sábado, 16 de dezembro de 2023

José de Souza Martins* - Uma análise sobre o banimento de monumentos

Valor Econômico

As demolições simbólicas dos marcos de épocas históricas não mudam a realidade do presente porque não mudam o passado de que resulta

A Câmara Municipal do Rio aprovou lei que veda “manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens que façam menções positivas e/ou elogiosas a escravocratas; eugenistas; e pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista”.

A lei determina que os monumentos “já instalados em espaço público deverão ser transferidos para ambiente de perfil museológico, fechado ou a céu aberto, e deverão estar acompanhados de informações que contextualizem e informem sobre a obra e seu personagem”.

No Brasil tem crescido a hostilidade contra os marcos da memória, como esses, um fenômeno social, político e cultural que expressa grandes e significativas mudanças na mentalidade da população e o desenvolvimento de uma consciência de identidade social inconformista e até mesmo insurgente.

A depredação da escultura de Borba Gato, em São Paulo, em 2021, por um grupo que age em nome de uma suposta revolução periférica, é mais reacionária do que revolucionária.

Na relação entre a lei do Rio e o ato contra a estátua de Borba Gato há uma distância enorme quanto ao que significam as estátuas de praça pública à luz das diferentes mentalidades desta sociedade. Propõem tanto uma consciência crítica do processo histórico quanto negam a possibilidade dessa consciência crítica.

Situar historicamente o presente em relação ao passado iníquo é uma coisa. Demolir um marco do passado iníquo é negar a coisa que o representa sem negar o que é representado. A opção do Rio é a de propor a superação do inaceitável. A opção de São Paulo foi a da tosca e alienada intolerância.

Há variantes antissociais dessa modalidade de ação em outros episódios brasileiros. Como o da depredação do monumento em memória dos 21 camponeses do MST mortos em 1996 pela Polícia Militar do Pará em Eldorado de Carajás, quando iam a Belém pela desapropriação de uma fazenda ocupada por 3,5 mil famílias de sem-terra.

Banimentos de monumentos não são movimentos sociais, os de afirmação dos historicamente excluídos da sociedade. São reações contra os resíduos de diferentes modalidades de autoritarismo social e politicamente excludentes. As vítimas são as da demora no reconhecimento do direito à igualdade social e de que o presente não lhes tem sido senão um tempo de carências e desconsiderações.

São atos que expressam modalidades primitivas de reação contra as contradições, injustiças e anomalias deste modelo de sociedade. Remetem ao movimento dos quebradores de máquinas na Inglaterra da Revolução Industrial, os Ludditas, que se opunham às inovações tecnológicas poupadoras de mão de obra na indústria têxtil. O movimento não se orientava pela superação social das inovações econômicas, mas por sua simples recusa.

No Brasil são ainda comuns movimentos contra as injustiças sociais baseados na mera negação dos seus fatores e causas. São reações e recusas de situação e não práxis socialmente transformadora.

As demolições simbólicas dos marcos de épocas históricas não mudam a realidade do presente porque não mudam o passado de que ele resulta. Apenas inviabilizam, porque ocultam em vez de revelar o desenvolvimento de uma consciência crítica da herança de causas de nossos problemas de hoje e das condições para superá-los.

Consciência crítica, porque científica. E não simploriamente a mera recusa de um Brasil que foi sem constituir ela consciência fundamentada do país que pode ser e não é, bloqueado pelo passado vivo da realidade social, não pelas estátuas.

A lei aprovada pela Câmara do Rio difere do primitivismo da demolição simbólica ao propor lugar apropriado para a colocação das obras, com a nota de esclarecimento sobre a identidade do desomenageado que a consciência crítica do presente despeja para novo e pedagógico endereço.

O sociólogo francês Henri Lefebvre é referencial estudioso da cidade e do urbano e neles da função da monumentalidade simbólica das estátuas públicas. Elas são mais do que sua estrutura física. São a compreensão que delas podem ter aqueles cuja vivência do atual lhes revela o invisível do possível que a sociedade contém para superar o que foi e é, e já não quer nem pode ser.

Expressões do passado vencido, monumentos tornam-se meios de crítica política do inaceitável, fazem de Caxias um subversivo da pós-modernidade.

Tudo o que socialmente somos é consequência de ações e circunstâncias desses estatuados, mesmo as “erradas”, que não subscrevemos hoje, e que, pelo caminho que hoje considerados torto, nos trouxeram ao que somos. Erro não é o monumento, é continuar na tortuosidade.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

 

Um comentário:

Daniel disse...

O colunista tentou abordar a questão, mas acho que não foi feliz, tendo escrito um texto pouco claro. Qual é mesmo a FUNÇÃO (ou as funções) dos monumentos nos espaços públicos? Sem esclarecer isto, ficam comprometidas as análises sobre propostas e ações que o autor mencionou.