domingo, 14 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Quantidade de pleitos não garante qualidade da democracia global

O Globo

Este ano baterá todos os recordes eleitorais no mundo, mas há risco de maior corrosão democrática

Por uma conjunção de calendários, este ano baterá todos os recordes eleitorais. Cerca de 2 bilhões, quase metade da população adulta do planeta, tomarão parte em votações em mais de 60 países de todos os continentes em 2024. Provavelmente só em 2048 o mundo voltará ter tantas disputas eleitorais. Até dezembro, haverá eleição no país mais poderoso (Estados Unidos) e no mais populoso (Índia). No Brasil, a disputa é pelas prefeituras e câmaras municipais. Na Indonésia, estão em jogo Presidência e Congresso. Na União Europeia, vagas no Parlamento. Haverá eleições em países com maioria muçulmana (Paquistão), católica (México) e anglicana (Reino Unido). Mesmo disputas em países pequenos podem ter importância global, como a ocorrida ontem em Taiwan, um desafio à influência da China.

Se, na quantidade, o ano parece a festa da democracia, em qualidade 2024 é menos vistoso. Os pleitos na Rússia, na Venezuela e no Irã demonstram que depositar o voto na urna é um passo imprescindível, mas insuficiente para um país ser democrático. Quando a oposição é perseguida, presa e impedida de participar, a eleição se transforma em mero teatro. Mesmo quando há alguma competição, a saúde da democracia não está garantida.

Universidades e centros de pesquisa dedicados a definir, classificar e medir sistemas políticos tendem a concordar que vivemos um período de corrosão democrática. Pelo sexto ano consecutivo, houve declínio da democracia em pelo menos metade dos países, diz a organização International IDEA, com sede na Suécia. É a queda mais longa desde o início das análises, em 1975. Para o também sueco instituto V-Dem, os avanços globais registrados nos últimos 35 anos estão desaparecendo. Na medição da Freedom House, sediada em Washington, a liberdade global caiu pela 17ª vez desde 2007. Caso políticos com tendências autoritárias ou seus aliados continuem no poder ou voltem ao Executivo em 2024, o que já não está bom poderá ficar ainda pior.

A origem dos riscos à democracia não é definida por coloração ideológica. No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador, de esquerda, erodiu a confiança no sistema político ao centrar suas forças contra a autoridade eleitoral. Impedido pela Constituição de buscar a reeleição, lançou como candidata a ex-prefeita da Cidade do México, uma fiel seguidora. As perspectivas para os Estados Unidos não são melhores. Mesmo depois do caos reinante em seu mandato, das tentativas de mudar os resultados de 2020, das mentiras, dos processos na Justiça e promessas absurdas, Donald Trump, da direita, segue competitivo nas eleições de novembro. Uma segunda passagem pela Casa Branca promete um teste institucional ainda maior.

Para sobreviver, a democracia precisa melhorar o bem-estar da população. Sem isso, vira alvo fácil de demagogos. Quase 75% dos sul-africanos, que também votarão neste ano, dizem estar dispostos a aceitar um regime autoritário se houver trabalho e combate ao crime. Candidatos a autocrata não faltam por toda parte, nem os meios para ascenderem. Sem regulação, redes sociais e aplicativos de mensagens são plataformas para todo tipo de desinformação. Para não falar na inteligência artificial. A onda populista deve servir de alerta a quem acredita nas liberdades individuais. A festa democrática de 2024 deveria celebrar não só a quantidade, mas também a qualidade.

Reconhecimento facial se tornou ferramenta essencial contra o crime

O Globo

Tecnologia traz agilidade à identificação de suspeitos, mas exige checagem para evitar erros

O uso de câmeras de reconhecimento facial para identificar e prender cidadãos em falta com a Justiça tem aumentado no Brasil — e também a controvérsia em torno da tecnologia. Enquanto crescem os investimentos e os equipamentos instalados em áreas públicas ou privadas, se multiplicam também os relatos de erros e injustiças cometidos por falhas nos sistemas.

