Valor Econômico
São fundamentais a definição clara de metas e
indicadores, monitoramento contínuo, articulação de organizações e dos entes
federativos, engajamento da burocracia e construção de lideranças em vários
níveis
Se Lula tivesse um espelho mágico para o qual
pudesse perguntar o que deveria fazer para ter sucesso no terceiro mandato, a
resposta poderia ser a seguinte: “Presidente, é necessário corrigir os males
deixados pela gestão bolsonarista, além de recuperar bons programas e políticas
que foram criados e desenvolvidos depois da Constituição de 1988, inclusive em
alguns dos seus mandatos anteriores. Mas o futuro está batendo à sua porta e é
preciso decifrá-lo antes que ele devore seu governo”.
O enigma proposto ao final pelo espelho
mágico é a grande questão do governo Lula III: o passado, tanto o recente
desastre bolsonarista quanto as respostas bem-sucedidas e saudosas dos outros
dois mandatos, não serão suficientes para melhorar o desempenho governamental e
garantir um fôlego político maior ao lulismo. É possível até obter a reeleição
do presidente em 2026 jogando quase parado, sem grandes mudanças, mas tudo será
mais difícil com essa estratégia, seja na construção da governabilidade nos próximos
anos, seja num possível resultado eleitoral que não seria muito diferente do
quase empate de 2022.
O governo Lula III precisa ter uma agenda específica voltada à realidade do século XXI, o que exige um novo impulso inovador e reformista. Trata-se de montar uma agenda com prioridades claras e foco preciso, baseada em ideias novas e bons mecanismos de gestão. Afinal, o sucesso do Plano Real e do Bolsa Família não derivou apenas de concepções econômicas e sociológicas corretas. A administração cuidadosa de todas as dimensões da implementação foi fundamental nesses dois casos bem-sucedidos.
Abrir novas frentes de atuação não quer dizer
que se deva abandonar por completo os vetores do passado. Há, em primeiro
lugar, uma longa lista de tarefas para atacar o legado deletério do
bolsonarismo na agenda pública. Por exemplo, combater o desmatamento e o
garimpo ilegal, recompor a burocracia pública, atacar o modelo de fake news que
se multiplicou com a liderança bolsonarista e, o mais importante, julgar e
prender quem comandou a tentativa de golpe de Estado.
Entretanto, ficar só nessa agenda contra os
males legados pelo bolsonarismo é uma armadilha. É preciso não só retirar os
detritos deixados no caminho pelo antigo governo, mas ter uma nova rota a
propor. Se o governo Lula III ficar só olhando no espelho de problemas deixado
pelos bolsonaristas, o país avançará pouco. Mais do que isso, a polarização,
que aparentemente favorece os dois polos porque cria uma barreira de entrada a
novos líderes e grupos, diminui a amplitude de inovações e mudanças possíveis,
tornando o lulismo uma força apenas de retaguarda em relação à democracia. Sem
negar a importância desse papel histórico, o fato é que ele não garante o
futuro político dos aliados e herdeiros de Lula nem gera uma marca melhor para
o presidente na comparação com seus outros dois mandatos.
Trazer ideias e práticas que foram
construídas durante o lulismo ou mesmo a partir da Constituição de 1988 é uma
agenda por vezes também necessária. Os sistemas nacionais de políticas públicas
precisam voltar a guiar a articulação federativa, a participação da sociedade
civil nos assuntos governamentais tem de ser retomada, a defesa dos direitos
humanos merece voltar ao centro das preocupações governamentais e a área social
necessita ser o coração do governo como foi antes da gestão Temer - para não
falar no seu completo abandono por Bolsonaro. Não obstante, nem o que foi
bem-sucedido no passado deverá ser feito da mesma maneira. O governo Lula III
percebeu isso logo no início no caso do Bolsa Família, mas demorou para
entender a nova institucionalidade do Banco Central.
Uma nova realidade, muito mais complexa,
estruturou-se no país desde o final do segundo governo Lula. Isso já tinha
ficado claro durante a crise iniciada em 2013, mas o petismo até hoje não
entendeu boa parte daquele processo. Para citar alguns dos principais elementos
do cenário atual que não tinham um lugar central há dez anos, há a
informalização de amplos setores urbanos, o crescimento de grupos evangélicos
mais conservadores, uma geopolítica mais intrincada e com maiores riscos, a
manutenção de altas taxas de jovens fora da escola e do mercado de trabalho, o
aumento da importância da questão ambiental e sua difícil resolução num país
ainda viciado no atraso, bem como o vertiginoso crescimento do crime organizado
por todo o país, do Oiapoque ao Chuí.
