Folha de S. Paulo
Hoje, um outro tipo de estetização da vida
social se constrói por meio da rede eletrônica
É possível que "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, clássico genial da literatura inglesa, ajude na
compreensão, entre nós, do intrigante fenômeno de enrijecimento da polarização
social. Pesquisas de opinião revelam imobilidade de posições há um ano. O governo
Lula é republicano, mas seu retrato público tem fissuras.
No romance, Dorian, belo e ingênuo, corrompido pelos costumes sociais sob forte
influência do amigo Lorde Henry Wotton, ganha um retrato com o atributo de
envelhecer enquanto ele permanece jovem. A imagem pintada reflete aos poucos
efeitos do seu envolvimento em crimes, sua decadência moral.
A crítica implícita na obra visa o
esteticismo, os riscos da sedução pela vida exclusiva de beleza e prazeres. Hoje,
um outro tipo de estetização da vida social se constrói por meio da rede
eletrônica. Estética não se resume à teoria da contemplação artística, é também
uma formatividade que molda percepções. Ampliada como forma social, dispõe realidades
de outra maneira. O sociodispositivo eletrônico é uma matriz que incide
esteticamente sobre o espaço-tempo físico, reconfigurando hábitos e formas de
vida.
É forte no romance de Wilde a influência de Lorde Wotton sobre Dorian. Mas este
não perde o livre arbítrio, faz escolhas conscientes. Poderoso é hoje o domínio
da consciência pela tecnologia. Não se trata, como se pensou da televisão, de
moldagem de condutas por imagens, e sim de uma realidade paralela, feita de
bits e pixels. Os efeitos não partem de dispositivo externo como a TV, mas de
um campo técnico, matricial, que se autoinfluencia. No autismo da rede, o
indivíduo é um autorretrato em construção.
Sabe-se que os mafiosos americanos passaram a
falar como gangster depois que se viram retratados em filmes. O cinema não os
imitou, eles se autorretrataram pelo cinema. Sob capa funcional, a internet
reverte a realidade, desde a mais primitiva, ensejando autoimagens adulatórias:
velhos rejuvenescem com a magia digital, jovens extrapolam o real-histórico. A
rede é juvenil, rock’n roll. Os principais conselheiros vivos do
ex-roqueiro Milei são
um casal de recém-saídos da puberdade, naturais do ciberespaço.
O fenômeno é complexo, análogo ao do adolescente que estampa insatisfação, quer
escapar do mundo. O autorretrato ciber reconstrói, não aparência física, mas
invólucro moral, a pessoa: é tela, filtro, híbrido de gente e dígitos. Assim,
remodela o horror que seja, pois no espaço-tempo das redes tudo se
autojustifica.
Exceto coisas sustentáveis do mundo externo, como democracia. Mas essa loucura
racionalizável, como a roleta ou a Bolsa, requer a segurança de um exterior
fixo.
A polarização calcificada pode ser um retrato-mural físico do Dorian Gray
online. No romance, ele pira.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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