Valor Econômico
O discurso anarcocapitalista foi bom na
campanha, mas para governar Milei vai precisar de ortodoxia e imaginação
A palavra “louco” tem dois significados,
refere-se a alguém que denota alterações patológicas, assim como a uma pessoa
que pensa e atua de maneira diferente da grande maioria. Um exemplo é o “Loco”
Bielsa, campeão olímpico e da Copa América por seus métodos não convencionais.
Javier Milei foi eleito porque fez um
diagnóstico acertado e uma campanha nada convencional, que funcionou. Atuou nas
duas maiores vontades dos argentinos. O fim da inflação, propondo a dolarização
e o fechamento do banco central e o “Que se vayan todos” (Que todos vão
embora), propondo a eliminação da “casta” - referindo-se aos políticos.
O Loco não é burro. Foi criativo na campanha. Apareceu com uma motosserra para cortar gastos públicos, com uma nota de 100 dólares grande com a imagem dele e discursos inflamados autodenominando-se anarcocapitalista, contra os governos, e anunciando o corte de relações com o Brasil, a China e o Papa. Ganhou e ganhou bem, sem estrutura partidária.
Quase tudo o que ele propôs não vai cumprir. É razoável afirmar que ele, como economista de formação e de profissão, sabe que as propostas de dolarizar, acabar com o banco central, cortar relações com o Brasil e a China, reduzir impostos e eliminar a “casta” são inviáveis. Boa parte do eleitorado também deveria saber. Votaram nele pela vontade e necessidade que a Argentina tem de mudar.
Os desafios dele são consideráveis. As
finanças governamentais estão em desordem, com déficit de 4% do PIB. O
funcionalismo está inchado, a dívida pública é de 85% do PIB, há subsídios que
têm que ser revistos e algumas das províncias estão com dificuldades
financeiras. As estatais são um dreno de recursos com má gestão.
Quase tudo o que Milei propôs, não vai
cumprir. É razoável afirmar que ele, como economista, soubesse que suas
propostas são inviáveis. Boa parte do eleitorado também deveria saber. Votaram
nele pela necessidade que a Argentina tem de mudar
Ele tem que reduzir o Estado, mas não pode
deixar de proteger os mais pobres e de oferecer serviços públicos de qualidade.
Sem a geração de excedentes fiscais, é impossível reduzir a pobreza, gerar
trabalho, atrair investimentos, acabar com a inflação e melhorar a dinâmica da
dívida pública. Um ajuste fiscal é sempre antipopular. Implica oposição
política.
A competitividade empresarial na Argentina é
baixa. Está em 126º lugar no ranking entre 190 países. Abrir uma empresa é
demorado, a alfândega é lenta, pagar impostos é complicado, a oferta de crédito
é baixa (14% do PIB), a obtenção de alvarás é delongada e a Justiça é morosa e
complexa. Isso dificulta a produção interna e afasta investidores. O
investimento é baixo (15% do PIB).
O dólar é outro problema. A moeda é usada
para unidade de conta e reserva de valor por mais da metade da população
argentina. Estima-se que tenham cerca de US$ 200 bilhões entesourados. O
mercado cambial argentino é um emaranhado com restrições diversas e está
fragmentado em vários segmentos. Unificar esses segmentos e liberar o câmbio
exigirá muito. O país não tem reservas, não tem acesso ao crédito internacional
e tem um déficit em transações correntes (de 3% do PIB).
A inflação está em 140% e há alguns preços
reprimidos por conta de tabelamentos, tarifas subsidiadas e o atraso cambial em
alguns produtos. O ajuste desses preços reprimidos é inflacionário e o risco de
uma hiperinflação é real. Precisa fazer o país crescer. A renda per capita é a
mesma que a de 15 anos atrás.
Milei tem que superar múltiplos desafios e
não tem tempo. Paciência política não é o ponto forte dos argentinos. Desde que
Perón foi deposto, cinco presidentes eleitos eram não peronistas (Illia,
Frondizi, Alfonsín, de la Rua e Macri), quatro deles não conseguiram terminar
seus mandatos.
O que se falou na campanha, fica na campanha.
Logo depois do anúncio de sua vitória na eleição, a futura chanceler veio ao
Brasil para convidar Lula para a posse. Ligou para o Papa e o convidou a vir
para a Argentina. Está montando uma equipe competente. Adotou um discurso
conciliador. Anunciou que seriam dois anos difíceis, com estagflação, baixo
crescimento e inflação.
O discurso de anarcocapitalista foi bom na
campanha, mas na realidade ele vai precisar de ortodoxia e imaginação. Não pode
abrir mão de ter boas relações com o Brasil. Precisa de um banco central para o
sistema de pagamentos, supervisão bancária e a emissão de moeda por alguns
anos. Uma dolarização é inviável. Reduzir impostos está fora de questão.
Precisa também de apoio de políticos de
outros partidos. Mesmo tendo ganho com uma maioria esmagadora, 55% no segundo
turno, sua base parlamentar é baixa. Seu partido tem 10% dos assentos no Senado
e 15% na Câmara dos Deputados. A experiência dele como gestor é mínima.
Ele precisa de apoio popular e mostrar
serviço logo. Ele não tem tempo, nem os dois anos que pediu. Precisa fazer
mágica. Alguns países em situações difíceis, como o Brasil em 1967, a Islândia
em 2008 e a Argentina em 1991, conseguiram fazer a mágica. Milei fez um bom
diagnóstico na campanha. Agora a questão é a terapia adequada para governar.
O mais urgente e o mais importante é acabar
com o risco de uma hiperinflação. É possível desenhar um projeto com um ajuste
gradual de preços, tarifas, salários, subsídios e câmbio e uma indexação
diária. Demanda uma negociação política e ganhar apoio de políticos,
empresários, banqueiros, sindicalistas e da população em geral, e ao mesmo
tempo aplicar alguns remédios amargos.
Na frente externa tem que buscar aliados, e
não desafetos. Os Brics são o pilar com mais potencial de ajudar a Argentina
nos próximos anos. Tem que avançar em reformas que necessitam do apoio do
Congresso. Ele tem ajuda do ex- presidente Macri e de seu partido. Está com uma
equipe econômica muito boa. O ano que vem vai ter uma safra melhor, é mais uma
ajuda. Mercados deram as boas-vindas a ele, também ajuda.
Ele precisa fazer um bom governo. É difícil,
mas é possível. A Argentina nasceu de uma revolução pacífica de cidadãos
cansados da irracionalidade da condução do então vice-reinado do Rio da Prata
em 1810. Na sua história, em várias ocasiões o país se superou e surpreendeu o
mundo. Vai conseguir agora? O Brasil e o mundo torcem para que El Loco Milei
supere os desafios e consiga.
*Roberto Luis Troster é economista e argentino.
Um comentário:
Digamos que seja quase impossível.
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