Supremo restaura critério técnico nas estatais
O Globo
Apesar de condescendente com governo Lula,
STF ajuda a manter qualificação do setor público
A Lei das Estatais está no centro de intensa
discussão jurídica desde que o então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Ricardo Lewandowski concedeu, em março do ano passado, liminar para suspender
artigos que estabeleciam requisitos — comuns na iniciativa privada — para
nomeação à diretoria e participação em conselhos dessas empresas públicas. Por
8 votos a 3, o STF avalizou a constitucionalidade da lei e confirmou as
exigências que, ao restringir a nomeação de políticos, preservam a
administração técnica das estatais.
Numa solução de compromisso, a decisão incluiu a garantia de que os nomeados durante a vigência da liminar expedida por Lewandowski poderão permanecer no cargo, ainda que não atendam ao perfil determinado pela lei. Não é a melhor solução possível para a gestão durante o atual governo. Mesmo assim, a confirmação da constitucionalidade da lei representa um avanço na direção da desejada profissionalização do setor público.
A origem do processo foi uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) impetrada no início de 2023 pelo Partido Comunista
do Brasil (PCdoB), legenda aliada do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, que acabara de tomar posse. Havia a intenção evidente de facilitar as
negociações políticas do novo governo, que tentava construir sua base
parlamentar oferecendo em troca cargos nas estatais.
É uma barganha comum a cada troca de forças
políticas no Executivo. A peculiaridade é que a aliança política que elegeu
Lula venceu por margem estreita de votos, por isso precisava de ampla
capacidade de negociação para montar sua base no Legislativo. Também
interessava a Lula indicar quadros partidários petistas e lideranças de sua
campanha para postos-chave no comando das principais estatais, como já fizera
em suas gestões anteriores.
O compadrio e as indicações políticas estão
entre os fatores críticos que no passado transformaram empresas públicas como
a Petrobras em
focos de corrupção. Depois da devassa promovida pela Operação Lava-Jato, o
Congresso aprovou em 2016 a Lei das Estatais para estabelecer critérios
minimamente razoáveis ao preencher cargos de alto escalão. Impôs, entre outras
exigências, qualificações técnicas para todo dirigente de empresa pública.
A lei proíbe que diretores ou conselheiros
sejam ministros, secretários estaduais, dirigentes políticos ou parlamentares.
Também estabelece uma quarentena, vetando a indicação de quem tenha participado
da cúpula de partidos políticos ou de campanha eleitoral nos últimos três anos.
Exige que tenha formação acadêmica compatível com o posto e experiência de mais
de dez anos, com pelo menos quatro anos em cargo de direção ou de chefia
superior em empresa com atuação semelhante (se oriundo de estatal, que tenha ingressado
por concurso). Nada muito diferente do que se exige de diretores e conselheiros
em empresas privadas.
Eram esses os pontos que incomodavam Lula,
que gostaria de poder indicar quem bem entendesse ao comando das estatais, em
particular seus colegas de partido. Nesse ponto, contava com o apoio de
políticos de todas as inclinações ideológicas, interessados em maior liberdade
para ocupar espaços na máquina pública. Apesar de condescendente com as
escolhas passadas de Lula, a decisão do Supremo restaura o critério mais
razoável para o futuro.
Congresso precisa mudar de atitude e
abandonar agenda antiambiental
O Globo
Parlamento foi ágil ao aprovar socorro ao
Sul, mas conduz desmonte de leis que detêm as mudanças climáticas
A derrubada pelo Congresso do veto do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva a itens da Lei dos Agrotóxicos é sintoma
de que os parlamentares estão desconectados da realidade. Em mais uma ação para
flexibilizar a legislação ambiental, deram ao
Ministério da Agricultura competência exclusiva para registrar agrotóxicos,
esvaziando Ibama e Anvisa.
Não existe momento mais inoportuno para
afrouxar leis ambientais. A destruição sem precedentes no Rio Grande do Sul é
um desses eventos climáticos extremos que tendem a se tornar cada vez mais
frequentes e letais. Tais fenômenos aumentarão até 60% em algumas cidades do
Sul nas próximas décadas, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe). A gravidade da situação exige mudança de mentalidade. Obras
para prevenção de catástrofes e planos de contingência para salvar vidas são
fundamentais, mas não bastam. Não é mais possível que o Congresso insista numa
agenda antiambiental que não só ignora a emergência das mudanças climáticas,
como abre caminho para agravá-las.
O Observatório do Clima relacionou ao menos
25 projetos de lei que batizou “Pacote da Destruição”. Em comum, o objetivo de
enfraquecer a legislação ambiental, já duramente golpeada no governo Jair
Bolsonaro. Vários são de autoria ou relatados por parlamentares gaúchos, que
deveriam ser os primeiros a dar um basta ao descalabro.
