sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

José de Souza Martins* - A escravidão no púlpito

Valor Econômico

À luz da Bíblia, muitas concepções e atitudes que, do ponto de vista de nossos dias, são condenáveis, nos tempos bíblicos não o eram

Uma conferência evangélica sobre teologia, marcada para acontecer durante o Carnaval, na Paraíba, teria como orador destacado o pastor fundamentalista americano Douglas Wilson. Ele já não virá ao Brasil. O convite foi cancelado e ele próprio abriu mão da visita. É o que explica Anna Virginia Balloussier, na “Folha de S. Paulo”, em detalhado artigo.

O assunto é da maior importância no tenso cenário brasileiro de controvérsias ideológicas e sociais envolvendo religião e política. O nome do pastor foi impugnado especialmente por ser ele autor de obras sobre a justificativa bíblica da escravidão. Mas não o foi porque alguém estivesse em desacordo com ele. E sim por temor da nossa reação a essa concepção reacionária da condição humana. Seu discurso poderia ser interpretado como justificador da escravidão daqui.

À luz da Bíblia, muitas concepções e atitudes que, do ponto de vista de nossos dias, são condenáveis, nos tempos bíblicos não o eram. Caso da própria escravidão. Como no menor livro da Bíblia, a Carta de Paulo ao seu discípulo Filemom, no apelo a que acolha de volta Onésimo, seu escravo fugido: “Não já como servo, antes, mais do que servo, como irmão amado, particularmente de mim, e quanto mais de ti, assim na carne como no Senhor?”.

Não era uma defesa da liberdade, mas da fraternidade paternal entre o senhor e o escravo, em nome de Cristo. Em face dessa nova e diferente concepção das relações sociais, a do cristianismo, a escravidão era secundária. Uma desigualdade superada sem ser abolida, preservada em nome de uma reinterpretação cristã do elo de sujeição entre o dono e o cativo, o elo de um fratura entre o real e o imaginário.

Daí a necessidade, acenada por teólogos competentes, de rever e atualizar, na interpretação, as referências históricas da Bíblia para trazê-la para a historicidade do nosso tempo. Não se trata de mudar a Bíblia, mas de situá-la na temporalidade singular de sua leitura.

Foi justamente em decorrência de uma erudita série de conferências teológicas sobre as Cartas de Paulo, e especificamente em relação à Carta a Filemom, que o pastor e teólogo Ed René Kivitz, da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo, ao sublinhar esse aspecto do texto bíblico preconizou essa atualização de perspectiva que lhe custou injustiças e dissabores.

Também o concubinado é um item do texto bíblico. Figuras referenciais da realidade bíblica, como Davi e Salomão, tinham concubinas. Os cantares de Salomão e mesmo os salmos de David não raro são belos poemas eróticos, que um religioso de hoje não ousaria ler em voz alta do púlpito e menos ainda interpretá-los. Por isso mesmo, no cristianismo, a leitura e a interpretação dos textos sagrados não deve ser feita por amadores.

Infelizmente, em muitos lugares, também aqui no Brasil, as extensas desigualdades têm sido terreno fértil para o fundamentalismo religioso e, também, para o fundamentalismo político, como vimos na combinação de ambos nas manifestações de barbárie de 8 de janeiro de 2023. E vimos na constituição do próprio governo do período de 2019-2022.

Toda uma casta de achólogos com facilidade inventou e difundiu “doutrinas” que tinham como objetivo justificar e legitimar o poder pessoal e as ambições de gente tosca e despreparada, que nunca teria chegado ao poder em outras circunstâncias.

Os efeitos desse fundamentalismo do pastor visitante seriam bem diversos nos EUA e no Brasil. Ninguém poderia antecipá-los. Somos um país culturalmente despreparado para resistir a essas invasões místico-ideológicas, como o provam as grandes mudanças religiosas que aqui ocorrem desde meados dos anos 1950. As de um Deus mandão e autoritário, que muito acima de sua deidade é um deus de um novo poder, não o de uma democracia cidadã, mas o de uma servidão impotente.

Espanto e apreensão deveria causar o fato de que tenha havido aqui quem julgasse natural e normal trazer ao Brasil, para uma fala em púlpito privilegiado, alguém já conhecido pelas ideias que difunde e defende em relação a essa questão.

Mais espanto, porém, que grupos originários das escravidões que tivemos, envolvidos em pleitos e reivindicações reparatórios pelo cativeiro de seus antepassados, não se julguem política e moralmente obrigados a questionar uma visita como essa que se consumaria não fosse o temor dos patronos quanto a reações em relação à subestimação da liberdade como direito e necessidade.

O fundamentalismo religioso é a intolerante e caricata base de sustentação de um conservadorismo retrógrado divorciado da grande tradição do pensamento conservador cujos valores têm sido a decisiva referência do pensamento crítico e revolucionário.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

 

Um comentário:

Daniel disse...

Qualquer tipo de escravidão é absurda, mas as concubinas não são de todo uma má ideia...