mudança em critérios para cálculo do rating dos Estados, medido
pela capacidade de pagamento, acesso para municípios menores, e alterações nas
regras para que bancos públicos ofereçam garantias a PPPs e possibilidade de
emissão de debêntures com isenção de Imposto de Renda para investimentos, entre
outras. Essa parte é que inspira maior preocupação. Ainda está viva na memória
a crise de endividamento dos Estados provocada pela abertura das torneiras do
crédito entre 2012 e 2014 pela ex-presidente Dilma Rousseff e seu ministro da
Fazenda, Guido Mantega.
O Conselho Monetário Nacional (CMN) elevou em R$ 12 bilhões o limite para contratação de operações de crédito realizadas por Estados e municípios, sendo R$ 9 bilhões para operações com garantia da União e R$ 3 bilhões para as sem garantia da União, a partir de setembro. Levantamento recente mostra que o Tesouro raramente conseguiu recuperar recursos com a execução de contrapartidas de Estados e municípios que deixaram de pagar empréstimos garantidos pela União. No início da série histórica, em 2016, a União recuperou R$ 2 bilhões, em preços da época. Desde então, o valor vem caindo, até atingir zero de janeiro a junho deste ano.
Não foi golpe
Folha de S. Paulo
Erros na economia e na política, não
pedaladas, levaram ao impeachment de Dilma
O ex-presidente Fernando Collor de Mello
foi absolvido, em dois julgamentos distintos no Supremo Tribunal Federal, de
acusações da época em que governava o país, em temas que precipitaram o seu
impeachment em 1992. Nem por isso se cogita rever o veredito do Congresso
Nacional que o depôs ou oferecer-lhe recompensas.
O precedente vem à memória quando a
confusão politiqueira entre os trâmites da Justiça comum, de um lado, e os
procedimentos para os crimes de responsabilidade, do outro, irrompe no
noticiário, por iniciativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O mandatário
diz estar estudando oferecer reparação à ex-presidente Dilma Rousseff —não
bastou a sinecura internacional com que a presenteou— em razão de uma ação que
a acusava de improbidade administrativa pelas chamadas pedaladas fiscais ter-se
mantido arquivada por decisão em segunda instância da Justiça Federal.
Pode-se discordar da utilização das
manobras orçamentárias da então presidente como razão formal para cassar-lhe o
mandato. Também é compreensível a crítica,
adotada por esta Folha à época, à banalização do impeachment,
uma espécie de bomba atômica institucional, para lidar com as crises políticas
recorrentes da República.
Outra coisa, muito diversa e equivocada, é
negar legitimidade ao processo e aos atores —o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal
Federal— que o conduziram.
A lei dos crimes de responsabilidade, que
define os motivos pelos quais as casas legislativas podem processar e depor o
presidente da República, é flexível a ponto de permitir o enquadramento de
virtualmente qualquer governante. Basta, por exemplo, o juízo subjetivo de que
ele procedeu "de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do
cargo".
Não foi a tecnicalidade das pedaladas
fiscais, de resto uma prática ofensiva ao Orçamento, que de fato derrubou Dilma
Rousseff. Ela caiu porque a sua política econômica produziu recessão monstruosa
no país. O PIB recuou 3,6% em 2015 e outros 3,3% no ano seguinte.
Nesse solo que se esfacelava, a inapetência
parlamentar da presidente —incapaz de sustentar com a poderosa máquina federal
um terço de apoio na Câmara dos Deputados— serviu de pá de cal.
A retórica de Lula pode até apontar para o
contrário, mas na prática ele empurrou os artífices da patuscada econômica
daqueles anos para a periferia de seu terceiro governo. Costura com o centrão
uma maioria no Congresso Nacional.
Quem merece reparação pelos erros da gestão
Dilma é o trabalhador brasileiro. Se Lula não repetir os erros de sua
antecessora, contribuirá fortemente para isso.
Pecados taxados
Folha de S. Paulo
Tributo sobre artigos nocivos é correto,
mas é preciso boa regulamentação do IVA
Impostos, em regra, não desfrutam de grande
popularidade. Uma exceção parecem ser os incidentes sobre produtos nocivos à
saúde, cujo aumento hipotético mereceu o apoio de 94% dos entrevistados em
pesquisa Datafolha encomendada pela organização não governamental ACT Promoção
da Saúde.
O dado é pertinente porque a reforma
tributária em tramitação no Congresso prevê a criação de um imposto seletivo
sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, a serem definidos, bem
como as alíquotas, em lei posterior.
