O Globo
É preciso dotar o ordenamento jurídico e o
sistema de Justiça responsável por aplicá-lo de higidez, constância e
previsibilidade
Quando assumiu a presidência do Supremo
Tribunal Federal, em setembro de 2018, o ministro Dias Toffoli admitiu
abertamente a missão de reduzir o que chamava de protagonismo do Judiciário e
os atritos internos na Corte. Nos primeiros meses de sua gestão, que antecedeu
a eleição de Jair Bolsonaro, decidiu não pautar a discussão sobre prisão após
condenação em segunda instância, pois era sabido que o entendimento poderia
mudar e que o principal beneficiário da mudança seria o então ex-presidente
Lula.
A decisão de reduzir a exposição pública e o protagonismo do STF durou pouco na gestão Toffoli. Em 14 de março do ano seguinte, ele já abriu um inquérito que se destinaria a apurar ameaças e fake news contra ministros da Corte e seus familiares, entregou a relatoria a Alexandre de Moraes sem sorteio e, desde então, não foram poucas as decisões cruciais e as reviravoltas de entendimento do Supremo, em decisões monocráticas e colegiadas, determinantes politicamente no país.
Hoje a Corte começa mais um desses
capítulos cruciais, com a primeira leva de julgamentos dos que perpetraram os
ataques golpistas de 8 de janeiro. Como em todas as grandes questões em que o
Judiciário está envolvido, também nessa há uma divisão na sociedade entre os
que torcem pela condenação exemplar dos quatro primeiros réus e os que apontam
abusos na condução dos processos.
No segundo grupo, a defesa dos acusados
aponta a ausência de individualização de condutas — queixa, aliás, similar à de
outras ações em que réus eram julgados em “grupos” ou “núcleos”, como a do
Mensalão em 2012.
O início dos julgamentos do 8 de Janeiro
coincide com a reta final do mandato de Rosa Weber, a mais discreta das
ministras da Corte, na presidência. Nem a aversão que ela tem a exposição e a
polemizar via imprensa em causas momentosas a poupou de ter de conduzir o
tribunal na quadra sombria em que uma horda tentou suprimir a democracia
invadindo as sedes dos Três Poderes.
A despeito de sua discrição, ela não
esconde o desejo de dar o pontapé inicial em julgamentos que, no entendimento
da maioria do colegiado, são fundamentais para que se mostre à sociedade que há
limites que não podem ser ultrapassados numa democracia e que o Judiciário será
implacável com a defesa das instituições e das liberdades.
Rosa também tenta limpar a gaveta de
discussões tão antigas quanto divisivas na sociedade, como a ação do PSOL que
tenta descriminalizar o aborto no primeiro trimestre de gestação, sob o
argumento de que sua proibição viola direitos fundamentais das mulheres. É
considerada improvável a chance de êxito da ADPF na atual formação da Corte,
mas, ainda assim, ela entende que é seu papel colocar o assunto, de que é
relatora, em discussão.
O rol de temas na ordem do dia do STF, que
ainda inclui a delação do tenente-coronel Mauro Cid e a recente decisão de
Toffoli anulando as provas do acordo de leniência da Odebrecht, mostra que a
ideia de retirar o protagonismo do Supremo foi ingênua ou fingida, uma vez que
quem a proferiu acabou por criar algumas das situações que mais colocaram o
tribunal em evidência e dividiram a sociedade e o mundo jurídico.
Caberá à próxima gestão, de Luís Roberto
Barroso, que toma posse no dia 28, tentar pacificar e padronizar alguns
entendimentos, em temas que vão das próprias delações até a extensão do foro
privilegiado — todos com amplas implicações sobre a vida social e política de
hoje, ontem e amanhã.
Não basta mudar de ideia ao sabor das
circunstâncias políticas e das conveniências pessoais, ou mesmo de imperativos
históricos, como o golpismo bolsonarista ou a pandemia. É preciso dotar o
ordenamento jurídico e o sistema de Justiça responsável por aplicá-lo de
previsibilidade, constância e higidez. Os três princípios passam longe do
vaivém da Corte nas últimas quadras.
2 comentários:
Muito bom.
Verdade.
Postar um comentário