domingo, 14 de janeiro de 2024

Muniz Sodré* - Retratos a gosto

Folha de S. Paulo

Hoje, um outro tipo de estetização da vida social se constrói por meio da rede eletrônica

É possível que "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, clássico genial da literatura inglesa, ajude na compreensão, entre nós, do intrigante fenômeno de enrijecimento da polarização social. Pesquisas de opinião revelam imobilidade de posições há um ano. O governo Lula é republicano, mas seu retrato público tem fissuras.

No romance, Dorian, belo e ingênuo, corrompido pelos costumes sociais sob forte influência do amigo Lorde Henry Wotton, ganha um retrato com o atributo de envelhecer enquanto ele permanece jovem. A imagem pintada reflete aos poucos efeitos do seu envolvimento em crimes, sua decadência moral.

A crítica implícita na obra visa o esteticismo, os riscos da sedução pela vida exclusiva de beleza e prazeres. Hoje, um outro tipo de estetização da vida social se constrói por meio da rede eletrônica. Estética não se resume à teoria da contemplação artística, é também uma formatividade que molda percepções. Ampliada como forma social, dispõe realidades de outra maneira. O sociodispositivo eletrônico é uma matriz que incide esteticamente sobre o espaço-tempo físico, reconfigurando hábitos e formas de vida.

É forte no romance de Wilde a influência de Lorde Wotton sobre Dorian. Mas este não perde o livre arbítrio, faz escolhas conscientes. Poderoso é hoje o domínio da consciência pela tecnologia. Não se trata, como se pensou da televisão, de moldagem de condutas por imagens, e sim de uma realidade paralela, feita de bits e pixels. Os efeitos não partem de dispositivo externo como a TV, mas de um campo técnico, matricial, que se autoinfluencia. No autismo da rede, o indivíduo é um autorretrato em construção.

Sabe-se que os mafiosos americanos passaram a falar como gangster depois que se viram retratados em filmes. O cinema não os imitou, eles se autorretrataram pelo cinema. Sob capa funcional, a internet reverte a realidade, desde a mais primitiva, ensejando autoimagens adulatórias: velhos rejuvenescem com a magia digital, jovens extrapolam o real-histórico. A rede é juvenil, rock’n roll. Os principais conselheiros vivos do ex-roqueiro Milei são um casal de recém-saídos da puberdade, naturais do ciberespaço.

O fenômeno é complexo, análogo ao do adolescente que estampa insatisfação, quer escapar do mundo. O autorretrato ciber reconstrói, não aparência física, mas invólucro moral, a pessoa: é tela, filtro, híbrido de gente e dígitos. Assim, remodela o horror que seja, pois no espaço-tempo das redes tudo se autojustifica.

Exceto coisas sustentáveis do mundo externo, como democracia. Mas essa loucura racionalizável, como a roleta ou a Bolsa, requer a segurança de um exterior fixo.

A polarização calcificada pode ser um retrato-mural físico do Dorian Gray online. No romance, ele pira.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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