O Globo
Perdemos outra vez a oportunidade de nos unir
e dar as mãos em solidariedade
Uma antiga máxima política diz que guerras e
catástrofes unificam o país. No passado, políticos enfrentando dificuldades
chegaram a se lançar em guerras com o único propósito de unir o país sob sua
liderança. Mas a máxima não tem funcionado adequadamente em tempos de
polarização. Na pandemia, o Brasil não se uniu, mas se dividiu, de maneira
ainda mais aflitiva que em tempos de normalidade. Agora, com a tragédia no Rio
Grande do Sul, perdemos outra vez a oportunidade de nos unir e dar as mãos em
solidariedade.
Quando meio milhão de gaúchos atingidos pelas enchentes tiveram de abandonar suas casas, uma enxurrada de publicações e mensagens no meio digital passou a promover a ideia de que o governo e entidades governamentais não apenas não se empenhavam em ajudar a população, como criavam obstáculos, exigindo licenças de quem queria ajudar com lanchas, barcos e jet-skis ou notas fiscais de caminhões e carros que traziam doações. Nem o Exército brasileiro foi poupado das críticas.
Esse discurso é especialmente difundido por
bolsonaristas, mas não apenas por eles. Num levantamento de 2 mil publicações
no X (antigo Twitter)
na manhã de ontem com as palavras “Rio Grande do Sul” e/ou “tragédia”, quase um
terço (31%) incorporava o discurso antigoverno, uma proporção gigantesca. A
situação não parece muito diferente noutras mídias sociais, grupos de WhatsApp ou Telegram.
Lidar com isso de maneira equilibrada num
momento de emergência humanitária e forte polarização política é um desafio
enorme. Por um lado, esse discurso pode ter efeitos nefastos. Pode desestimular
doações, uma vez que doadores potenciais passam a ficar receosos de que
produtos sem nota fiscal sejam barrados na estrada. Pode também minar a
confiança da população no trabalho de bombeiros, policiais militares e do
Exército, peças-chave no atendimento aos necessitados. Por outro lado,
bolsonaristas alegam que suas denúncias sobre ações fiscalizatórias abusivas
forçaram instituições governamentais como Agência Nacional de Transportes
Terrestres (ANTT), Polícia
Rodoviária Federal e a Receita
Federal a instituir normas claras liberando a passagem de doações.
No centro da controvérsia está uma reportagem
do SBT da
última segunda-feira, que flagrou um caminhão com donativos ao ser parado na
fiscalização pela acusação de não ter nota fiscal dos produtos e carregar
excesso de carga. A reportagem foi usada como evidência, produzida pela
imprensa profissional, de que agentes do governo criavam obstáculos irrazoáveis
ao transporte de doações.
A semana passou com intensa troca de ataques
sobre o episódio. De um lado, destacou-se que a empresa dona do caminhão
publicou uma nota esclarecendo que, embora ele tenha sido parado (por excesso
de carga, e não por falta de nota fiscal), o veículo não foi retido e entregou
todas as doações. Além disso, todas as entidades que fiscalizam as rodovias
emitiram notas inequívocas reiterando que donativos não seriam barrados. De
outro lado, bolsonaristas e críticos ressaltaram que a ANTT reconheceu haver
pelo menos seis caminhões multados por excesso de carga e pelo menos um barrado
(depois liberado) por falta de nota fiscal das doações.
É claro que, se houve excesso de zelo de
fiscais nas rodovias no começo da semana, esses episódios foram pontuais e
rapidamente corrigidos pelas autoridades. Seguir insistindo nesse ponto agora
parece apenas uma disputa política irresponsável, que não ajuda a melhorar a
situação dos atingidos pelas cheias.
Em resposta à controvérsia, a Secretaria de
Comunicação do governo federal oficiou o Ministério da Justiça para apurar
ilícitos relacionados à disseminação de desinformação que pudesse “diminuir a
confiança da população nas capacidades de resposta do Estado, prejudicando os
esforços de evacuação e resgate em momentos críticos”. O ofício relaciona
algumas publicações de grande alcance e sugere que elas fazem parte de um
esforço orquestrado para minar a confiança no Estado brasileiro.
O pedido é uma resposta de mão pesada, que
pode atentar contra liberdades fundamentais. Uma das publicações citadas diz o
seguinte: “Impressionante como 90% dos vídeos que chegam do Rio Grande do Sul
mostram apenas civis ajudando no resgate de vítimas. Essa tragédia evidenciou a
ineficácia e a falta de vontade do Estado em proteger o cidadão. Vergonha para
os políticos, honra para os heróis civis que estão salvando vidas”.
Não me parece fazer qualquer sentido o Estado
brasileiro investigar um cidadão ou cidadã que expressou a opinião de que o
governo tem sido ineficaz. Esse tipo de opinião faz parte da democracia, e o
governo precisa aprender a conviver com ela. Não é porque os bolsonaristas
foram irresponsáveis que o governo pode se exceder na resposta.
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