O programa mais amplo de reconhecimento facial está em curso na Bahia. Entre 2018 e 2022, o estado investiu R$ 683 milhões no sistema de segurança, que já conta com 3.110 câmeras instaladas em 81 municípios, incluindo Salvador. Responsável pelo projeto, o major Jefferson Araújo diz que já foram feitas 1.183 prisões por meio do reconhecimento facial. Ele afirma desconhecer prisões de inocentes e alega que, em caso de erro, a checagem humana corrige.

A iniciativa ganha terreno também em São Paulo, onde a prefeitura pretende implantar, até o fim deste ano, 20 mil câmeras de segurança programadas para fazer reconhecimento facial. Os primeiros equipamentos foram instalados em outubro na região central. No Rio, a polícia tem feito uso do sistema especialmente em grandes eventos. As câmeras foram empregadas no esquema de segurança do Réveillon em Copacabana e deverão auxiliar no policiamento do carnaval.

Clubes de futebol também têm recorrido ao reconhecimento facial para controlar a violência. Os estádios de Palmeiras, Goiás, Atlético Mineiro e Vasco da Gama já usam o equipamento. A tecnologia ajudou a Secretaria de Segurança de São Paulo a identificar o torcedor do Flamengo suspeito de atirar a garrafa que matou uma jovem palmeirense nos arredores do Allianz Park em julho passado durante uma partida do Campeonato Brasileiro.

Por mais avançada que seja, ela não está imune a erros. No Rio, duas prisões recentes com base no reconhecimento facial se revelaram equivocadas. Os mandados de prisão na base de dados sobre foragidos estavam desatualizados, e os dois detidos foram soltos. Em Sergipe, a auxiliar administrativa Taislaine Santos disse ter sido abordada duas vezes com base em reconhecimento facial quando participava de uma festa em Aracaju. Da segunda vez, foi colocada num camburão e levada até uma tenda onde policiais constataram que não havia nada contra ela. “Disseram que foi um erro, mas não pediram desculpas”, contou ao GLOBO.

Não há dúvida de que o reconhecimento facial é uma ferramenta útil para auxiliar a polícia a identificar foragidos, especialmente em meio a multidões. Mas precisa ser usada com cautela e critérios rigorosos para evitar injustiças. Os sistemas não são perfeitos. O reconhecimento é apenas uma etapa do procedimento, que depende também de bancos de dados atualizados. A tendência é que esses equipamentos sejam cada vez mais usados na segurança. Por isso é preciso corrigir as falhas e aperfeiçoar os protocolos para eliminar o espaço para erro. A tecnologia ajuda, mas em hipótese alguma pode substituir a investigação policial.

Relações perigosas

Folha de S. Paulo

Com Lewandowski, Lula aprofunda a aproximação com o STF, cuja imagem corre risco

Quando Ricardo Lewandowski se aposentou do Supremo Tribunal Federal, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) indicou seu advogado pessoal para o posto. Quando uma segunda vaga foi aberta, o indicado foi o aliado político Flávio Dino. Para o lugar de Dino no Ministério da Justiça, o escolhido foi Lewandowski.

Os movimentos escancaram, sem nenhuma preocupação com a sutileza, as expectativas de Lula em relação à atuação dos magistrados e da corte mais elevada do país. Trata-se de um jogo perigoso.

Ao longo de 17 anos no STF, Lewandowski se notabilizou pela postura garantista e, particularmente, por votos e manifestações favoráveis ao líder petista e a nomes do partido. Assim foi no julgamento do mensalão, na Lava Jato e até no impeachment de Dilma Rousseff, quando contribuiu para que a ex-presidente não ficasse inelegível.

Ainda que não lhe tenham faltado argumentos jurídicos para sustentar suas decisões, é inevitável que seu ingresso no governo agora pareça reconhecimento da lealdade.

