As armadilhas da nova política industrial
O Globo
Plano do governo foi apresentado de modo
vago, custa caro e não evita os riscos apontados pelos economistas
O programa Nova Indústria Brasil, lançado
pelo governo federal em janeiro, foi apresentado em termos vagos, mas com um
dado concreto: investimentos de R$ 300 bilhões até 2026, a maior parte do BNDES,
para promover o que seus defensores têm chamado de “neoindustrialização”. Tal
montante, equivalente a algo como 1% do PIB brasileiro no período, exige pausa
para reflexão. Vale a pena? Ou será apenas dinheiro desperdiçado em projetos
fadados ao fracasso, como tantas vezes no passado? Ainda não dá para avaliar a
destinação dos recursos, mas é possível desde já expor os principais riscos e
as principais armadilhas.
É preciso reconhecer que políticas industriais têm reflorescido no mundo. Nos Estados Unidos, o governo Joe Biden destinou US$ 465 bilhões a fábricas de semicondutores e à transição energética. A China é conhecida pelo dirigismo em setores considerados “estratégicos”. Depois do choque da pandemia nas cadeias globais de suprimento, países europeus e asiáticos têm adotado medidas para favorecer a produção local de medicamentos, chips ou outros produtos. O plano brasileiro foi apresentado como mais um no contexto global e segue uma década de reavaliação das políticas industriais no meio acadêmico, com visão mais favorável que no passado. “O novo não está tanto nos argumentos em prol da política industrial, mas sim na melhor mensuração desse tipo de política pública”, escreveu o economista Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre/FGV, numa síntese da discussão que o instituto realizou sobre o tema.
Políticas industriais se definem pelo
incentivo a setores ou empresas específicas, com a intenção de dar-lhes
vantagem em relação aos demais. Na teoria, o país recebe em troca benefícios na
forma de incremento das exportações, fornecimento de bens públicos necessários
— como uma matriz energética mais limpa — ou diversificação para tornar a
economia mais resistente a choques. São medidas classificadas como “verticais”,
em contraste com as “horizontais”, destinadas a beneficiar todos os setores e
empresas. Um exemplo de política “horizontal” é a reforma tributária em curso,
que provavelmente dará à indústria mais incentivo que todo o plano de
“neoindustrialização”. Quanto às políticas “verticais” específicas, o histórico
do Brasil recomenda, no mínimo, ceticismo.
Só na indústria naval, os governos petistas
enterraram US$ 26,4 bilhões sem nenhum resultado, repetindo o que já acontecera
na ditadura militar. A escolha de “campeões nacionais” em setores variados
resultou apenas em crédito barato a grupos privados, sem que tenha havido salto
de inovação ou competitividade na maioria. Subsídios recorrentes à indústria
automobilística se tornaram apenas uma forma de salvar empresas improdutivas.
Para não falar naquela que talvez seja a política industrial mais desastrada na
História recente: a reserva de mercado de informática, que manteve o país
alheio ao avanço da economia digital por décadas.
Fracassos em políticas industriais ocorrem
mesmo no país visto como modelo pelos arautos da “neoindustrialização”, a
China. Subsídios à indústria naval chinesa favoreceram as estatais, mas não
houve benefícios para o resto da economia. Outro célebre malogro chinês foi a
tentativa de criar um competidor para Boeing e Airbus com a aeronave Comac
C919. Mesmo com investimentos de US$ 70 bilhões para desenvolver o projeto, a
entrega atrasou cinco anos, e nenhum país fora da China homologou o novo avião.
Pode haver, contudo, casos em que incentivos
setoriais se justifiquem, e os exemplos da Embraer e da Embrapa — sucessos
decorrentes da aposta em conhecimento e inovação — estão aí para provar. A
literatura econômica recente tem se esmerado em definir as condições para o
êxito de políticas industriais com base em exemplos do mundo todo — da França
sob Napoleão à Coreia do Sul nos anos 1970, passando pela pecuária uruguaia.
