Valor Econômico
À luz da Bíblia, muitas concepções e atitudes
que, do ponto de vista de nossos dias, são condenáveis, nos tempos bíblicos não
o eram
Uma conferência evangélica sobre teologia,
marcada para acontecer durante o Carnaval, na Paraíba, teria como orador
destacado o pastor fundamentalista americano Douglas Wilson. Ele já não virá ao
Brasil. O convite foi cancelado e ele próprio abriu mão da visita. É o que
explica Anna Virginia Balloussier, na “Folha de S. Paulo”, em detalhado artigo.
O assunto é da maior importância no tenso cenário brasileiro de controvérsias ideológicas e sociais envolvendo religião e política. O nome do pastor foi impugnado especialmente por ser ele autor de obras sobre a justificativa bíblica da escravidão. Mas não o foi porque alguém estivesse em desacordo com ele. E sim por temor da nossa reação a essa concepção reacionária da condição humana. Seu discurso poderia ser interpretado como justificador da escravidão daqui.
À luz da Bíblia, muitas concepções e atitudes
que, do ponto de vista de nossos dias, são condenáveis, nos tempos bíblicos não
o eram. Caso da própria escravidão. Como no menor livro da Bíblia, a Carta de
Paulo ao seu discípulo Filemom, no apelo a que acolha de volta Onésimo, seu
escravo fugido: “Não já como servo, antes, mais do que servo, como irmão amado,
particularmente de mim, e quanto mais de ti, assim na carne como no Senhor?”.
Não era uma defesa da liberdade, mas da
fraternidade paternal entre o senhor e o escravo, em nome de Cristo. Em face
dessa nova e diferente concepção das relações sociais, a do cristianismo, a
escravidão era secundária. Uma desigualdade superada sem ser abolida,
preservada em nome de uma reinterpretação cristã do elo de sujeição entre o
dono e o cativo, o elo de um fratura entre o real e o imaginário.
Daí a necessidade, acenada por teólogos
competentes, de rever e atualizar, na interpretação, as referências históricas
da Bíblia para trazê-la para a historicidade do nosso tempo. Não se trata de
mudar a Bíblia, mas de situá-la na temporalidade singular de sua leitura.
Foi justamente em decorrência de uma erudita
série de conferências teológicas sobre as Cartas de Paulo, e especificamente em
relação à Carta a Filemom, que o pastor e teólogo Ed René Kivitz, da Igreja
Batista da Água Branca, em São Paulo, ao sublinhar esse aspecto do texto
bíblico preconizou essa atualização de perspectiva que lhe custou injustiças e
dissabores.
Também o concubinado é um item do texto
bíblico. Figuras referenciais da realidade bíblica, como Davi e Salomão, tinham
concubinas. Os cantares de Salomão e mesmo os salmos de David não raro são
belos poemas eróticos, que um religioso de hoje não ousaria ler em voz alta do
púlpito e menos ainda interpretá-los. Por isso mesmo, no cristianismo, a
leitura e a interpretação dos textos sagrados não deve ser feita por amadores.
Infelizmente, em muitos lugares, também aqui
no Brasil, as extensas desigualdades têm sido terreno fértil para o
fundamentalismo religioso e, também, para o fundamentalismo político, como
vimos na combinação de ambos nas manifestações de barbárie de 8 de janeiro de
2023. E vimos na constituição do próprio governo do período de 2019-2022.
Toda uma casta de achólogos com facilidade
inventou e difundiu “doutrinas” que tinham como objetivo justificar e legitimar
o poder pessoal e as ambições de gente tosca e despreparada, que nunca teria
chegado ao poder em outras circunstâncias.
Os efeitos desse fundamentalismo do pastor
visitante seriam bem diversos nos EUA e no Brasil. Ninguém poderia
antecipá-los. Somos um país culturalmente despreparado para resistir a essas
invasões místico-ideológicas, como o provam as grandes mudanças religiosas que
aqui ocorrem desde meados dos anos 1950. As de um Deus mandão e autoritário,
que muito acima de sua deidade é um deus de um novo poder, não o de uma
democracia cidadã, mas o de uma servidão impotente.
Espanto e apreensão deveria causar o fato de
que tenha havido aqui quem julgasse natural e normal trazer ao Brasil, para uma
fala em púlpito privilegiado, alguém já conhecido pelas ideias que difunde e
defende em relação a essa questão.
Mais espanto, porém, que grupos originários
das escravidões que tivemos, envolvidos em pleitos e reivindicações
reparatórios pelo cativeiro de seus antepassados, não se julguem política e
moralmente obrigados a questionar uma visita como essa que se consumaria não
fosse o temor dos patronos quanto a reações em relação à subestimação da
liberdade como direito e necessidade.
O fundamentalismo religioso é a intolerante e
caricata base de sustentação de um conservadorismo retrógrado divorciado da
grande tradição do pensamento conservador cujos valores têm sido a decisiva
referência do pensamento crítico e revolucionário.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre
outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora
Unesp, São Paulo, 2023).
Um comentário:
Qualquer tipo de escravidão é absurda, mas as concubinas não são de todo uma má ideia...
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