Lula, ademais, reforça laços com o Supremo em seu terceiro mandato —viabilizado, aliás, por deliberações do tribunal que anularam suas condenações por corrupção.

Eleito por margem mínima de votos e sem maioria confiável num Congresso que rumou à direita, o presidente e seu entorno recorrem com frequência inaudita ao STF para o desembaraço de pautas de seu interesse.

Foi uma medida de Lewandowski, por exemplo, que suspendeu normas moralizadoras da Lei das Estatais e permitiu nomeações políticas nas empresas federais. O plenário do tribunal, note-se, até hoje não examinou o tema.

Ali também se resolveu o imbróglio do pagamento dos precatórios deixados por Jair Bolsonaro (PL). Nesse caso, os magistrados ao menos não endossaram a pretensão governista de mudar a classificação dessa despesa para maquiar o déficit das contas públicas.

Lula tem em Alexandre de Moraes, ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, um aliado-chave na ofensiva pela regulação da internet, que traz ameaças indisfarçáveis à liberdade de expressão. Dino, na Justiça, dedicou-se ruidosamente à causa.

Tanta proximidade não se dá sem riscos —e o mais óbvio é para a credibilidade do Judiciário.

Há mais, porém. Um Supremo ativista, que venha a tomar decisões controversas sobre temas da alçada do Legislativo, tende a provocar reações e atrair represálias do mundo político, como já vem acontecendo, e da sociedade.

À corte, que teve méritos inegáveis na resistência aos ataques de Bolsonaro às instituições, cabe zelar por sua imagem e conduta. Essa não é uma preocupação de Lula.

Novo anormal

Folha de S. Paulo

Mudança climática castiga agronegócio, reduz safra e exige plano de adaptação

Há anos alerta-se que o agronegócio tem na mudança climática um calcanhar de Aquiles. Deve-se reforçar o alerta, pois as ameaças já deixam de vir só de mercados refratários ao desmatamento e passam a decorrer também, diretamente, da meteorologia conturbada.

A Folha noticia que incertezas do clima estão por trás da redução de 11 milhões de toneladas nas previsões da próxima safra. A projeção anterior da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) indicava 317,5 milhões de toneladas, ora rebaixada para 306,4 milhões.

Mato Grosso será o estado mais prejudicado. Chuvas irregulares deverão provocar queda de 11,4 milhões de toneladas na produção de grãos —de 101 milhões no ano passado para 89,6 milhões em 2024.

Já o Rio Grande do Sul, o mais castigado nos últimos anos, compensará parte da quebra nacional com colheita 44% maior de milho, alta de 68% na de soja e 11% na de arroz.

Pode-se argumentar, com razão, que a agropecuária sempre esteve vulnerável às variações climáticas. O problema está no aumento da incerteza acarretada pelo aquecimento global, resultante da queima de combustíveis fósseis e das mudanças no uso da terra, que lançam carbono na atmosfera.

As maiores emissões brasileiras de gases do efeito estufa provêm do campo, com desflorestamento em primeiro lugar. Está em queda o desmate na Amazônia, cuja repercussão internacional vinha criando restrições a commodities brasileiras, mas cresce no cerrado; cedo ou tarde, tal devastação manchará a imagem do exportador.

A mudança climática fez de 2023 o ano mais tórrido do registro histórico, turbinada pelo fenômeno El Niño. Esse aquecimento da superfície do oceano Pacífico provoca tempestades no Sul do Brasil e secas pronunciadas no Norte, o que por sua vez favorece queimadas.

Florestas ressecadas cumprem com menos eficácia seu papel no ciclo hidrológico. A irregularidade das chuvas e sua falta nas épocas decisivas para a safra estão por trás das sucessivas revisões da Conab.

Os impactos não se limitam ao setor rural, açoitam também áreas urbanas, como sabem paulistas sem energia e transportes em meio a sucessivos temporais.

