Folha de S. Paulo
Sem transformação no desenho institucional
global, o equilíbrio possível do pós-1988 vem sendo tensionado
Como a questão das emendas orçamentárias é
tratada na literatura comparada? A dificuldade é que elas não existem em muitas
democracias, como já mostrei aqui na coluna.
No parlamentarismo, a aprovação de uma emenda
equivale a um voto de desconfiança no governo. Nos regimes presidencialistas,
as emendas adquirem características radicalmente distintas do caso brasileiro,
cuja singularidade é a barganha Executivo x Legislativo. Nos EUA, ela tem lugar nas comissões
congressuais: a barganha é intralegislativa.
A dinâmica é distinta porque o orçamento é globalmente impositivo nos EUA. O Executivo não detém a prerrogativa de contingenciar o orçamento premiando a lealdade de sua base como no Brasil. Por que o sistema não degenera em ingovernabilidade fiscal numa dinâmica tipo tragédia dos comuns naquele país e nas democracias parlamentares? A resposta está no sistema partidário.
No parlamentarismo ou no presidencialismo
bipartidário, o partido majoritário e seus membros internalizam os custos
políticos dos problemas fiscais. Sob o multipartidarismo estes incentivos são
mais fracos, mas ainda assim a formação de coalizões tem bases programáticas
sobretudo nos sistemas parlamentares.
O pior cenário é quando o sistema partidário
é fragmentado e localista. O rótulo partidário significa pouco e a
sobrevivência política dos parlamentares depende de emendas. A solução
—claramente sub-ótima— para lidar com o dilema é a delegação de poderes para o
Executivo federal, o único ator com incentivos fortes para o controle fiscal
(mais fraco ou forte conforme a ideológica e as crenças dos governos). Foi
feito em 1988.
As emendas e a distribuição dos ministérios e
dos cargos nas estatais têm papel fundamental para a formação da base
parlamentar multipartidária. Emendas mantêm uma relação substitutiva com os
ministérios; elas são utilizadas para garantir apoio de partidos não
contemplados com ministérios.
Este arranjo institucional produz distorções
alocativas (desigualdade entre beneficiários de gasto; perda de racionalidade
de políticas públicas) e malaise crônica pela exposição pública "de como as salsichas são feitas". Mas permite
ganhos de troca entre os interesses localistas de parlamentares e os interesses
nacionais do Executivo.
A impositividade das emendas individuais e
coletivas aprovadas em 2015 e 2019 reduz o espaço para a barganha, e altera o
equilíbrio geral. Há risco de "tragédia dos comuns" (o montante das emendas é crescente e ameaçador"),
sobretudo se o Executivo não partilhar o governo com a base. Na ausência de uma
transformação no desenho institucional global, o equilíbrio possível (second
best) do pós-1988 vem sendo tensionado.
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