Embora não haja conclusões definitivas, ao implementar um plano caro como o
Nova Indústria Brasil, o governo deveria prestar atenção aos erros mais
frequentes elencados pelos economistas.
É preciso manter avaliação constante e foco
em resultados mensuráveis de produtividade (nos anos 1970, a Coreia monitorava
metas de exportação e investimentos, cortando subsídios das empresas que não as
cumpriam). Todo incentivo deve ser temporário e, quando der errado, precisa ser
cortado. “A política industrial de sucesso não diz respeito a escolher
vencedores, mas sim a rejeitar perdedores”, afirmou ao jornal Financial Times o
economista Dani Rodrik, da Universidade Harvard. É ainda fundamental que haja uma
relação próxima, mas não promíscua, entre o mercado e a burocracia do setor
público. “É preciso basear a política em informação, interação e aprendizado.”
O plano Nova Indústria Brasil não enfrenta
nem esboça resposta a nenhuma dessas questões. No lugar de foco, há metas
genéricas e voluntaristas para atender a setores os mais diversos — do
agronegócio à saúde, do saneamento à biotecnologia, da energia limpa à
mobilidade urbana. “Quanto mais coisas você tentar alcançar, mais improvável
consegui-las”, disse Rodrik.
A tentativa de turbinar o BNDES também
desperta incredulidade diante do histórico. “O uso do BNDES como instrumento de
indução do crescimento econômico é hoje reconhecido como um dos maiores erros
de política econômica recente”, escreve o economista Marcos Mendes, do Insper.
“O custo fiscal foi substancial, houve a indução de alocação ineficiente de
capital, concentrou renda, subsidiou ditaduras como as de Venezuela, Cuba e
Angola, teve efeitos colaterais negativos sobre a política monetária e controle
da inflação, promoveu o afastamento de fontes privadas de financiamento de
longo prazo.”
Por fim, o plano do governo traduz a crença
injustificada no Estado como cérebro do desenvolvimento. Nada poderia ser mais
distante da realidade. “Empresas privadas não acertam sempre. Mas, quando
erram, são penalizadas pelo mercado”, afirma Mendes. A competição, diz ele,
interrompe projetos malsucedidos, enquanto o “Estado pode sustentar por muitos
anos iniciativas fracassadas, pois obtém financiamento pela extração
compulsória de impostos”. Os riscos da nova política industrial do governo
estão claros. Só falta ele esclarecer o que fará para evitar as armadilhas.
Receita promete nova forma de ação; a ver
Folha de S. Paulo
Projeto de lei que busca diferenciar bons e
maus pagadores é correto na teoria, mas sanha arrecadatória petista preocupa
É positivo, ao menos em teoria, o projeto de
lei enviado pelo governo ao Congresso com o objetivo declarado
de melhorar a relação entre a Receita Federal —um órgão conhecido pela
voracidade por recursos— e os contribuintes.
O intuito, correto, é desenvolver um sistema
que incentive a conformidade de empresas, mude a lógica de antagonismo e reduza
litígios. Não menos importante, busca-se diferenciar com maior clareza bons e
maus pagadores, de modo que o fisco possa concentrar esforços nos devedores
recorrentes.
A proposta tem três partes: políticas de
conformidade, medidas para o controle de benefícios fiscais e a criação de um
cadastro de devedores contumazes.
Quanto à conformidade, há três iniciativas. A
primeira, voltada para empresas com faturamento mínimo de R$ 2 bilhões anuais e
dívidas acima de R$ 100 milhões, é o chamado Programa de Conformidade
Cooperativa Fiscal (Confia).
Instituído por normativo da Receita em
dezembro para uma fase de testes, o Confia abrange um universo de cerca de
1.600 pessoas jurídicas e almeja a resolução ágil e amigável de controvérsias
tributárias. Na prática, busca-se maior disposição para autorregularização das
empresas, sem multas no caso de não haver acordo em 120 dias.
A segunda providência é o Sintonia, que
abrange todos os contribuintes e estimula boas práticas. Cultura mais
cooperativa e interlocução eficaz entre fisco e empresas são certamente
bem-vindos para melhorar o ambiente de negócios.