É imperativo que governos e opinião pública enxerguem a conexão entre essas ocorrências e reajam a elas com um planejamento integrado para adaptar populações, infraestrutura e setor produtivo para o novo anormal.

Falatório não ajudará os Yanomamis

O Estado de S. Paulo

Lula anunciou novas promessas, mas dados oficiais confirmam: depois de um ano, governo petista fracassou na tentativa de salvar os povos yanomamis da emergência sanitária

O presidente Lula da Silva exibiu mais um exemplo de seu vasto repertório de artimanhas com as quais tenta livrar-se da cobrança pública por erros graves. Próximo ao marco de um ano das ações de emergência destinadas ao enfrentamento da crise que atinge há décadas os povos indígenas yanomamis, e diante da constatação de que vem fracassando a operação de socorro naquelas terras, Lula convocou uma reunião ministerial para tratar do tema, falou duro e anunciou como se desembarcasse agora no problema: “Essa reunião é para definir, de uma vez por todas, o que nosso governo vai fazer para evitar que indígenas brasileiros continuem sendo vítimas de massacre”. E apelou à habitual especialidade palanqueira, ao apontar culpados externos e fazer promessas. “Vamos tratar a questão indígena e dos yanomami como uma questão de Estado”, emendou.

O uso do verbo no futuro pareceu-lhe providencial, mas se mostra incompatível com o fato de que, exatamente um ano atrás, o mesmo governo anunciava socorro àquela comunidade, abatida por uma gravíssima crise humanitária – os yanomamis sofriam com desassistência sanitária, malária, pneumonia, desnutrição severa, doenças sexualmente transmissíveis e mortes, resultado de anos e anos de interferência indevida de não indígenas na região. Na origem do problema está o avanço do garimpo ilegal, que fez aumentar os índices de violência, degradação ambiental, doenças por contaminação do mercúrio nos rios, intoxicação de pessoas, animais e plantações pelos dejetos. Àquela altura, quase metade das mortes atingiu crianças de até quatro anos. A resposta de janeiro do ano passado pareceu adequada aos primeiros dias de um governo recém-iniciado. Agora, ao tratar do problema como se tivesse tomado posse ontem, Lula empenha-se em fazer esquecer que esse problema é dele há um ano.

O roteiro é conhecido: ante uma crise, convoca-se uma reunião ministerial; diante de um fracasso, monta-se uma força-tarefa ou um grupo de trabalho. Depois, envia-se uma comissão de ministros para ver in loco o que já se sabe a distância. A exibição de um rosário de iniciativas realizadas e a recauchutagem de antigas ideias complementam a receita do insucesso. Os dados oficiais não deixam dúvidas: o governo falhou. Segundo o boletim de dezembro do Centro de Operações de Emergências, os números são espantosamente semelhantes aos do governo anterior – entre janeiro e novembro foram registrados 308 óbitos, a maior parte decorrente dos problemas de saúde e doenças evitáveis, como diarreia, pneumonia e malária (e mais da metade entre crianças com menos de cinco anos de idade). Em 2022, sob Bolsonaro, foram 343 mortes.

Há um ano, o governo deveria ter criado uma instância de coordenação das ações emergenciais com real poder sobre as diferentes pastas. Em vez disso, apresentou um plano sem metas, indicadores ou detalhamento de cronograma, orçamento e responsabilidades. Não promoveu, muito menos executou, um estudo logístico eficiente para planejar o envio de insumos e profissionais de saúde. Consumiu milhões de reais com as Forças Armadas lançando cestas básicas sobre aldeias e clareiras sem muito critério. Há relatos de abandono de toneladas de alimentos em armazéns das cidades porque o dinheiro disponível para o frete aéreo acabou antes de atingir a meta do número de cestas básicas estipulada pela Funai. E, por fim, mas não menos importante, o Estado seguiu ausente do território.

