O Globo
‘Ele tinha o braço e a perna direita
arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada’
Acrônimos são aquelas sopas de letras maiúsculas que costumam designar entidades de nomes compridos como IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ou Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). Não existem para provocar emoção ou sentimento — em si, são neutros, indolores, inodoros. Exceto pelas cinco letras de WCNSF. Essas ferem, fazem chorar, causam horror e dor. Significam Wounded Child, no Surviving Family, ou Criança Ferida sem Familiares Vivos. A sigla nem existia antes do ataque terrorista do Hamas de 7 de outubro e da consequente terraplenagem da Faixa de Gaza desencadeada por Israel. Nunca fizera falta, pois em nenhuma guerra anterior a orfandade infantil fora tão maciça.
De qualquer ângulo que se olhe, as crianças
palestinas do enclave formam um capítulo à parte da desumanidade em curso.
Estatísticas de guerras anteriores mundo afora registravam média de 20% de
crianças do cômputo total de vítimas. Em Gaza, elas são 40%. Dados levantados
pela Save the Children apontam para mais de dez crianças mutiladas por dia, com
a perda de uma ou ambas as pernas. Isso há quatro meses. E talvez já chegue a
25 mil o número das que perderam ao menos um dos pais na guerra.
Em Gaza, as crianças WCNSF abrigadas em
hospitais ou junto a agências internacionais por vezes nem sequer sabem
declinar o nome. Emergem mudas de algum escombro, cobertas de pó e sangue. Não
choram, não demonstram medo. Estão em choque, à deriva na devastação geral.
Inicia-se então uma labiríntica procura por alguma família aparentada capaz de
acolher mais uma infância em ruínas. Às que têm a sorte de continuar com algum
colo de mãe ou presença de pai/tio/avô por perto, as sequelas previsíveis são
inomináveis. Uma observação do chefe de comunicação do Unicef dá a dimensão do
drama sentido por qualquer adulto na população cada vez mais sitiada: fazer de
tudo para que a criança não perceba que você perdeu o controle. Essa talvez
seja a carga mais dura de qualquer adulto em Gaza, hoje.
A pediatra americana Seema Jilani, assessora
sênior do Comitê Internacional de Resgate, que atua globalmente em emergências
de saúde, passou duas semanas no Hospital Al-Aqsa de Khan Yunis. Em longa
entrevista a Isaac Chotiner, da New Yorker, ela relatou como foram suas
primeiras horas de plantão ali. Chegara acompanhada de alguns cirurgiões, um
obstetra, um anestesista e um intensivista vindos do Cairo.
Já trabalhara em emergências no Afeganistão,
no Iraque, no Líbano, no Egito, na Turquia, na Líbia, no Paquistão e há 19 anos
fazia pit stops na Cisjordânia e em Gaza. Ainda assim, nada a preparara para o
horror que viu no enclave desta vez. A ausência de dignidade ali possível lhe
pareceu abissal.
A primeira criança a cair sob seus cuidados
foi um menino de 12 meses:
— Ele tinha o braço e a perna direita
arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada e se mantinha no lugar,
apesar de não haver mais perna. Eu o tratei primeiro no chão, pois não havia
macas disponíveis (...). A seu lado havia um homem emitindo os últimos
respiros. Estava ativamente morrendo havia 24 horas, com moscas por cima (...)
O bebê de 1 ano sangrava profusamente no tórax... Não havia nem respirador, nem
morfina, nem medidor de pressão em meio ao caos. (...) Um cirurgião ortopédico
envolveu com gaze os tocos da criança e comunicou que não a levaria de imediato
para o centro cirúrgico porque havia casos mais urgentes — contou com crueza a
dra. Jilani.
E concluiu, com empatia, que não conseguia
imaginar o que poderia haver de mais emergencial que um bebê de 1 ano sem mão
nem perna, sufocando no próprio sangue. A resposta, é claro, todos sabemos, a
pediatra também: algum outro estropiado da guerra, com pelo menos uma ínfima
chance de ser salvo. Considerando as carências colossais, não era o caso
daquele bebê.
Indagada sobre como avaliava a utilidade de
sua presença no caos do Al-Aqsa, Jilani apontou para algo muito além da
emergência clínica: para o corpo médico do hospital, a chegada da equipe
estrangeira significou que eles não haviam sido esquecidos, evidenciava que o
mundo não os deixara sozinhos.
Dias atrás, mais um complexo hospitalar em
Khan Yunis foi submetido a assalto maciço por parte das tropas de Israel.
Segundo o governo de Benjamin
Netanyahu, o hospital abrigava integrantes do Hamas e poderia esconder os
restos mortais de alguns dos 130 reféns israelenses ainda em mãos do grupo
terrorista. O caos, as mortes, o desamparo de civis apenas se repetem e se
avolumam. O anunciado plano israelense de ataque tous azimuts à cidade de Rafah
visando a derrotar os terroristas do Hamas é uma insânia. Ali está espremido
1,5 milhão de palestinos já exauridos. Fugiram do chão que habitavam mais ao
norte para escapar dos bombardeios. Estão numa ratoeira, enquanto o Egito ergue
um muro de 7 metros de altura delimitando vasta área do Sinai. Talvez para
recebê-los in extremis? Quem sabe o mundo acorda? Como constatou o maravilhoso
psicanalista Viktor Frankl, judeu austríaco que sobreviveu a Auschwitz, no
fundo existem apenas duas raças — pessoas decentes e pessoas indecentes.
2 comentários:
Chocante! Fico pensando no que sentem os apoiadores do massacre israelense contra os palestinos, os que parabenizam Israel, Netanyahu e seus militares... A que raça pertenceriam?
Confesso que li,gostaria de desler.
Postar um comentário