Há ainda regulamentação adicional do Operador
Econômico Autorizado (OEA), uma modalidade existente desde 2015 para agilizar o
comércio exterior.
Também é pertinente a busca do governo por
melhor controle de incentivos fiscais, que proliferam sem controle no país. A
ideia é que as empresas beneficiadas especifiquem de qual regra se valem.
O cadastro de devedores contumazes, por fim,
é medida óbvia para punir quem de fato explora as brechas da lei. Os piores
casos são os daqueles que refinanciam dívidas fiscais repetidamente.
No agregado, deve-se apoiar a visão
manifestada pelo secretário especial da Receita, Robinson Barreirinhas, de que
o antagonismo está ultrapassado, e o fisco moderno é o que orienta o bom
contribuinte.
São palavras sensatas, mas o desafio estará
na prática cotidiana. Como se sabe, qualquer mudança cultural ou institucional,
para ser efetiva, depende de compromisso e aperfeiçoamentos continuados.
A sanha
arrecadatória do governo petista, num panorama de carga tributária
já escorchante, é decerto um motivo de preocupação.
Navalni e a Rússia
Folha de S. Paulo
Morte de opositor de Putin na cadeia
evidencia degeneração autoritária do país
Após um calvário de três anos, Alexei
Navalni morreu em uma prisão russa num canto ermo do país, 40 km
acima do Círculo Polar Ártico. Ele tinha apenas 47 anos.
Com ele desaparece não só o mais proativo
crítico de Vladimir Putin surgido na última década; vai-se também um dos
últimos suspiros de oposição em um país onde a calcificação do sistema político
virou um fim em si mesmo.
Não que Navalni fosse perfeito, muito ao
contrário. Figura dada a polêmicas, esposou visões chauvinistas e
preconceituosas do mundo antes de ser adotado pelo Ocidente como o cavaleiro
salvador da democracia russa.
Isso ele nunca foi. Os eleitores não chegaram
a vê-lo como opção real a Putin, único homem que todos os nascidos a partir de
agosto de 1999 viram como líder do país mais vasto do mundo.
Navalni tampouco dizia a que veio, como o
proverbial cão que corre atrás de um automóvel e não tem ideia do que fazer
quando enfim alcança seu objetivo. Faltava-lhe ideário político e econômico,
para não falar de equipe.
Sobravam-lhe, contudo, engenho, expresso nos
grandes protestos que mobilizou contra Putin, e coragem. Quando foi envenenado
na Sibéria, acabou removido para tratamento na Alemanha.
Poderia ter ficado por lá com sua mulher e
dois filhos, mas decidiu voltar a Moscou de forma temerária. Foi preso
imediatamente e nunca mais deixou o cárcere, tendo uma pena de três
anos e meio aumentada para 30 anos e meio em julgamentos subsequentes.
O cheiro de perseguição política evidente se
espraiou pelas condições de seu encarceramento, com longos períodos em celas
solitárias e o previsível declínio físico —que, nunca se deverá saber ao certo,
pode ter sido central para sua morte.
É improvável que algo mude: o Ocidente
continuará a chamar Putin de assassino, e os russos tendem a manter a aprovação
acima de 80% de seu líder em uma guerra que pode vencer contra a Ucrânia.
Se tal cenário é multifatorial, incluindo aí apoio genuíno a Putin, é certo que a morte de Navalni será marca dos efeitos da degeneração autoritária crescente da Rússia.
A necessária autocrítica do STF
O Estado de S. Paulo
Como mostra pesquisa, confiança dos brasileiros no STF está se deteriorando, mas não porque a Corte defendeu o Estado de Direito, e sim pelos abusos cometidos a pretexto dessa defesa
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal
(STF) prestou inestimáveis serviços: da punição aos corruptos do mensalão à
preservação das prerrogativas dos Estados na pandemia e a defesa do processo
eleitoral, além da responsabilização dos executores e artífices do atentado do
8 de Janeiro. Em momentos críticos, o STF teve papel crucial na defesa da
soberania do povo, encarnada nas instituições republicanas. E, no entanto, o
sentimento desse mesmo povo em relação à mais alta instância judicial do País é
de desconfiança.