Tributos do tipo, conhecidos em inglês como
"sin taxes" (impostos sobre o pecado), são comuns em outros países e
oneram tipicamente bebidas alcoólicas e cigarros, podendo atingir ainda bebidas
açucaradas, alimentos ultraprocessados e jogos de azar, entre outros.
Aqui e agora, o federal IPI exerce
parcialmente esse papel, com alíquotas mais altas sobre determinados artigos.
Estados também podem fazê-lo por meio do ICMS.
Há bons argumentos em favor dessa
sobretaxação, dado que álcool, tabaco e outras substâncias podem gerar danos
não apenas para quem as consome mas também para a coletividade —na forma de
mais gastos para o SUS, por exemplo. Entretanto há limites econômicos e
políticos para seu uso.
Conforme a Folha noticiou, parte
dos especialistas crê que o imposto
seletivo pode se tornar uma fonte importante de arrecadação, capaz
de permitir uma alíquota menos indigesta para o futuro imposto sobre valor
agregado (IVA), que, com a reforma, seria o principal tributo do país e
incidiria sobre quase todos os bens e serviços.
O risco embutido nesse raciocínio é o de
exageros tanto na lista de produtos ditos pecaminosos como nas alíquotas a
serem aplicadas. Trata-se, afinal, de uma tributação regressiva, que onera
sobretudo os mais pobres. Pode-se, ademais, criar estímulo ao contrabando e à
falsificação.
Do ponto de vista político, o Datafolha
mostra que o apoio à
sobretaxação decresce quando são mencionados os produtos a serem atingidos.
O aumento de impostos sobre combustíveis fósseis, como gasolina e óleo diesel,
é aprovado por apenas 36% dos entrevistados.
É temerário, pois, imaginar desde já um papel arrecadatório mais relevante para o imposto seletivo. O essencial na reforma tributária é a regulamentação do IVA, que precisa ter a menor alíquota e o menor numero de exceções possíveis.
A nova pedalada moral de Lula
O Estado de S. Paulo
Ao distorcer o conteúdo de decisão judicial
para reeditar a historieta do golpe, Lula ofende o Congresso e o Judiciário – e
alimenta a ideia de que só é democrático o que lhe agrada
O presidente Lula acha que o Brasil deve
desculpas e reparações a Dilma Rousseff. Em entrevista durante sua passagem por
Angola, referindo-se à decisão do Tribunal Regional da 1.ª Região (TRF-1) de
arquivar uma ação de improbidade pelas “pedaladas fiscais”, Lula disse: “A
Justiça Federal absolveu a companheira Dilma da acusação da pedalada”. A
afirmação do presidente petista é mais uma tentativa de desinformar e confundir
os brasileiros. O TRF-1 nem sequer avaliou o mérito da acusação, tampouco
desautorizou a sentença do Congresso que condenou Dilma Rousseff por crime de
responsabilidade em função das pedaladas fiscais.
A decisão do TRF-1 foi proferida em ação de
improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal (MPF)
contra Dilma e integrantes de seu governo por valerem-se “dos altos cargos que
ocupavam na direção do governo federal para maquiar as estatísticas fiscais com
evidente propósito de melhorar a percepção da performance governamental e
ocultar uma crise fiscal e econômica iminente, ao tempo em que comprometiam
ainda mais a saúde financeira do Estado”. A acusação baseia-se em
irregularidades identificadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que
depois, por unanimidade, reprovou o governo, determinando que 17 autoridades
explicassem as práticas ilegais.
Como se sabe, o pedido de impeachment
contra Dilma Rousseff refere-se a esses mesmos fatos, em particular à edição de
três decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso e ao atraso
nos repasses de recursos do Tesouro a bancos públicos para o pagamento de
programas sociais. Autorizada sua abertura pela Câmara, o processo foi julgado
pelo Senado, que condenou Dilma Rousseff por crime de responsabilidade.
Em 2022, a ação de improbidade foi
arquivada pelo juízo de primeira instância. Ele não contestou a decisão do
Congresso, antes reconheceu que a presidente Dilma já havia sido condenada por
aqueles mesmos fatos no âmbito do processo de impeachment. Não cabia, portanto,
uma dupla responsabilização, agora por meio da Lei de Improbidade
Administrativa.
