Folha de S. Paulo
Recusa a condenação do grupo descortina uma
avaliação envenenada por opções ideológicas
Não se sabe ao certo o número de israelenses
mantidos em cativeiro pelo Hamas. Dias atrás, porém, a organização terrorista
capturou dois novos reféns, de alto perfil: António Guterres, secretário-geral
da ONU, e o governo do Estado de Israel. O primeiro proferiu uma caprichosa
justificativa para os atos de terror do 7/10. O segundo adotou como represália
a negação de vistos a autoridades humanitárias da ONU, o que simboliza seu
desprezo pela ajuda emergencial aos civis palestinos.
O discurso de Guterres na ONU qualificou os atentados do Hamas como injustificáveis para, na sequência, argumentar que eles "não ocorreram num vácuo", mas no contexto de "56 anos de ocupação sufocante". No fundo, é a mesma lógica de vozes estatais da direita, como o presidente turco Erdogan, que descreveu o Hamas como "um grupo de libertação", e da esquerda acadêmica, como os professores da USP que atribuíram "esse ponto de violência extremada" à ocupação dos territórios palestinos.
A recusa a uma condenação incondicional (por
oposição à condenação retórica protocolar) do terror do Hamas descortina, além
da ausência de bússola moral, uma avaliação histórica envenenada por prévias
opções ideológicas. De fato, porém, o Hamas não surgiu da ocupação, não combate
a ocupação e não prega a convivência entre o Estado judeu e um Estado palestino
independente.
O Hamas é um galho da árvore da Irmandade
Muçulmana, organização fundamentalista islâmica criada no Egito em 1928 –ou
seja, duas décadas antes da fundação de Israel. Sua atuação em Israel/Palestina
começou em 1987, durante a primeira Intifada, que foi uma revolta civil e
popular contra a ocupação israelense. Mas –eis o ponto!– o Hamas opunha-se ao
método da Intifada original e logo escolheu a via do terror. A escolha refletia
uma estratégia: a rejeição do projeto de paz em dois Estados.
Os Acordos de Oslo de 1993, fruto da primeira
Intifada, foram imediatamente denunciados pelo Hamas como traição à causa
palestina. O motivo encontra-se na Carta fundadora do grupo, que prega uma
jihad pela eliminação do Estado judeu. O "grupo de libertação"
(Erdogan) quer "libertar" os israelenses de seu Estado. A
"violência extremada" do 7/10 (professores da USP) deriva de um
objetivo exterminista que independe da ocupação israelense.
O Estado de Israel viola os direitos
nacionais palestinos e contamina a própria sociedade israelense ao persistir na
ocupação ilegal dos territórios palestinos. Tem razão, porém, ao denunciar a
imoralidade inscrita nas sentenças que recobrem a barbárie do 7/10 com uma
pátina de legitimidade histórica. Guterres converte-se em refém do Hamas ao
sugerir que o terror é consequência da ocupação.
Mas são dois os reféns. Netanyahu e seu
cortejo de sabotadores da paz são reféns do Hamas desde 2009, quando
inauguraram a estratégia de convivência violenta. "Aqueles que querem
frustrar a possibilidade de um Estado Palestino devem apoiar o fortalecimento
do Hamas e a transferência de dinheiro para o Hamas. Isto é parte da nossa
estratégia", esclareceu o primeiro-ministro numa conferência do Likud, em
2019. A chacina do 7/10 provou que o empreendimento fortaleceu militarmente o
Hamas. Agora, Israel fortalece politicamente a organização terrorista ao violar
reiteradamente as leis de guerra.
O planejamento do Hamas é mais político que
militar. Seus líderes apostam num cessar-fogo imposto a Israel pelo clamor
internacional que acompanha a crise humanitária em Gaza. Rússia e Irã vocalizam
o apelo na arena diplomática. A inclinação do governo de Netanyahu pelo atalho
da punição coletiva, que se reflete no bloqueio total imposto ao território,
colore a paisagem nos tons mais adequados à estratégia do Hamas. O gesto obtuso
de negação de vistos é um prêmio extra concedido ao exército do terror.
2 comentários:
Olavo de Carvalho se orgulharia do seu quase discípulo, hoje substituto!
Pois é.
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