Segundo pesquisa AtlasIntel, mais da metade
dos brasileiros diz não confiar no STF. Entre 51% e 56% dos entrevistados
consideram “péssima” a atuação dos ministros em questões capitais, como a
defesa da democracia, o respeito ao Legislativo, reformas para melhorar o
Judiciário, correção de abusos de instâncias inferiores, profissionalismo e
competência dos ministros, defesa dos direitos individuais, imparcialidade
entre rivais políticos e combate à corrupção. A trajetória é de deterioração.
Em um ano, os que confiam no STF caíram de 45% para 42%, e os que não confiam
cresceram de 44% para 51%.
Justificado ou não, esse descrédito é ruim. O
bom funcionamento do Estado Democrático de Direito depende de um Judiciário que
seja não só autônomo e independente, mas também respeitado. A percepção ideal
da Justiça é de um quadro de servidores qualificados, que julgam conflitos
sobre os quais não têm parte, aplicando leis que não criaram. Mas o sentimento
predominante sobre o STF é o oposto: de uma Corte incompetente, instável,
politizada, conivente com a corrupção e até autoritária.
Uma das razões estruturais e exógenas para
essa desconfiança é uma disfuncionalidade constitutiva. Constituições deveriam
ser abstratas e sucintas, consagrando direitos fundamentais e princípios
basilares para o funcionamento do Estado, e deixando o resto às composições
políticas. Mas os constituintes pecaram por excesso, confeccionaram uma Carta
abrangente e pormenorizada e atribuíram à Corte constitucional competências
excessivamente amplas, inclusive sobre matérias penais e administrativas.
Obrigado a arbitrar sobre controvérsias que em outras partes do mundo são
deixadas a outras instâncias judiciais ou, sobretudo, à política, o STF é
sobrecarregado e tragado por paixões partidárias.
Essa disfuncionalidade incentiva o
oportunismo político. As esquerdas, com frequência minoritárias nas Casas
Legislativas, recorrentemente tentam reverter na Corte políticas que perderam
no voto. Populistas à direita, insatisfeitos com prerrogativas das minorias,
elegem a Corte como o “inimigo público número um” quando esta não se dobra à
“vontade do povo” – nome que eles dão ao alarido dos reacionários.
Nada disso exime os ministros de fazer um
exame de consciência. A maior causa da deterioração da autoridade do STF não é
a sua atuação em defesa da democracia ou da Constituição, mas os abusos
cometidos a pretexto dessa defesa: invasões de competências legislativas,
protagonismo midiático, atropelamento do processo legal, relações promíscuas
com os poderosos de turno.
Um exemplo cristalino são as arbitrariedades
nos inquéritos conduzidos por Alexandre de Moraes contra atos antidemocráticos,
as chamadas “milícias digitais” e as fake news. Outro são as revisões
monocráticas de Dias Toffoli de acordos fechados no âmbito da Operação Lava
Jato. É fato que, em nome do combate à corrupção, a Lava Jato se permitiu toda
sorte de abusos, mas, ao invés de corrigi-los, Toffoli, com a conivência de
seus pares, incorre nos mesmos abusos, com o sinal trocado. De instância
saneadora do lavajatismo, o STF se converteu em antilavajatista, instaurando um
neolavajatismo. É o mesmo voluntarismo messiânico. Só que dessa vez a população
está escolada: segundo a AtlasIntel, nada menos que 80% discordam da suspensão
das multas impostas aos criminosos confessos.
De guardiães do Estado de Direito, alguns
ministros se autoatribuíram a missão de vigilantes da política. Mas a população
começa a se perguntar quem, afinal, vigia os vigilantes. Outros se mostram
impacientes com a ordem jurídica e, ao invés de serem seus operadores, querem
ser seus reformadores para curar “injustiças sociais”. Mas a população parece
esperar deles algo mais modesto: que apenas cumpram a lei e respeitem o Estado
Democrático de Direito.
