O Estado de S. Paulo
No atual cenário, como cogitar realisticamente o alcance da tão aclamada igualdade de oportunidades?
Imagine uma enquete em que a seguinte
pergunta é feita aos brasileiros: você preferiria ser mais pobre num país menos
desigual ou ser menos pobre num país mais desigual? A grande maioria dos
brasileiros provavelmente preferiria ser menos pobre num país mais desigual. A
preocupação maior das pessoas seria, compreensivelmente, a própria pobreza, não
a desigualdade (em outros e mais amplos termos: o problema não seriam os poucos
que acumulam fortuna, mas os muitos que deixam de comer para poder comprar material
escolar).
Vale estender essa discussão. Primeiro,
registrando que ela normalmente gira em torno da desigualdade de renda apenas,
embora esse não seja o único tipo de desigualdade relevante na sociedade. Além
disso, a hipotética enquete acima não inclui a alternativa “ser menos pobre num
país menos desigual”. Se tivesse sido incluída, provavelmente seria ela a
preferida dos brasileiros.
O problema é que o Estado brasileiro combate a pobreza, mas não a desigualdade. Examinando a evolução da política tributária brasileira entre 1985 e 2017, com foco no Imposto de Renda das pessoas físicas (IRPF) – imposto federal com efeito distributivo mais claro e direto –, Eduardo Lazzari e Jefferson Leal concluem que “nenhum governo implementou mudanças significativas na política tributária que visassem a reduzir a desigualdade por meio desse imposto”. Mais ainda: “A maior parte das alterações às quais o IRPF foi submetido implica a redução da progressividade desse imposto, por meio de isenções e deduções” (As políticas da política).
Por imposição constitucional, o IRPF é um
tributo progressivo. Por isso, quanto maior for a renda do contribuinte, maior
deverá ser o imposto pago por ele como parcela dos seus rendimentos.
Entretanto, no estudo citado acima, lemos que a faixa de renda mais rica, que
declara mais de 160 salários mínimos, concentra em média 34% de todos os
rendimentos isentos do IRPF, enquanto, entre os rendimentos tributáveis, essa
mesma faixa responde por apenas 3%.
O expressivo porcentual de rendimentos
isentos dentre os muito ricos decorre sobretudo da não tributação de lucros e
dividendos distribuídos por empresas aos seus beneficiários. Como mostra
Marcelo Medeiros em Os ricos e os pobres, o 1% mais rico recebe em torno de 3/4
de todos os lucros, dividendos e rendas de empresas do País. Este 1%
corresponde a 1.536.670 pessoas com renda média mensal de R$ 87.776 (nota
técnica do Observatório de Política Fiscal, janeiro de 2024).
Não surpreende, então, que, para o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “os impactos redistributivos da
tributação direta são pífios, mostrando haver espaço para que esse instrumento
seja empregado na diminuição da desigualdade” (Impactos redistributivos das
transferências públicas monetárias e da tributação direta: evidências com a POF
20172018). Daí o justo clamor pela retomada da incidência do Imposto de Renda
sobre lucros e dividendos (a ser calibrada com a tributação das pessoas jurídicas,
as regras de distribuição disfarçada de lucros, etc.).
É importante ressaltar que o combate à
desigualdade não é incompatível com o combate à pobreza, inclusive porque esses
combates não ocorrem da mesma forma. A incompatibilidade que existe é de outro
tipo, como nos diz o colunista Fabio Giambiagi: “Não haverá futuro decente para
o Brasil enquanto quem carrega politicamente a bandeira do combate à
desigualdade continuar com um viés anticapitalista e quem defende a bandeira do
capitalismo continuar insensível diante de um dos quadros distributivos mais
iníquos do mundo” (“Não há futuro para o Brasil enquanto existir
insensibilidade à desigualdade de renda”, Estadão, 29/12/2023).
O fato de o Brasil ter, como diz Giambiagi,
“um dos quadros distributivos mais iníquos do mundo” tem repercussões que
ultrapassam a desigualdade de renda em si. Afinal,
desigualdade de renda gera concentração de
poder, que beneficia pequenos grupos influentes, reprime a produtividade,
restringe o debate público e distorce o sistema político a ponto de perpetuar
não só as desigualdades, mas também a pobreza.
Como já dito neste espaço, a excessiva
desigualdade de renda presente no Brasil fabrica mundos distintos dentro do
País. Por exemplo, o leitor deste texto que pertença ao grupo dos mais ricos
provavelmente não frequenta, talvez nem conheça, hospitais e escolas
localizados na periferia da sua cidade (talvez nunca tenha passado pela
região). Já o leitor que pertença a um estrato mais pobre provavelmente nunca
esteve nos locais privados de lazer frequentados pelos mais ricos, nem se
locomove na cidade da mesma forma. E não são só as realidades; também as
expectativas de vida são outras.
Num cenário tão desigual, a conciliação de
interesses fica mais difícil e a confiança tanto interpessoal quanto nas
instituições rareia (o Brasil, disse o Banco Interamericano de Desenvolvimento
em 2022, é o país onde há menos confiança em toda a América Latina e o Caribe).
Quanto menor essa confiança, menores a coesão social, a colaboração entre as
pessoas e a estabilidade política. Neste cenário, como cogitar realisticamente
o alcance da tão aclamada igualdade de oportunidades?
*Doutor em Direito pela USP e pela Università
degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi
e Facamp
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