Além disso, se é verdade que houve avanços
significativos durante o bipartidarismo presidencial de PSDB-PT, muitas
questões não foram resolvidas durante aquele período. A desindustrialização,
com todos os seus efeitos negativos em termos econômicos, sociais e políticos,
só aumentou nos anos FHC, Lula e Dilma. O saneamento básico avançou quase nada
desde a redemocratização e a questão da segurança pública sempre teve um lugar
menor na agenda de reforma das políticas sociais.
Tanto um avanço maior do país quanto a
construção de um mandato que não reduza o lugar de Lula na história dependerão,
assim, de uma reconfiguração da agenda pública, com novas soluções. Já há
exemplos interessantes, como a política de permanência de alunos do ensino
médio, por meio de uma bolsa mensal e uma poupança ao longo desse ciclo
escolar. Ainda falta definir como isso se casa com a própria reforma
curricular, a ampliação do ensino profissionalizante e da escola de tempo
integral. De todo modo, neste caso, há mais clareza sobre os caminhos do futuro
do que noutras áreas governamentais.
A exigência de uma reforma administrativa é
outra questão que o governo deve enfrentar. Não que o projeto em discussão na
Câmara Federal seja de boa qualidade. Na verdade, ele é péssimo, porque se
concentra numa discussão de redução de custos que não é resolvida pelo que é
proposto. Pior: favorece a elite do funcionalismo em detrimento dos
carregadores de piano que garantem, com maior ou menor qualidade, os serviços
públicos aos cidadãos.
A despeito disso, os serviços públicos têm de
melhorar, e muito, de qualidade, bem como a transparência dos atos e da posição
da burocracia constitui uma exigência cada vez maior dos cidadãos. Se o governo
não mostrar os caminhos novos, de forma sistêmica, poderá deixar que uma
discussão torta, criada por bolsonaristas que odeiam o Estado e os mais pobres,
ganhe o debate público. A proposta do concurso unificado é interessante como
outras ideias fragmentadas que têm surgido do Executivo federal, mas falta aqui
a apresentação de um projeto, com objetivos e instrumentos definidos num pacote
só. Há espaço aqui para o governo Lula III mostrar que tem soluções e
instrumentos que respondem às demandas do século XXI.
Faltam ideias novas em campos importantes
como segurança pública, primeira infância e criação de empregos para jovens que
estão fora da escola, para ficar em exemplos que têm um duplo impacto. São
questões relevantes para o futuro social e econômico do país, como também
atingem um eleitorado que em boa medida não votou em Lula em 2022. Óbvio que o
caminho não é a pirotecnia ou a defesa de uma panaceia que resolva tudo de uma
vez só. Mas são campos que podem gerar soluções engenhosas como foi o Bolsa Família,
que ia direto ao problema de forma inovadora e tinha uma gestão muito bem
articulada, com consequências positivas para o Brasil e para o lulismo.
Diagnosticar que há um problema não resolvido
é essencial, mas não é suficiente. Sem ter uma maior densidade industrial e
tecnológica, em temáticas atinentes à realidade atual, não haverá
desenvolvimento no Brasil. E a ideia de que o Estado não deve fazer nada e o
mercado resolverá tudo não tem base na realidade empírica - é só uma ideologia.
No fundo, o governo sempre é interventor, o que distingue os casos é se a ação
governamental foi bem ou malsucedida.
Dito isso, propor uma nova política
industrial não é um erro. Estudos recentes realçam a necessidade desse tipo de
política pública, com destaque para os trabalhos de Dani Rodrik, de Harvard. A
questão é, primeiramente, se o governo Lula está propondo a ideia correta nesse
sentido. A proposta apresentada se preocupou em se concentrar em temáticas
vinculadas a novas tendências, com grande conexão em relação àquilo que o
Brasil pode ter de vantagem comparativa, como a questão da transição
energética. Além disso, em vez de uma lista sem fim, foram escolhidos poucos
setores, o que facilita ter efetivamente uma estratégia. Porém, o modelo de
gestão dessa política está, ainda, bastante vago, sem clareza de como será sua
engrenagem.
Novas soluções só darão certo com
instrumentos bem alinhados de gestão. Nessa linha, são fundamentais a definição
clara de metas e indicadores, monitoramento contínuo, articulação de
organizações e dos entes federativos, engajamento da burocracia e construção de
lideranças em vários níveis das políticas públicas. Aliás, mais importante do
que ficar discutindo uma proposta mágica e redentora de reforma administrativa
é estruturar novos padrões de governança e gestão, capazes de alavancar boas
ideias e garantir melhores serviços aos cidadãos.
Para chegar ao futuro, Lula terá que
apresentar novas ideias e os meios para viabilizá-las. Não é uma tarefa fácil,
mas é inadiável, dirá o espelho mágico ao presidente.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Um comentário:
Excelente análise! O governo Lula ainda patina em vários setores, como o colunista mostra bem. Mas comparado ao DESgoverno e às ameaças golpistas de Bolsonaro, já melhorou a situação desastrosa que encontrou em quase todos os ministérios.
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