Mas eis que na terça-feira passada o presidente anunciou que aquelas terras “têm dono”. E que usará “todo o poder da máquina pública” para combater o garimpo ilegal. Ministras como Sonia Guajajara (Povos Indígenas) e Marina Silva (Meio Ambiente) falaram em “ações permanentes”, que substituiriam as “ações emergenciais” de 2023. Sobretudo diante de tragédias, 12 meses são suficientes para conter os danos mais sérios, mas também para confirmar paralisia, omissão e incompetência. Ou o governo entende que esta é uma agenda nacional, de interesse humanitário de todo o País, urgente e estrutural, ou assistiremos à repetição de cenas lamentáveis por mais um ano – tanto a imagem das crianças yanomamis desnutridas quanto o palavrório vazio do presidente Lula.

O desafio da convivência pacífica e respeitosa

O Estado de S. Paulo

Orientação do papa aos padres sobre bênção joga luzes sobre tema mais amplo. Respeito ao outro não significa homogeneidade. É possível pensar de forma diferente e acolher o outro

À parte as questões teológicas e morais envolvidas, a declaração Fiducia supplicans, da Igreja Católica, sobre a possibilidade de padres darem uma bênção a pessoas em uniões que, aos olhos da doutrina católica, são irregulares (como as segundas uniões e as uniões homoafetivas) pode ser vista como um bom exemplo de convivência respeitosa e pacífica. Recentemente, a Santa Sé esclareceu que o documento aprovado pelo papa Francisco não modifica a visão da Igreja sobre o casamento, que, segundo sua compreensão, continua sendo unicamente a união entre um homem e uma mulher para a vida inteira. Mas é justamente esse aspecto, que talvez tenha frustrado a expectativa de muitas pessoas por alterações mais profundas na doutrina católica, que pode trazer luzes sobre a convivência e o respeito numa sociedade plural.

Não é preciso que todos pensem da mesma forma. Não é necessário que todos tenham a mesma compreensão a respeito de um tema moral ou social. Tudo isso está no âmbito da esfera individual, que um Estado comprometido com as liberdades tem o dever de respeitar e proteger. Não há nenhuma necessidade, seja de ordem pública seja de ordem privada, que todos os indivíduos tenham a mesma avaliação ética sobre determinado comportamento, atitude ou compreensão de mundo. Isso faz parte do pluralismo, próprio de uma sociedade livre.

Precisamente porque existe essa amplíssima liberdade de pensamento e de opinião, deve haver um profundo respeito por todas as pessoas, sejam quais forem suas ideias, atitudes e modos de vida. Nenhuma opinião moral, seja de um indivíduo ou de um grupo, é apta a restringir a liberdade dos outros cidadãos. Na República, o único limite é a lei. A Constituição de 1988 estabelece, em seu art. 5.º, II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Aqui está, por assim dizer, o grande ensinamento da declaração Fiducia supplicans para todas as pessoas, seja qual for o seu credo ou orientação filosófica. Não é preciso aplaudir as atitudes do outro, não é preciso concordar com suas opiniões políticas, não é preciso ter sua mesma visão de mundo, para acolhê-lo, para respeitá-lo, para reconhecer seus direitos, para tratá-lo como pessoa. A disparidade de pensamento ou de comportamento não é motivo para excluir nem para discriminar ninguém.

Talvez seja esse um dos principais desafios dos tempos atuais. As diferenças políticas e ideológicas passaram a ser vistas como causa de exclusão do outro ou, ao menos, como motivo para não dialogar, que é também uma forma de desprezo. No entanto, essa atitude inviabiliza o desenvolvimento, sob qualquer âmbito, da sociedade.

Na política, essa realidade é muito evidente. A não abertura ao diálogo com quem pensa de forma diferente inviabiliza encontrar os caminhos possíveis para o enfrentamento dos problemas nacionais. Implementar políticas públicas sempre demanda conversa e negociação. O mesmo se pode dizer de outras áreas, como a economia. Um ambiente de negócios saudável exige confiança e respeito, acima de eventuais diferenças políticas, filosóficas ou morais. Um tecido social esgarçado, no qual o outro é visto como inferior aos do próprio grupo social, é profundamente disfuncional, além de contrário ao princípio fundamental do Estado Democrático de Direito: o da dignidade humana.