É o caso do Projeto de Lei (PL) relatado por
Lucas Redecker (PSDB-RS), e aprovado em março na Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara, que põe em risco toda a vegetação não florestal do país, ao
permitir que campos nativos sejam convertidos para atividades como agricultura,
pastagens e mineração. Ou do PL apresentado pelo senador licenciado Luis Carlos
Heinze (PP-RS), que inclui como utilidade pública obras de irrigação em áreas
de proteção permanente, facilitando a derrubada de vegetação nativa e agravando
a crise hídrica. Ou ainda do PL do deputado Jerônimo Goergen (PP-RS) que
esvazia a taxa de fiscalização ambiental e enfraquece o Ibama.
Um dos projetos mais nocivos é de autoria do
senador Jaime Bagattoli (PL-RO). Relatado pelo senador Marcio Bittar
(União-AC), reduz de 80% para até 50% a reserva legal de áreas florestais na
Amazônia, abrindo caminho ao desmatamento. Outro projeto, relatado pela
senadora e ex-ministra Tereza Cristina (PP-MS), praticamente acaba com o
licenciamento ambiental, ao torná-lo autodeclaratório ou dispensá-lo. Há ainda
uma proposta, do senador Irajá (PSD-TO), para anistiar desmatadores ilegais.
É verdade que congressistas têm sido ágeis no
socorro às vítimas da tragédia no Sul. Mas é preciso pensar à frente. Nos
últimos meses, o Brasil tem convivido com secas, incêndios e tempestades
arrasadoras. Deputados e senadores têm de assumir seu papel no combate ao
aquecimento global. Não dá mais para aprovar projetos que agravam condições
climáticas críticas. Os efeitos estão aí, à vista de todos. Cabe aos
parlamentares mudar radicalmente de atitude. E à sociedade, cobrá-los.
STF perde credibilidade ao decidir sobre
estatais
Folha de S. Paulo
Corte demora para atestar óbvia
constitucionalidade de restrições a indicações políticas, mas mantém as feitas
por Lula
O Supremo Tribunal Federal demorou pouco mais
de um ano para enxergar o proverbial óbvio diante do nariz: que a Lei das
Estatais não viola a Constituição.
Aprovada pelo Congresso em 2016, a norma
surgiu como resposta aos prejuízos bilionários e escândalos de corrupção investigados
durante anos pela Operação Lava
Jato. Seu propósito foi o de erigir
balizas moralizadoras dentro das empresas estatais, cujos cofres
sempre despertaram a cobiça dos mais variados partidos.
Algumas das soluções apresentadas na lei são
de tal simplicidade, e representam um avanço institucional tão evidente, que
chega a ser difícil fugir à questão: por que essas exigências não existiam
antes?
Tome-se o caso das nomeações políticas para a
direção das estatais. Consta do diploma de 2016 que não podem ser nomeadas para
o comando dessas companhias pessoas que tenham atuado, nos últimos três anos,
como dirigentes de partidos ou na organização de campanhas eleitorais.
Outro exemplo está nos conselhos de
administração dessas empresas, ambicionados não só pela influência que possam
exercer mas também pelos generosos jetons que pagam. Pois a Lei das Estatais
proíbe que ministros de Estado e secretários de estados e municípios participem
desses assentos.
Logo se vê que não se trata de nenhuma
revolução; estão reunidos na norma ditames de governança que apenas reforçam a
vigilância sobre companhias controladas pelo Tesouro, a fim de dificultar, se
não for possível impedir, que o aparelhamento estorve a tomada de decisões
técnicas e qualificadas.
Seria impensável que, diante disso, o STF acedesse
ao pleito do PC do B, que defendeu a inconstitucionalidade da lei. Ao demorar
para dar sua resposta, contudo, o Supremo contemplou em larga medida o objetivo
do aliado histórico do PT.
É que o debate constitucional em torno dessa
questão não passou de reles meio; a verdadeira finalidade estava em abrir
caminho para as nomeações políticas, tradicional moeda de troca entre os
Poderes Executivo e Legislativo.
Graças a uma liminar
assinada em março de 2023 por Ricardo Lewandowski, que hoje é
ministro da Justiça, Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) pôde fazer suas indicações para as estatais, as quais o STF agora
decidiu não revogar.
Ou seja, a mais alta corte do país manteve em
vigor a Lei das Estatais, mas preservou a
validade de nomeações feitas ao arrepio dessa mesma lei. É
inevitável a sensação de que os ministros se alinharam aos interesses do
governo Lula, num gesto que mina a já desgastada credibilidade do Supremo.
Obstáculos ao direito
Folha de S. Paulo
Cremesp e Prefeitura de SP incitam temor;
cumpre facilitar acesso a aborto legal
O desrespeito das instituições brasileiras
aos direitos reprodutivos das mulheres é vergonhoso. Não apenas a lei
criminaliza o aborto,
o que é um atraso civilizacional, como o país dificulta o procedimento nos
casos autorizados —gravidez oriunda de estupro,
risco de vida da gestante ou anencefalia fetal.
Em 3 de abril, resolução do
Conselho Federal de Medicina (CFM) proibiu a assistolia, método
recomendado pela Organização Mundial da Saúde que aumenta a segurança da
interrupção da gravidez em gestações acima de 20 semanas.