“Houve uma extinção da ação, sem resolução
do mérito”, disse ao Estado a advogada Vera Chemim, mestre em Direito Público
Administrativo pela Fundação Getulio Vargas. “Não é uma questão de inocentar, e
sim de caráter formal e processual.” A decisão do TRF-1 simplesmente rejeitou o
recurso do MPF que havia questionado o arquivamento em primeira instância.
Em vez de respeitar os fatos, Lula e o PT
querem, no entanto, confundir a população, dando a entender que a Justiça teria
declarado agora que as pedaladas fiscais não existiram. No conto petista, a
decisão do TRF-1 seria a grande prova do golpe. “Entendo que cabe um projeto de
resolução nesse sentido com base na decisão do TRF-1, que deixa claro que o
impeachment foi uma grande farsa, que a história das pedaladas foi uma armação,
literalmente um golpe”, disse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ao jornal
Folha de S.Paulo. “O Brasil deve desculpas à presidente Dilma, porque ela foi
cassada de forma leviana”, afirmou Lula.
A rigor, essa tentativa de distorção de uma
decisão judicial por parte do PT é uma agressão às instituições democráticas.
No processo de impeachment de Dilma Rousseff, não houve nenhum golpe. O Congresso
aplicou a Constituição e as leis do País. E justamente porque foi uma
condenação perfeitamente válida, a Justiça reconheceu agora que não cabia
instaurar um novo processo pelos mesmos fatos.
Em vez de acolherem o conteúdo da decisão
do TRF-1, Lula e seu partido preferem fabricar desinformação. E essa manobra
não consiste meramente na invenção de uma versão irreal dos fatos, o que por si
só é muito grave: afinal, Lula está usando um cargo público para distorcer a
compreensão por parte da população de uma decisão da Justiça. Com a reedição da
historieta do golpe, Lula e o PT desautorizam uma vez mais o exercício de uma
atribuição constitucional do Congresso. Alimentam, assim, a equivocada ideia de
que só é democrático o que lhes agrada.
Quando os dois estão errados
O Estado de S. Paulo
Governo abusa da edição de medidas
provisórias, mas isso não é razão para chantagem de Lira. Requisito
constitucional protege o interesse público, não barganhas privadas
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
mandou alguns recados ao governo nos últimos dias. Depois de semanas, submeteu
ao plenário da Casa o projeto que cria o novo arcabouço fiscal e a medida
provisória (MP) que reajusta o salário mínimo e corrige a tabela do Imposto de
Renda da Pessoa Física, ambos aprovados. Por outro lado, recusou-se a pautar
duas medidas provisórias que estavam próximas de vencer e, por isso, devem
perder a validade.
As medidas provisórias tratavam de um plano
para retomar obras na área da educação básica e de uma proposta para
regulamentar mudanças no valerefeição. Segundo o jornal Valor Econômico, Lira
tomou a decisão por conta própria, sem consultar a posição das lideranças.
Embora a escolha dos projetos a serem pautados seja uma prerrogativa do
presidente da Câmara, a postura não combina com o discurso de Lira. Basta
lembrar que, na cerimônia de posse na presidência da Câmara em 2021, o deputado
defendeu o princípio da coletividade e da colegialidade – “a Câmara do nós”, em
oposição à “Câmara do eu”.
O Executivo engoliu as derrotas a seco, a
ponto de o líder do governo na Casa, José Guimarães (PT-CE), ter assumido o
compromisso de que novas medidas provisórias somente seriam editadas apenas em
caso de urgência – ou seja, admitiu que o Palácio do Planalto não tem cumprido
os requisitos constitucionais para a edição de MPs. A preferência será pelo
envio de projetos de lei, cuja vigência se inicia somente após aprovação do
Legislativo e sanção presidencial.
O tema das MPs é amplo, com vários aspectos
a serem considerados. Arthur Lira faz bem em tentar limitar o apetite do
Palácio do Planalto na edição de medidas provisórias, que, segundo a
Constituição, têm um caráter excepcional. Trata-se de ato do Executivo com
força de lei, a ser utilizado apenas em caso de relevância e urgência.
Desde 1.º de janeiro, foram publicadas 29
MPs – em média, quase uma por semana. Tal número mostra que o governo atual tem
uma compreensão bastante ampla dos seus poderes. No entanto, apenas 4, das 29,
foram efetivamente convertidas em lei, enquanto 11 caducaram. Essa baixíssima
taxa de conversão mostra o real apoio que o governo tem no Congresso. Não
consegue aprovar sequer os temas que, a princípio, seriam suas prioridades, a
merecer a edição de uma medida provisória.
