O Globo
O Brasil ainda vive o resquício de quatro
anos em que a ditadura foi venerada. A Argentina começa a ver o mesmo pesadelo
O candidato da extrema direita na
Argentina, Javier Milei, tem sido definido como “libertário”. Uma chapa que
defende ideias da última ditadura argentina é qualquer coisa menos libertária.
Na política não há conexão entre a palavra e o seu sentido. O Partido Liberal
conspirou contra a liberdade. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, é
do Republicanos e quer homenagear um expoente da repressão política do governo
militar. Por definição, uma ditadura não é uma República. As pautas mais
reacionárias no Congresso têm o apoio do Progressistas. A Câmara de Porto
Alegre criou o “Dia do Patriota” para ser comemorado em 8 de janeiro, dia em
que vândalos atacaram as sedes dos poderes, e destruíram o patrimônio da
Pátria. O ministro Luiz Fux mandou suspender esse despropósito.
As palavras estão fora do lugar e ficam ainda mais nesses momentos em que o país vive espasmos retardados do projeto autoritário que foi derrotado na eleição e no 8 de janeiro. A intenção do governador de São Paulo de homenagear Erasmo Dias dando o nome dele a um viaduto é um desses espasmos. Dias foi o secretário de segurança que invadiu com tropas a PUC de São Paulo, em 1977, foi parte do aparelho de repressão da ditadura e fez declarações em defesa da tortura. Por ordem da ministra Cármen Lúcia, o governador de São Paulo terá que explicar ao STF a razão da homenagem. É parte da Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada por partidos e entidades da sociedade civil.
É tudo tão fora da hora que o deputado
autor da homenagem não foi reeleito. Frederico D’Ávila, do PL, defensor desse
agente da ditadura, nem mandato tem mais. Sua proposta foi aprovada agora na
Assembleia Legislativa e o governador se apressou a propor a homenagem.
O Brasil passou quatro anos tolerando a
apologia de torturadores. Quem faz apologia de crime, criminoso é. Portanto é
bom que ele e o presidente da Assembleia, André do Prado, se expliquem e que a
Justiça seja rigorosa com quem faz o elogio de crimes tipificados em lei.
Governador e deputado precisam responder se concordam com os atos praticados
por Erasmo Dias. No governo Bolsonaro, o Brasil aceitou a defesa insistente de
Carlos Alberto Brilhante Ustra. Na campanha de 2018, perguntei ao então
candidato a vice-presidente, Hamilton Mourão, porque ele definia o coronel
Ustra como herói, se durante o período em que comandou o DOI-Codi dezenas de
prisioneiros foram mortos sob tortura. Mourão respondeu: “heróis matam”. Ustra
não foi herói, foi torturador, criminoso. Depois de quatro anos de ofensa aos
valores democráticos, à Constituição do país e às convenções internacionais de
direitos humanos, ficou evidente que a tolerância com o intolerável não é o
caminho.
A Câmara dos Vereadores de Porto Alegre
teve que recuar da sua decisão, mas é importante que ela explique porque chegou
a instituir o 8 de janeiro como o “Dia do Patriota”. Nesse dia da infâmia, o
país, suas instituições democráticas foram atacadas. Quem as atacou está
respondendo pelos seus crimes. Quem acha que eles foram patriotas deve ser considerado
cúmplice do crime.
A Argentina começa a ver o mesmo pesadelo
que vivemos aqui. De acordo com a correspondente Janaína Figueiredo, em coluna
publicada neste jornal no último dia 22, a candidata a vice na chapa de Javier
Milei, Victoria Villarruel, define como “mães de terroristas”, as “mães e avós
da Praça de Maio” que procuram há décadas pelos corpos dos seus filhos
desaparecidos e pelos seus netos roubados. Milei tem defendido ideias tão fora
do lugar, como a de fechar o Banco Central e ter um mercado de venda de órgãos
humanos, que até a imprensa tem dificuldade de defini-lo. Mas ele é o que é: um
candidato da extrema direita, a mesma de Trump e Bolsonaro, com os mesmos maus
propósitos em relação às instituições. A vice de Milei quer fazer uma revisão
da década de 70, num discurso muito parecido com o que vimos aqui, em que o
golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu foram novamente chamados de
“revolução”.
O primeiro passo para corrigir qualquer
rota é definir corretamente atos e palavras. Quem quer homenagear Erasmo Dias
acha certo invadir uma universidade com tropas, prender professores e
funcionários. Concorda com a tortura de presos políticos e prefere a ditadura à
democracia. O governador de São Paulo precisará dizer ao Supremo Tribunal Federal
se é isso mesmo que quis dizer com a homenagem.
2 comentários:
■Se algo é intolerável, então NÃO SE TOLERA.
▪Óbivio, não é? Mas parece que não tão óbivio assim!
Há muita coisa intolerável aqui no Brasil e no mundo ; e TUDO que é intolerável tem que ser combatido!
A Miriam Leitão, neste artigo, fez o recorte de duas, dentre muitas coisas intoleráveis:: a CORRUPÇÃO e o GOLPISMO dentro das nossas forças militares.
CORRUPÇÃO
Com que força e com que moral nós vamos combater a intolerável corrupção dos militares se o presidente da república também for um corrupto*?
GOLPISMO
Com que força e com que moral nós vamos combater o intolerável golpismo de militares aqui no Brasil se o próprio Presidente da República for um apoiador de alinhados seus que em outros países tomaram o poder usando estatégias golpistas? E se as Forças Políticas que o presidente da república lidera forem elas também apoiadoras de ditadores que usam estratégias de golpe, com que moral nós vamos combater aqui o golpismo de militares?
O artigo de Miriam Leitão é importante, mas nós não podemos ser rasos se quisermos combater no Brasil o que é intolerável, mas por outro lado aceitarmos dar força e moral para quem é fã das mesmas intolerâncias, sem denunciá-las permanentemente. Ainda mais quando quem pratica e apoia intolerãncias estiver no poder.
Lembro de Mourão dizendo a mesma coisa no ''Canal Livre''.
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