O Globo
É a eterna briga entre Estado mínimo e Estado
paternalista, e o Estado eficiente que lute para ser levado em conta
Uma lenda urbana prosperou durante a pandemia
de Covid-19: superada a emergência sanitária, nos tornaríamos pessoas melhores.
A tragédia global teria o “lado bom” de turbinar a solidariedade. O isolamento
social nos faria redescobrir a vida, à Vinícius de Moraes, como a arte do
encontro. Passado o flagelo, caídas as máscaras, haveria mais abraços, e
ninguém soltaria a mão de ninguém.
Balela.
A calamidade no Rio Grande do Sul mostra que continuamos como dantes — os antivacina e os anticloroquina ladrando uns contra os outros enquanto a enxurrada passa, arrastando vidas, histórias, História. Catástrofes em regiões de população majoritariamente preta e parda recebem o carimbo de “racismo ambiental”; no Sul, com vítimas de ascendência europeia, a responsabilidade vai para os governos neoliberais. É a eterna briga entre Estado mínimo e Estado paternalista — e o Estado eficiente que lute para ser levado em conta.
O Ministério da Gestão e da Inovação em
Serviços Públicos hesitou em adiar o “Enem dos concursos”. A ANTT demorou
a entender que multar por excesso de peso caminhões que levavam doações era
como parar ambulância por ultrapassar limite de velocidade. O Ministério da
Igualdade Racial tentou substituir, na distribuição de alimentos, o critério de
necessidade pelo de origem étnica (a inqualificável ministra Anielle Franco não
se pejou em armar palanque eleitoral enquanto ainda se choram os mortos e se
buscam os desaparecidos).
Sem as amarras da burocracia, vieses
ideológicos e interesses que não os humanitários, anônimos e celebridades têm
sido um exemplo do que o Estado deveria fazer. Não pode botar o jet-ski estatal
na água suja porque estraga o equipamento? Lá estão os jet-skis particulares,
tão enlameados quanto seus pilotos, porque gente e bicho é que são
insubstituíveis. E está melhorando: Dilma levou uma semana para ir a Minas, em
2015, ver os estragos. Lula, com popularidade em baixa, já foi duas vezes ao
Sul.
Mas as lições do rompimento da barragem em
Mariana não ajudaram a evitar que a cena se repetisse em Brumadinho. As chuvas
que, em 2011, mataram mais de 900 pessoas na Região Serrana (cerca de cem
talvez jamais sejam encontradas) não foram suficientes para a prevenção em
Petrópolis (2022) e na Baixada (2024). Será a devastação do Vale do Taquari só
mais uma da série? Porque os megadesastres naturais é que são o novo normal. E
não bastará reconstruir o que se perdeu. Haverá que fazê-lo em novas bases.
Depois da grande seca de 1877 a 1879 (que
causou a morte de aproximadamente meio milhão de pessoas no Nordeste — a
maioria, no Ceará),
um comovido Pedro II declarou que venderia as joias da Coroa (ou, segundo
outras versões, até a última pedra da sua coroa), mas nenhum nordestino
morreria de fome. Criaram-se comissões, cogitou-se a construção de ferrovias, a
transposição das águas do Rio São Francisco, a importação de camelos.
E aí vieram as secas de 1915 a 1918, de 1932
(com direito a “campos de concentração” para retirantes), de 1958 a 1959, de
1979 a 1983 (estimativa de 1 milhão de mortos), de 1998 a 1999, de 2000 a 2003,
de 2010 a 2012, de 2017... Nenhuma joia dos Orleans e Bragança foi posta à
venda, e a coroa (de ouro 18 quilates, com 639 diamantes e 77 pérolas)
permanece intacta — assim como a incapacidade do Estado de cumprir seu papel.
2 comentários:
Artigo brilhante. Assino embaixo.
É mais fácil socorrer pessoas na seca do que nas enchentes.
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