A oposição de Arthur Lira às MPs não é
motivada, no entanto, pela letra da Constituição. O que parece mais incomodar o
deputado é a perda do poder que havia acumulado durante a pandemia de covid-19,
quando vigorou o rito extraordinário das medidas provisórias. À época, abriu-se
uma exceção para permitir que as MPs fossem apreciadas diretamente em plenário,
antes na Câmara e depois no Senado, com alterações feitas a toque de caixa
durante a votação – o que dava a Lira um poder rigorosamente desproporcional.
Na tramitação convencional, definida pela
Constituição, as MPs passam por comissões mistas antes de serem submetidas ao
plenário. Nelas, deputados e senadores se alternam na relatoria das propostas e
não é possível pautar, em plenário, mudanças que não tenham sido propostas
anteriormente, na fase da comissão.
O que tem ocorrido, na prática, é uma
subversão da Constituição: orientados por Lira, os partidos não indicam
deputados para as comissões, o que impede sua instalação. Sem as comissões, as
MPs não tramitam e acabam por perder validade ou serem aprovadas às vésperas de
caducar, com o texto mais facilmente moldado pela Câmara, como convém a Lira.
O governo tem abusado das medidas
provisórias – e, verdade seja dita, não é algo restrito a Lula. A solução para
os casos de abuso, nos quais se descumprem os requisitos constitucionais de
relevância e urgência, não é conferir mais poder a Lira. O caminho
institucional é a devolução da medida provisória ao Executivo, prerrogativa que
cabe ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). É urgente encontrar uma
via de mais equilíbrio nas relações entre Executivo e Legislativo que passe
longe da simples chantagem.
Um exemplo de cidadania
O Estado de S. Paulo
No Sistema Nacional de Transplantes, todos os brasileiros são tratados igualmente, sem privilégios ou distinções
O Brasil é um país fraturado por uma brutal
desigualdade em múltiplas frentes ligadas fundamentalmente à plena cidadania.
Desde o nível de renda ao acesso à educação e alimentação de qualidade,
passando por saneamento básico e segurança pública, para onde quer que se olhe,
lá está bem marcada a infame divisão informal dos brasileiros entre cidadãos de
“primeira” e “segunda” classes.
Em meio a tantas desigualdades, porém, há
uma ilha de excelência no setor público onde todos os brasileiros são tratados
como devem ser, ou seja, de forma humana e isonômica; e o primado da
Constituição segundo o qual “a saúde é direito de todos e dever do Estado” é
materializado de forma efetiva: trata-se do Sistema Nacional de Transplantes
(SNT), gerido pelo Ministério da Saúde.
Há alguns dias, o apresentador Fausto
Silva, o Faustão, divulgou um vídeo no qual informava que, acometido por
insuficiência cardíaca grave, havia entrado na lista única de espera por um
transplante de coração. Realizada no domingo passado, a cirurgia foi, segundo o
boletim médico, bem-sucedida.
No vídeo, Faustão destacou que, embora
estivesse internado em um hospital particular de primeira linha na capital
paulista, seu transplante seguiria, como de fato seguiu, o mesmo padrão técnico
de qualquer outro realizado em usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso
ocorre porque todos os que precisam de um transplante de órgãos no País são
inscritos em uma lista de espera no âmbito das Secretarias Estaduais da Saúde
que alimenta a lista nacional do SNT, sendo uma fila para cada órgão.
A espera por um transplante não depende,
portanto, da situação econômica dos pacientes. Prevalecem, entre outros
critérios administrados com muita seriedade pela administração pública, a
gravidade do estado de saúde do potencial receptor e a compatibilidade entre
este e o órgão do doador. Não há razão para desconfiar da lisura de todo o
processo, da captação à cirurgia. Ao contrário, o SNT é motivo de orgulho para
toda a sociedade.
“No dia em que o Brasil funcionar como
funciona a lista única de transplantes, nós seremos de Primeiro Mundo. Não tem
‘QI’ (quem indica), não tem conta bancária. É uma das coisas mais equânimes que
existem”, disse a este jornal o cirurgião-chefe do serviço de transplante de fígado
do Hospital de Base de Rio Preto, Renato Ferreira da Silva.
De fato, no que concerne aos transplantes,
o Brasil já é um país de Primeiro Mundo – e com resultados muito superiores aos
de nações mais desenvolvidas. Existe aqui o maior programa público de
transplante de órgãos e tecidos do mundo, um serviço público de altíssima
complexidade que é oferecido de forma universal e gratuita por meio do SUS.