Como se vê, há toda uma grande trajetória de civilidade a ser percorrida. Respeito ao outro não significa homogeneidade ou pensamento único. Cada um pode ter livremente suas opiniões, suas concepções sobre a vida e a sociedade. Não cabe coagir ninguém a pensar de determinada maneira. E, precisamente por isso, todos merecem igualmente respeito, todos merecem que seus direitos sejam respeitados.

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, afirma a Constituição no seu art. 5.º. O País avançaria muito se essa igualdade, mais do que um princípio formal, fosse prática diária, tanto pelo Estado, em todas suas esferas, como pelos cidadãos.

A corrosão da poupança

O Estado de S. Paulo

Retrato de uma população endividada, cadernetas têm mais saques do que depósitos há 3 anos

Pelo terceiro ano consecutivo o volume de saques em cadernetas de poupança superou o de depósitos no País. O resultado líquido negativo, que havia duas décadas não se estendia por um ciclo tão longo, espelha o alto nível de endividamento das famílias brasileiras. Mais do que um investimento financeiro, a poupança se notabilizou como uma espécie de fundo de reserva, uma garantia de recursos para eventuais emergências. Ocorre que, nos últimos tempos, essas situações urgentes têm se traduzido no pagamento de despesas cotidianas.

Obviamente, a alta taxa de juros, que tornou menos rentável a aplicação, e o acesso facilitado a outros investimentos de renda fixa também pesaram nas retiradas. Mas o perfil dos poupadores, a situação persistente de superendividamento da população e o esforço para equilibrar o orçamento sugerem que o dinheiro que saiu das cadernetas não migrou majoritariamente para outros produtos financeiros, mas sim para o abatimento de dívidas.

O próprio Banco Central, no Relatório de Estabilidade Financeira, divulgado semestralmente, advertiu em novembro do ano passado que, além da perda de competitividade, o movimento de queda da poupança, iniciado em 2021, é motivado “pela saída de recursos para gastos correntes”. Uma conclusão bastante óbvia, levando em conta que a massa dos poupadores é formada por pessoas de renda mais baixa, geralmente com um objetivo definido, como a aquisição de um bem ou o suporte de emergência.

Isenção tributária e resgate instantâneo atraem esse público extremamente conservador, que consegue guardar uma parte dos seus rendimentos, ainda que mínima. O comprometimento maior da renda e os juros que escalam dívidas, no entanto, estão levando ao enxugamento dessa reserva. No ano passado, o saque líquido foi de R$ 87,819 bilhões, o segundo pior resultado da série histórica iniciada em 1995. Só não superou o recorde negativo de 2022, que registrou saída de R$ 103,237 bilhões.

É uma situação que preocupa. A direção da Caixa, que lidera o financiamento ao crédito imobiliário, alertou que a sequência de resgates ameaça o ritmo de novas concessões. Sessenta e cinco por cento do saldo da poupança vai obrigatoriamente para esse tipo de financiamento.

É possível que a renegociação de dívidas do programa Desenrola contribua para estancar a sangria. O ciclo de afrouxamento monetário, iniciado em agosto do ano passado, também tende a arrefecer a retirada de recursos. Mas a queda na taxa Selic, atualmente em 11,75% ao ano, segue um processo gradualista. Pelas normas estabelecidas em 2021, somente com juros abaixo de 8,5% – o que não é esperado para este ano – a remuneração da caderneta alcançará um patamar mais atraente.

Mexer novamente nas regras da caderneta de poupança seria insensatez. Mais razoável será apostar em soluções mais estruturais, mesmo que demoradas, como o reforço a medidas de redução do endividamento e o aumento da renda acompanhando a queda do desemprego. A partir daí se pode começar a pensar no estímulo à cultura da poupança.

