Por André Fontenelle (Especial para O GLOBO — Paris)
Professor de História Contemporânea do Mundo Árabe no Collège de France, onde Lévi-Strauss e Foucalt lecionaram, afirma que único ‘consolo’ da situação atual é a volta do debate sobre a situação palestina
No prestigioso Collège de France, mais tradicional
instituição acadêmica de Paris, que já teve entre seus professores Claude
Lévi-Strauss, Roland Barthes e Michel Foucault, Henry Laurens é titular há duas
décadas da cadeira de História Contemporânea do Mundo Árabe. O professor de 69
anos, autor do livro “La Paix Impossible” (“A paz impossível”, editora Fayard,
2015), disse ao GLOBO nunca ter estado tão pessimista em relação ao conflito. O
único “consolo”, segundo ele, é a volta da discussão de uma solução para a
população palestina. A porta de saída para o conflito entre israelenses e
palestinos, porém, está distante, porque existe “um abismo de ódio” entre os
dois lados.
Qual a sua reflexão em relação aos
acontecimentos das duas últimas semanas?
Como historiador, me faz pensar em primeiro
lugar nas guerras de 1948 e 1967. Em 1948 por causa das atrocidades cometidas
nos kibutzim, e na cidade de Sderot, que correspondem a terras confiscadas dos
habitantes árabes em 1948 e 1949 — o que não justifica de modo algum as
atrocidades cometidas. E 1967 porque remete ao fato de que a chamada Guerra dos
Seis Dias supostamente resolveria tudo, levaria a uma paz duradoura e a
excelentes relações entre árabes e israelenses. Isso mostra um fracasso total.
Como evitar a escalada?
A paz está distante há uns 15 anos. A última negociação séria foi por volta de 2008. O pensamento estratégico do conjunto dos países ocidentais, dos EUA, foi mais ou menos o seguinte: reduzir os palestinos a uma violência de baixa intensidade; fazer a paz entre Israel e os estados árabes, escanteando os palestinos; e aqueles que falassem da Palestina eram os chatos fora da ordem do dia. Hoje a Palestina voltou à ordem do dia, mas há um penhasco, um abismo de ódio entre os dois povos.
Qual era a intenção do Hamas, na sua visão,
com os ataques de 7 de outubro?
Não há como saber os objetivos, mas da
perspectiva do Hamas, um ponto é obter a libertação de prisioneiros árabes —
uma reivindicação constante — através da tomada de reféns. Praticamente não há
família palestina, na Cisjordânia ou em Gaza, que não tenha um membro em uma
prisão israelense, às vezes há dezenas de anos. Outro ponto que é possível concluir,
a partir dos acontecimentos, é mostrar que o cerco é vão e mandar pelos ares
toda a política ocidental no Oriente Médio, o que para seus aliados, iranianos
e outros, não é pouca coisa.
Qual teria sido o impacto da resolução
apresentada pelo Brasil na ONU, e rejeitada graças ao poder de veto exercido
pelos EUA?
Nulo, de qualquer maneira. Há dezenas de anos Israel não tem respeitado diversas resoluções do Conselho de Segurança, especialmente aquelas que invalidam as colônias judias na Cisjordânia e todas as transformações de Jerusalém, além de outras resoluções sobre a anexação das colinas de Golã [em 1981].
Há uma via para um processo de paz?
O processo de paz, em que eu acreditava nos
anos 1970, poderia ter dado certo se não tivesse ocorrido a colonização
[assentamentos israelenses na Cisjordânia]. Eu fiz um artigo, na época dos
Acordos de Oslo [anos 1990], que dizia: se os palestinos não perderem terras,
já sairão ganhando, porque eles terão contido a colonização. Yitzhak Rabin e
Shimon Peres duplicaram a colonização. Hoje, os colonos aumentaram
consideravelmente, há apenas migalhas de Palestina. Então é difícil ver que
mapa territorial poderia ser traçado, diante da atual fragmentação palestina.