Sem dúvida, há pontos a serem aprimorados no SNT, sobretudo nos diagnósticos de morte encefálica e na captação de órgãos País afora – o que demanda investimentos. No entanto, o que mais parece faltar depende, em boa medida, da sociedade: o florescimento no País de uma cultura de doação de órgãos, ainda claudicante.
Cruzada contra o feminicídio
Correio Braziliense
Fenômeno complexo e multifatorial, a
violência de gênero é face abominável da mentalidade machista e patriarcal que
subsiste em diferentes estratos e segmentos da sociedade brasileira
Na semana passada, os moradores do Distrito
Federal testemunharam, pela 25ª vez este ano, uma mulher perder a vida pelas
mãos de um homem. O assassinato de Andreia Crispim, 50 anos, evidenciou de
maneira dolorosa que a violência contra mulher é uma calamidade nacional.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado recentemente, o
país registrou um aumento de 6,6% nos casos de feminicídio em 2022, na
comparação com o ano anterior. São Paulo concentra o maior de registros, com
195 mortes. Minas Gerais também contabilizou uma maior ocorrência de
feminicídios — foram 171 mulheres assassinadas em 2022, contra 155 óbitos
no ano anterior, em um incremento de 9,9%.
E esses números referem-se apenas a um tipo
específico de crime. O feminicídio é o ato derradeiro de uma escalada de
violência contra a mulher. As primeiras agressões podem se manifestar de
diversas formas — psicológica, patrimonial, moral, sexual — até
atingirem o nível mais perigoso, o dos ataques físicos. Especialistas costumam
descrever essa degradação das relações humanas na forma de um ciclo, dividido
em quatro fases: encantamento, tensão, violência e arrependimento. No início do
relacionamento, o agressor começa com gentilezas. Aos poucos, entretanto,
começam a surgir tensões no relacionamento, até descambarem nas agressões
físicas. Após a explosão de violência, o agressor é tomado de arrependimento. E
recomeça a aproximação com a vítima.
O problema da violência contra a mulher é
que, frequentemente, ele se perpetua em forma de espiral. Quando o homem volta
a cometer brutalidades, após as fases de arrependimento e reaproximação, os
ataques vêm ainda mais violentos. As medidas protetivas, determinadas pela
Justiça, buscam interromper a continuidade das agressões. Mas elas têm se
mostrado insuficientes para coibir a sanha dos covardes. Andreia Crispim, a
vítima do Distrito Federal citada acima, estava formalmente protegida pelo
benefício. Mas, na vida real, o ex-companheiro ignorou os avisos da lei. Na
quinta-feira, abordou novamente a mulher e deu o aviso final: “Você merecer
morrer”.
Fenômeno complexo e multifatorial, a
violência de gênero é face abominável da mentalidade machista e patriarcal que
subsiste em diferentes estratos e segmentos da sociedade brasileira. Nas
últimas duas semanas, vereadoras e deputadas estaduais mineiras têm sofrido
ameaças recorrentes por defenderem bandeiras progressistas ou em razão da opção
sexual. Além de atacar até as filhas das parlamentares, os autores do crime
utilizam termos abomináveis, como “estupro corretivo” para “curá-las” do
“homossexualismo feminino”. Ao Estado de Minas, a vereadora de Belo Horizonte
Iza Lourença (PSOL) resumiu: “Vivo hoje sob violência psicológica”. Negra,
bissexual e mãe de uma menina de 3 anos, a parlamentar de 29 anos é vítima dos
extremistas da misoginia. Ameaças de teor semelhante também foram dirigidas a
mulheres parlamentares do Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul.
Não se trata, pois, de fenômeno isolado. A
violência de gênero exige uma mobilização nacional, que vai muito além de ações
do poder público. É preciso que governos municipal, estadual e federal atuem de
maneira firme em políticas para combater o machismo, a intolerância e a
violência doméstica. Integrantes de assembleias também podem contribuir com uma
legislação que complemente o arcabouço já definido pela lei Maria da Penha e
pela lei do feminicídio. Por fim, passou da hora de escolas, empresas,
associações comunitárias — a sociedade, enfim — darem um basta a
tanta violência. O Brasil precisa iniciar urgentemente uma cruzada contra o
feminicídio e a violência de gênero. Basta de tanta brutalidade.
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