Todos ganham com a reforma administrativa
O Estado de S. Paulo
Se for racional e bem conduzida, a reforma
para regenerar a burocracia estatal, máquina que hoje produz desigualdade,
pobreza, injustiça e conflito, será a mais popular das agendas
Nos últimos 25 anos, o salário dos servidores
de elite do Executivo federal aumentou, em média, 40% acima da inflação. Mas os
dados, levantados pelo Movimento Pessoas à Frente, mostram uma trajetória
díspar. Carreiras com maior poder de pressão – seja porque estão mais próximas
do centro do poder (como analistas de gestão, Orçamento e planejamento), ou
porque têm a chave do cofre (auditores fiscais), ou porque estão associadas ao
maior acumulador de privilégios, o Judiciário (advogados da União) – acumularam
aumentos de até 60%. Inversamente, postoschave de alta relevância política e
complexidade técnica, mas que são comissionados, não concursados, sofreram
depreciação de quase 40%. Um secretário nacional, o número dois dos
ministérios, ganha hoje menos que um auditor fiscal em início de carreira.
Tais disparidades retratam um sistema
disfuncional e arbitrário que se torna cada dia mais uma máquina de gerar
desigualdades, pobreza, injustiça social e conflito civil. Desigualdade,
porque, em média, os trabalhadores do setor público ganham acima de seus pares
na iniciativa privada (até 50%), e a desigualdade entre as carreiras do topo e
as da base no setor público é maior do que no privado (até sete vezes).
Pobreza, porque uma máquina custosa e improdutiva pressiona as contas públicas
– e, logo, a carga tributária e a dívida pública, o que corrói a renda pelos
juros e inflação –, contrai os investimentos públicos e afugenta os privados.
Injustiça social, porque os mais pobres (que, em razão de uma tributação
regressiva, pagam proporcionalmente mais) são os que mais sofrem com a carência
de serviços básicos como saúde, segurança ou educação. E conflito, porque estas
distorções e perversões incitam a descrença do cidadão em relação ao Estado
Democrático de Direito e desencadeiam um ciclo vicioso de vilanização dos
servidores retroalimentada pela sua vitimização.
O Estado brasileiro é grande demais, porque é
ineficiente, e gasta demais, porque gasta mal. Corrigir essa situação é não
tanto uma questão de solucionar uma disputa abstrata entre o Estado “mínimo”
(de certas vertentes liberais) e o Estado “máximo” (das vertentes socialistas),
ou mesmo entre redução de gastos ou aumento de impostos, mas de encontrar
mecanismos concretos para que o Estado seja eficaz e gaste bem conforme as
prioridades da população. A sociedade brasileira optou, por exemplo, por um
serviço universal de saúde. Isso tem um custo, que os cidadãos estão dispostos
a pagar, mas desde que seja revertido em benefícios.
Há disfunções que exigem mudanças
constitucionais. Em todo o mundo prevê-se o regime de estabilidade para
resguardar a burocracia e políticas de Estado das alternâncias partidárias. Mas
em países desenvolvidos essa condição é prerrogativa de poucas carreiras de
Estado. A estabilidade universal cimentada pela Constituição não tem paralelo
no mundo.
Mas mais urgente, relevante e factível que
mudar o regime de estabilidade é regulamentar sistemas mais flexíveis de
progressão e realocação de carreira com base em metas, necessidades e
avaliações de desempenho que premiem os mais comprometidos. Isso implica
reduzir os salários iniciais e eliminar progressões automáticas. São distorções
que podem ser corrigidas com legislação ordinária, assim como uma perversão que
tem impacto, sobretudo, moral: os privilégios, supersalários e penduricalhos
acumulados por pequenas castas.
