O Estado de S. Paulo
A seletividade da denegação da existência de
Israel estimula o discurso de ódio e a hostilidade em relação aos judeus
As críticas às políticas de Estados Unidos, Venezuela, Rússia, Irã e Síria frequentam a agenda da opinião pública. Não passam, no entanto, pela denegação de suas existências como Estados. Hoje muitas críticas à atuação de Israel em Gaza vão além do aceso das polêmicas sobre a aplicação das normas do direito humanitário ou da gravíssima situação humanitária em Gaza. Resvalam pela denegação de sua existência. Neste contexto, cabe a pergunta: de que maneira um antissionismo bastante presente na crítica a Israel é uma modalidade contemporânea de antissemitismo?
O sionismo é uma expressão do movimento das
nacionalidades que passou a caracterizar, a partir do século 19, a legitimidade
de Estados na ordem mundial. Itália e Alemanha são exemplos. No bojo desta
tendência, o movimento sionista buscou a construção de um Estado como resposta
às perseguições que os judeus padeceram como uma minoria discriminada. Nos
termos da Carta da ONU, isso se configura como o princípio da autodeterminação
dos povos.
As aspirações do sionismo se traduziram no
reconhecimento de Israel como um Estado independente, entre os Estados que
integram a comunidade internacional e são membros da ONU.
Uma das suas fontes jurídicas foi a Resolução
n.º 181, da Assembleia-Geral da ONU, em sessão presidida pelo eminente
brasileiro Oswaldo Aranha, que, levando em conta a realidade demográfica da
região, aprovou a partilha da Palestina em dois Estados: um judaico e um árabe.
O reconhecimento é um termo do Direito
Internacional. Tem várias acepções que são convergentes. Entre elas, aceitar,
admitir, afirmar, estabelecer, não contestar, respeitar. Denegar o direito à
existência de Israel se contrapõe ao seu reconhecimento internacional, nas suas
múltiplas dimensões. Fere o princípio constitucional da igualdade dos Estados,
que rege as relações internacionais do Brasil. Tem a característica única de
uma seletividade, pois inexistem, na prática internacional, outras manifestações
de denegação da existência de qualquer outro Estado reconhecido na vida
internacional nas críticas a suas políticas, como vem ocorrendo em relação a
Israel nas polêmicas sobre a sua condução da guerra em Gaza, que é uma reação à
agressão terrorista do Hamas ao seu território.
Esta seletividade negacionista faz do
antissionismo uma manifestação de antissemitismo. Comporta analogia com o
negacionismo revisionista da denegação da verdade factual do Holocausto.
Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo,
examina como o antissemitismo moderno transformou-se num instrumento de poder.
Destaca que, entre as suas notas, está o conceito de “inimigo objetivo”, que é
um combate não a um judeu como indivíduo, mas aos judeus em geral. Foi o caso
do antissemitismo nazista, que tornou todos os judeus “inimigos objetivos”, a
serem exterminados.
O verbete antissemitismo do clássico
Dicionário de Política de Bobbio observa que, de um ponto de vista geral,
antissemitismo é hostilidade em relação aos judeus. Pontua que foi e é
aplicável a distintos fenômenos históricos. Esclarece que o antissemitismo
moderno é distinto do tradicional, por exemplo, o de natureza religiosa. Por
isso, pode-se falar com mais propriedade de antissemitismos, no plural. Uma das
modalidades atuais do antissemitismo é o antissionismo. O sionismo não é
monolítico, não comporta recortes caracterizadores de sua configuração. Contém
no seu bojo múltiplas vertentes dos valores e da diversidade presentes no
âmbito democrático da sociedade civil israelense.
Israel desempenha um papel simbólico e
transversal, de maior ou menor intensidade, na pluralidade da condição judaica.
Isso não se traduz num endosso a todas as políticas de governos israelenses, no
âmbito das comunidades judaicas no mundo. Estas, aliás, são frequentemente
críticas, como ocorre no âmbito da sociedade israelense. Disso são exemplos as
recentes contestações que o governo Netanyahu vem enfrentando. Traduz-se, isto
sim, nos seus âmbitos, inclusive no Brasil, na sensibilidade própria de um apego
à existência do Estado de Israel.
Na geografia das paixões do mundo
contemporâneo e do jogo do poder que a caracteriza, denegar o direito à
existência do Estado de Israel é buscar transformá-lo num “inimigo objetivo” da
comunidade internacional, num Estado pária. A seletividade única deste empenho
atinge a população israelense, suas universidades e sua sociedade civil. Fere o
princípio básico dos direitos humanos: o da igualdade e o seu corolário lógico,
a não discriminação.
A seletividade da denegação da existência de
Israel estimula o discurso de ódio e a hostilidade em relação aos judeus, como
tem ocorrido lamentavelmente em nosso país, por meio de declarações e de
ataques pessoais. Propicia o incitamento à discriminação. Fere o bem público
consagrado na Constituição de promover o bem de todos, sem preconceito de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da
USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992, 2001-2002).
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