Portanto, perdemos o bonde. Na primeira década do milênio, havia
possibilidades. Hoje me parece ainda mais difícil pelo fato de os colonos
israelenses serem muito ligados à extrema direita religiosa. Se houver qualquer
insinuação de devolução de terras, poderia ocorrer uma guerra civil em Israel.
Hoje cada um enxerga no outro a própria morte.
No Brasil também, uma parte da esquerda é
acusada de complacência com o terrorismo, por apoiar a causa palestina...
Pode-se discutir o conceito de terrorismo.
Esse é outro debate, ao mesmo tempo jurídico e filosófico. Eu costumo dizer
que, se você olhar as Declarações dos Direitos do Homem americana e francesa,
do século 18, elas preveem o direito à insurreição — não estou justificando de
modo algum a violência. Sempre defendi que haja um acordo político, baseada
numa gestão dupla e igualitária da terra e do conjunto dos recursos. Mas eu
acreditava mais nisso nos anos 2000. Hoje não creio mais. No caso específico da
França, a esquerda lutou pela independência dos países colonizados, sobretudo
na guerra da Argélia. Esse racha colonial dividiu a esquerda francesa nos anos
1950 e 1960, e cada vez que a questão colonial é recolocada, o racha reaparece.
Em discurso na quinta-feira, Joe Biden disse
que a sobrevivência da democracia depende do apoio americano à Ucrânia e a
Israel...
No caso da Ucrânia, certamente. No caso de
Israel, há sempre a ambiguidade do termo “democracia”. Para a França, a Argélia
colonial era uma democracia. A África do Sul do apartheid era uma democracia.
Fala-se que o sistema de Israel é um apartheid. Isso pode ser discutido. Os
árabes em Israel não têm a totalidade dos direitos dos cidadãos israelenses.
Mas quanto aos territórios ocupados, não há dúvida, não são uma democracia.
Como o senhor vê a postura do Irã, até agora,
em relação ao conflito?
O Irã está contente que as cartas tenham sido
invertidas, nessa espécie de jogo complexo que está sendo jogado. Certamente
quem sai ganhando com a impopularidade cada vez maior dos EUA e dos outros
países ocidentais, hoje, no conjunto do Oriente Médio e para além dele, é o
Irã. Quanto mais bombardearem Gaza, mais o Irã será popular. Desse ponto de
vista, o Irã é o vencedor. Por outro lado, o Irã continua em um relativo
compasso de espera. O Hezbollah é um elemento importante na dissuasão do Irã
contra um ataque israelense contra seu dispositivo nuclear. Raciocinando
friamente, o Irã não tem interesse em um conflito direto entre o Hezbollah e
Israel, porque perderá uma carta importante de sua dissuasão. Esta semana, uma
fragata americana interceptou disparos que vinham do Iêmen. Os Houthis não
devem ter agido inteiramente sozinhos. Será que houve ordens vindas de Teerã?
Se queriam enviar um míssil de longo alcance em direção a Israel, é uma coisa;
se o alvo era mesmo o navio americano, é outra. Mas para o Irã, os Houthis são
mais descartáveis.
De um modo geral, o senhor soa pessimista em
relação à sequência do conflito...
Eu já estava bastante antes. Os últimos acontecimentos só acentuaram isso. O único “consolo”, se é possível chamar assim, é que muitos, como eu, diziam que era preciso voltar a discutir a questão palestina, e nos respondiam: “Vocês são imbecis, isso deixou de existir.” Jake Sullivan [conselheiro de Joe Biden] declarou uma semana antes [dos ataques do Hamas]: “O Oriente Médio nunca esteve tão calmo”. Agora voltamos aos fundamentos. Mas nem de longe há uma porta de saída.
2 comentários:
■Há uma importante reflexão a ser feita::
▪Nenhuma guerra entre democracia ocorreu, que eu lembre, em todos os dois últimos séculos.
Mesmo quando tenha havido confronto entre um país democrático e outro não-democrático, NENHUM confronto ocorreu entre eles após o país não-democrático aderir à democracia.
Imperdível.
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