Uma agenda de reformas da administração
pública seria uma oportunidade de reverter o atual ciclo de subdesenvolvimento
excludente em uma trajetória de desenvolvimento inclusivo. A um tempo, ela
promoveria um revigoramento cívico e político, incentivando a sociedade a se
aproximar e participar da gestão da coisa pública; garantiria melhores serviços
a todos, inclusive aos funcionários públicos e especialmente aos cidadãos mais
vulneráveis; melhoraria as condições de produtividade e crescimento econômico;
e promoveria mais distribuição de oportunidades e renda, inclusive entre os
servidores públicos.
De pai para filho
O Estado de S. Paulo
Inadimplente em mais de US$ 500 milhões, Cuba
apela à boa vontade lulopetista
Um encontro recente de representantes dos
governos cubano e brasileiro no Ministério da Fazenda, em Brasília, selou
oficialmente a reabertura das negociações sobre a dívida de Cuba com o Brasil,
que supera meio bilhão de dólares. O débito é praticamente todo referente ao
financiamento da reforma do Porto Mariel, obra iniciada em 2010 pela Odebrecht,
no final do segundo governo Lula da Silva.
Foi um período de desmesurada generosidade da
gestão petista com nações companheiras. Cuba teve tratamento especial, com 25
anos para pagamento do empréstimo de US$ 656 milhões, mais do que o dobro do
prazo médio de 11 anos dado aos demais, e taxas de juros quase simbólicas, que
chegavam a menos de 5% ao ano. Porto Mariel foi também o único projeto atrelado
100% ao risco soberano de um país.
Nada disso era conhecido à época. Alegando
sigilo comercial, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) não divulgava detalhes do financiamento, que somente depois dos
escândalos de corrupção revelados pela Lava Jato vieram à tona – inclusive em
depoimentos de acordos de leniência que agora o ministro do Supremo Tribunal
Federal Dias Toffoli, que já foi citado por Marcelo Odebrecht como “o amigo do
amigo do meu pai”, se empenha em desqualificar.
Em depoimento em 2016, o pai de Marcelo,
Emílio Odebrecht, contou que a obra no porto cubano não estava nos planos da
Odebrecht nem do BNDES. Afirmou que a ideia partiu do caudilho venezuelano Hugo
Chávez, num encontro na Venezuela, e foi apoiada por Lula da Silva. Uma
completa ação entre amigos. Na inauguração, Marcelo Odebrecht estava lá, com a
então presidente Dilma Rousseff, ao lado do ditador cubano Raúl Castro.
Agora, com Lula da Silva em sua terceira
passagem pelo Palácio do Planalto, Cuba volta a negociar uma dívida claramente
impagável para um país em profunda crise econômica desde que perdeu a mesada
soviética, além de sofrer embargo dos Estados Unidos. A incapacidade financeira
de Cuba para honrar seus compromissos era, portanto, notória, e o calote, mais
do que esperado.
É imperioso que os gestores públicos
respeitem um dos principais critérios financeiros: dívida é dívida e, como tal,
tem de ser paga. Principalmente quando se trata de dinheiro público e, ainda
mais relevante, quando se trata de relação comercial entre países. O BNDES está
sendo ressarcido por parte dos prejuízos com dinheiro do erário brasileiro. No
caso de Cuba, o Fundo Garantidor de Crédito, do Ministério da Fazenda, já pagou
US$ 273 milhões. E ainda há 11 prestações a serem pagas, de acordo com dados do
próprio banco.
Flexibilização de dívida é um procedimento normal entre credor e devedor, o que não significa, obviamente, fazê-la descer a um nível tão baixo que se assemelhe a um perdão. No passado recente, Cuba lastreou parte do empréstimo em recebíveis da indústria estatal de tabaco. Espera-se que a benevolência petista com os companheiros cubanos não leve à quitação de US$ 500 milhões em charutos.
