Folha de S. Paulo
Dada a oportunidade, pode-se viver a atração
por monstro como licença para assassinar
Entra para a história universal do grotesco a
autodúvida escatológica do ex-presidente na reunião de 5/7/22: "Como é que
eu ganho uma eleição, um fodido como eu? Deputado do baixo clero, escrotizado
dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado". De fato,
um atordoante engano, que começa a desvelar-se pela notícia de que mais de mil
pessoas com mandados de prisão pelo 8/1 fizeram doações por Pix à anomalia.
Segundo a pesquisa Quaest, 43% das pessoas não veem dedo dele na
invasão. Ele já convoca para manifestação em fevereiro.
Nesse gênero ficcional, dados históricos
costumam ser verossímeis. Exceto aquele juízo de inutilidade. Na realidade, os
comandos ingleses que degolavam sentinelas alemães no deserto africano eram
recrutados nessa arraia-miúda social. Os "insignificantes"
tornavam-se matadores. Dada a oportunidade, pode-se viver a atração por monstro
como licença para assassinar. Plenitude hobbesiana: o homem é o único animal que assassina (outra é a
lógica da fera, que mata por fome ou território).
Entender o empoderamento da insignificância exige enxergar o povo real e não
derivações de um proletariado idealizado como classe histórica. O povo
recém-descoberto à luz das redes sociais, do gnosticismo bronco imiscuído em
organizações de poder e do tropismo para a tirania não tem a ver com a
ideologia do trabalho sob as formas do capital, e sim com o que a sociedade
civil exclui.
Esse segmento sempre existiu como plebe, ralé, lumpen, ou seja, estratos
marginalizados e investidos de rancor, abaixo do ordenamento culto que norteia
a divisão social. A subjetividade política não mais se deduz da sociedade de
classes. Mesmo nos surtos populistas, há surdez à linguagem popular.
A atual ultradireita tem ouvidos abertos. Em princípio, porque não há diferença
emocional entre ela e a insignificância cívica: uma massa tosca em que o indivíduo, além do círculo
íntimo, não sabe mais ao certo quem é ele mesmo. Mas ouve de espertalhões que é
um combatente da "liberdade". De miseráveis a bem-nutridos, fica
patente a atração comum por modulações caracterológicas de Hitler, emblema
cívico-militar do extermínio. Ou impulsão infanto-midiática para um Godzilla
arrasador. É fenômeno impermeável à razão liberal, com "monstruário"
alternável: proscritos reciclando lixo político, candidatos poluindo a
civilidade.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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