Segurança deve ser prioridade

Correio Braziliense

Pesquisas em poder do governo apontam que a sensação de insegurança pela população aumentou no primeiro ano de mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar de todos os esforços feitos para enfrentar o crime organizado

É grande a expectativa em relação ao trabalho que será realizado por Ricardo Lewandowski, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), à frente do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Quando diz que o combate à violência, que está disseminada pelo país, será "prioridade absoluta", ele reconhece o tamanho do desafio que terá pela frente. Pesquisas em poder do governo apontam que a sensação de insegurança pela população aumentou no primeiro ano de mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar de todos os esforços feitos para enfrentar o crime organizado, tarefa a cargo, sobretudo, da Polícia Federal.

Esse sentimento de desproteção por parte do Estado está na base do mais recente levantamento realizado pelo Datafolha. Metade dos brasileiros considera ruim ou péssima a atuação do Executivo federal na segurança pública. Apenas 20% veem o quadro atual como bom ou ótimo. Essa é a área mais mal avaliada do governo, o que não ocorre por acaso. Dados preliminares do Fórum de Segurança Pública de 2023 apontam que a violência aumentou em 16 estados brasileiros, com destaque para o Rio de Janeiro, onde a milícia está infiltrada em todos os Poderes, e para a Bahia, que convive com uma guerra entre facções criminosas.

Lewandowski, que conseguiu convencer o presidente Lula a não dividir o ministério que comandará, tem a confiança necessária do governo e de juristas para conter a praga que ceifa quase 50 mil vidas por ano, principalmente, de jovens negros e pobres. Mas será necessário um empenho redobrado. O vizinho Equador deu um claro sinal de que não há mais espaço para erros e complacência. É verdade que as instituições brasileiras são muito mais sólidas do que as equatorianas, contudo, o crime organizado se enraizou de uma forma tão profunda em determinadas áreas do Brasil, que mesmo os Poderes constituídos não conseguem entrar. A população dessas localidades é refém do Estado paralelo.

Os desafios de Lewandowski são muitos. Ele terá de levar adiante a tarefa de expulsar os garimpeiros invasores de terras indígenas. Os esforços feitos até agora pelo governo não foram suficientes para retomar o controle da Amazônia e pôr fim à tragédia dos ianomâmis. As mais recentes e chocantes imagens de crianças desnutridas e contaminadas por mercúrio indicam que pouco se avançou no sentido de livrar essa população do genocídio. Não é possível que os criminosos continuem violentando meninas, contaminando os rios, acabando com a fauna e devastando a floresta sem uma repressão mais contundente.

O futuro ministro também precisará retirar do campo das promessas o programa de recompra de fuzis e de outras armas de calibre restrito, projeto que pode custar até R$ 100 milhões. Nessa seara, está prevista a conclusão, até 2025, da migração do controle de armas em poder de caçadores, atiradores desportistas e colecionadores, os CACs, do Exército para a Polícia Federal. Mais: Lewandowski deverá contribuir para a implantação dos juízes de garantias e ajudar a convencer o Congresso a aprovar o projeto que combate as fake news. Na cerimônia que lembrou os ataques golpistas às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro, tanto Lula quanto o ministro Alexandre de Moraes, do STF, ressaltaram a importância de se regular as redes sociais, hoje terra fértil para o crime organizado e a disseminação de mentiras.

O país espera que a segurança pública, em todas as suas vertentes, realmente seja uma prioridade. Lewandowski, um garantista, sinalizou que trabalhará em conjunto com governadores e prefeitos. É esse o caminho. Os brasileiros precisam retomar o direito de ir e vir, como acontece no mundo civilizado, sem se preocuparem se voltarão vivos para a casa, se mulheres serão estupradas ou vítimas de feminicídio, se a comunidade LTBGQIA+ terá o pleno direito de existir. O Brasil merece superar a tragédia diária provocada pela violência.

 

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