O Globo
Denominação já foi pejorativa. Há tempos vem
sendo ressignificada
Ela subiu tranquilamente o caminho que leva ao topo da favela onde nasceu. Caminhou sentindo o banzo, precisamente definido como impossibilidade de retorno. O lugar que a forjou, o Morro Pindura Saia, não existe mais desde os anos 1970, quando autoridades deram por concluído o desfavelamento — remoção, no Rio de Janeiro — da área posteriormente transformada no bairro Cruzeiro, na região Centro-Sul de Belo Horizonte. Do território retratado pela autora de “Becos da memória” (2006), restam um punhado de casas espremidas entre edifícios de classe média e o prédio de 1897 que abriga o primeiro reservatório de água da cidade, ainda em funcionamento.
Acompanhei Conceição Evaristo na ladeira que
leva ao topo do Parque Professor Amílcar Vianna Martins, uma das vistas mais
bonitas da capital mineira, no mesmo dia em que, no Rio de Janeiro, o IBGE anunciava
a substituição nas pesquisas da denominação “aglomerados subnormais” por
“favelas e comunidades urbanas”. Favela foi nomenclatura usada pelo órgão
oficial de estatísticas nos censos demográficos de 1950 e 1960. A partir dos
anos 1970, como legado da ditadura cívico-militar, as áreas de habitação
popular, construídas com material inadequado, sem licenciamento e serviços
públicos essenciais, passaram a ser chamadas de aglomerados. Primeiro,
excepcionais; depois, subnormais.
— A nova nomenclatura foi escolhida a partir
de estudos técnicos e consultas a diversos segmentos sociais, visando a
garantir que a divulgação do Censo 2022 seja realizada a partir da perspectiva
dos direitos constitucionais fundamentais da população das cidades — explicou o
coordenador de geografia da Diretoria de Geociências do IBGE, Cayo de Oliveira
Franco.
Dados preliminares do último Censo revelam
que o Brasil tem 11.403 favelas. Em 6,5 milhões de domicílios vivem cerca de 16
milhões de habitantes, 5 milhões a mais que em 2010. A mudança de nome era
reivindicação antiga de organizações da sociedade civil, acadêmicos e,
sobretudo, moradores. No IBGE, vinha sendo discutida por um amplo grupo de
trabalho (GT) desde fins de 2022, informou Isabella Nunes, pesquisadora na
Diretoria de Pesquisas do instituto.
O geógrafo Jailson de Souza e Silva, fundador
do Observatório de Favelas, coautor de “A favela reinventa a cidade” (2020),
membro do GT, considerou a mudança muito significativa. Assessor da presidência
do BNDES, ele se reuniu ontem com integrantes do comitê para discutir projetos
de desenvolvimento sustentável em favelas. A intenção é abordar, não só a
demanda por infraestrutura física, mas “necessidades outras” das pessoas:
— Mais importante que o termo é o conceito.
Os indicadores serão muito mais plurais, com muitas abordagens positivas
também. Rompeu-se a ideia de aglomerados subnormais e, por isso,
predominantemente negativos. Esperamos uma nova forma de olhar e se relacionar
com a favela — resumiu.
Pela nova classificação, favelas e
comunidades urbanas são áreas com predominância de residências com diferentes
níveis de legalidade fundiária. Além disso, deverão atender a pelo menos um
critério entre ausência ou oferta incompleta de serviços públicos; predomínio
de edificações, vias e infraestrutura autoproduzidas ou fora de parâmetros
estabelecidos pelo poder público; localização em áreas com restrições à
ocupação por leis ambientais ou urbanísticas. Em 2010, o Censo classificava
como “aglomerados subnormais” conjuntos de, no mínimo, 51 unidades
habitacionais carentes de serviços essenciais, ocupando terreno de propriedade
alheia e dispostas de forma desordenada ou densa.
Favela já foi denominação pejorativa. Há
tempos vem sendo ressignificada. A Central Única das Favelas (Cufa), fundada em
1999 na Cidade
de Deus (Rio de Janeiro), hoje presente em todos os estados
brasileiros, está aí a provar. Estranho é imaginar como “aglomerado subnormal”
foi admitido como classificação mais adequada. Eliana Sousa Silva, diretora da
ONG Redes da Maré,
disse que a expressão era repudiada, não é de hoje, pelos que lutam pela
melhoria das condições de vida nas favelas e periferias. A mudança, segundo
ela, faz uma reparação histórica ao excluir do glossário oficial um termo que
“reforça preconceitos e está desconectado da realidade das cidades
contemporâneas”:
— A institucionalização, a formalização e a
ampliação do uso do nome também podem contribuir para a compreensão dos
próprios moradores de que favela é parte importante e representativa da cidade,
como qualquer outra — completa.
Favelas têm direitos a ser atendidos;
carências a ser superadas; pessoas a ser respeitadas. São territórios de
socialização e afeto, trabalho e festa, lar. Hão de ser preservados, não
banidos, porque guardam história e potência. Que o diga Maria da Conceição
Evaristo de Brito.
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