O Brasil num mundo de mais incertezas
Correio Braziliense
O nível de atividade nos Estados Unidos, a
principal locomotiva do mundo, está fraquejando, o que levou o Federal Reserve
(Fed), o Banco Central norte-americano, a sinalizar um possível corte nas taxas
de juros nos próximos meses
Os dados da economia mundial devem ser vistos
com muita atenção pelo governo brasileiro. Os números captados nos quatro
cantos do planeta apontam que um processo de desaceleração da economia está em
curso, e isso terá seu preço para o Brasil, que, em 2023, se aproveitou muito
dos ventos globais positivos que ainda estavam soprando, o que resultou em um
saldo recorde da balança comercial de quase US$ 100 bilhões. Em 2024,
certamente, o comércio internacional tenderá a andar a passos mais lentos,
reduzindo a força de um dos pilares que sustentaram o avanço do Produto Interno
Bruto (PIB) na casa de 3%.
O nível de atividade nos Estados Unidos, a
principal locomotiva do mundo, está fraquejando, o que levou o Federal Reserve
(Fed), o Banco Central norte-americano, a sinalizar um possível corte nas taxas
de juros nos próximos meses. Nos últimos dias, vários indicadores importantes
endossaram esse quadro. A produção industrial registrou queda de 0,3% em
janeiro, quando os analistas esperaram alta de 0,2%. As vendas do varejo
computaram um tombo ainda maior, de 0,8%. No mercado imobiliário, com peso
importantíssimo no PIB do país, tanto as vendas quanto as construções de
imóveis despencaram entre 20% e 30% frente ao mês anterior.
O que mais tem perturbado os analistas é que,
mesmo com esse enfraquecimento da economia dos EUA, a inflação se mantém
resistente e voltou a surpreender para cima. No mês passado, os preços aos
consumidores acusaram elevação de 0,3%, acima do projetado pelo mercado (0,2%).
Já os preços no atacado saltaram 0,3% ante o 0,1% projetado, com o núcleo da
inflação, que desconta fatores atípicos, aumentando 0,6%. Nesse contexto de
atividade fraca, mas com custo de vida em alta, o Federal Reserve terá mais
dificuldade para calibrar os juros. Havia um quase consenso de que as taxas
baixariam a partir de maio, agora, já se discute o início dos cortes em junho.
Essa incerteza prejudica, sobretudo, os países emergentes, como o Brasil, que
veem os investidores travados num ambiente de riscos consideráveis.
No Reino Unido, a recessão já chegou. O PIB
do quarto trimestre de 2023 recuou 0,3%, depois de ter contraído 0,1% entre
julho e setembro. No acumulado do ano, a economia britânica avançou apenas
0,1%, nada perto dos 4,3% observados em 2022. No Japão, a atividade também
tombou nos três últimos meses do ano passado. A expectativa era de crescimento
de 0,2% frente ao trimestre imediatamente anterior, mas houve queda de 0,1%. Na
União Europeia, não foi diferente. O PIB caiu 0,1% entre outubro e dezembro últimos,
fazendo com que o resultado final do ano tivesse incremento de minguado 0,5%.
O Brasil, ressalte-se, está longe de uma
recessão. Mas há um movimento leve de desaceleração em curso. Os sinais do
primeiro trimestre são de um PIB melhor que o projetado, mas há preocupações
com o restante do ano. Será preciso que o governo mantenha firme o compromisso
de ajuste nas contas públicas, permitindo que o Banco Central possa continuar
cortando a taxa básica de juros (Selic). Se os gastos federais não saírem do
controle, será possível que a autoridade monetária leve a Selic, que está em
11,25%, até 8,75% ao ano em dezembro, um afrouxamento e tanto.
A queda dos juros iniciada no ano passado ainda não teve efeito na atividade. Esse processo leva de seis a nove meses. Assim, espera-se que, no segundo semestre, a política monetária menos restritiva estimule os investimentos e o crédito ao consumo. São instrumentos importantes para manter a roda da economia girando. O governo tem a seu favor a inflação mais baixa. No atacado, são dois meses seguidos de queda dos preços. Ou seja, esse movimento chegará aos consumidores, como se viu nos primeiros meses de 2023. Portanto, paciência e bom senso farão muito bem ao Brasil neste mundo cada vez mais complexo e imprevisível.
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