A assistolia é mais usada quando a paciente
foi estuprada; muitas são menores de idade, que descobrem a gravidez
tardiamente, ou têm medo de denunciar o crime. Como era de esperar, a medida
afetou o acesso ao serviço.
Em apenas dois dias, a Federação Brasileira
das Associações de Ginecologia e Obstetrícia recebeu comunicados de ao menos
quatro casos de mulheres e crianças com gestações avançadas resultantes de
estupro em que os médicos estavam receosos de fazer o aborto devido à medida do
CFM.
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo abriu
processos contra médicos que realizaram aborto legal em vítimas de estupro no
Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, uma das unidades de referência no
estado, até a Prefeitura da capital suspender o serviço em dezembro do ano
passado.
Tanto o Cremesp quanto o CFM foram intimados a
prestar esclarecimentos na CPI da Violência e Assédio Sexual
Contra Mulheres, relacionada ao aborto legal, da Câmara Municipal de São Paulo.
Ademais, a Polícia Civil abriu inquérito
para investigar
possível acesso da Prefeitura paulistana a prontuários de
mulheres que fizeram aborto no mesmo hospital, pois a prática violaria o sigilo
médico e o direito das pacientes. A a gestão de Ricardo Nunes (MDB)
precisa ser transparente sobre as motivações que teriam levado à solicitação
dessas informações.
Em relação às autarquias, é inaceitável que órgãos que deveriam zelar pela saúde dos cidadãos contribuam, mesmo que indiretamente, para perseguir profissionais e dificultar o acesso de mulheres vítimas de violência sexual a um serviço médico garantido por lei.
A Constituição que vale e não vale ao mesmo
tempo
O Estado de S. Paulo
STF não se constrange em conceber uma
esdrúxula tese de ‘inconstitucionalidade temporária’ de um artigo da Lei das
Estatais apenas para acomodar o interesse político de Lula
Afim de fazer política bem ao agrado do
presidente Lula da Silva, o Supremo Tribunal Federal (STF) mostra-se disposto a
cometer uma atrocidade jurídica sem precedentes na já trepidante história
recente do Poder Judiciário.
Por 8 votos a 3, a Corte julgou que são
constitucionais os dispositivos da Lei 13.303/2016, a chamada Lei das Estatais,
que blindam a administração dessas empresas de qualquer ingerência indevida por
meio da nomeação de políticos para cargos de direção. Contudo,
a maioria dos ministros sinalizou que não há
razão para o Palácio do Planalto se preocupar. Malgrado o resultado do
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) interposta pelo PCdoB,
todas as nomeações feitas por Lula fora da lei – tal como o texto fora aprovado
pelo Congresso em 2016 – serão mantidas, ainda que o STF tenha concluído que as
vedações previstas na Lei das Estatais são, ora vejam, constitucionais.
Para chegar a essa construção esdrúxula, os
ministros conceberam um artifício para lá de criativo, uma espécie de
“inconstitucionalidade temporária”, chamemos
assim, do artigo 17, parágrafo 2.º, incisos I e II, da referida lei. O ministro
Dias Toffoli articulou com seu colega Luís Roberto Barroso, presidente da
Corte, um voto que considera hígidas todas as nomeações para o comando das
estatais feitas pelo presidente Lula durante a vigência da decisão liminar
exarada pelo então ministro do STF Ricardo Lewandowski, em março de 2023. “Quem
foi indicado e aprovado com base na liminar tem a continuidade garantida”, diz trecho
do voto.
Como se sabe, Lewandowski atendeu ao pleito
do PCdoB e suspendeu as vedações legais à presença de políticos e lideranças
partidárias em cargos da alta administração das estatais, exatamente como
queria Lula no início de seu terceiro mandato. À época, Lewandowski argumentou
que aquele dispositivo citado, entre outras razões, fere de morte o princípio
da isonomia consagrado pela Constituição.
Agora, transcorrido mais de um ano, o STF
julgou que o mesmo dispositivo legal que foi considerado constitucional pela
maioria dos ministros da Corte não valeu por um determinado período de tempo.
Eis a tal “inconstitucionalidade temporária”, aberração que só um colegiado
pouco cioso da grandeza do Supremo no arranjo institucional do País seria capaz
de engendrar. Parece loucura, é forçoso dizer. E tudo isso para, aparentemente,
não contrariar os interesses de ocasião do presidente da República, sem prejuízo,
é claro, de outras motivações que ainda possam estar ao abrigo do escrutínio
público.
Segundo Barroso, essa foi a única saída
encontrada para evitar que a demissão dos dirigentes nomeados por Lula para as
estatais causasse uma “instabilidade indesejável”, o que, no entender do
presidente do STF, seria prejudicial à continuidade de políticas públicas em
andamento. Ora, isso é um juízo totalmente político do ministro, e não
jurídico. Que evidências, afinal, tem o sr. Barroso para sustentar sua
afirmação? Ademais, o chefe do Poder Judiciário ainda faz pouco-caso do
profissionalismo do corpo funcional de empresas como a Petrobras, Banco do
Brasil, Caixa e BNDES, entre outras. Afinal, se a mera troca de seus
presidentes e diretores é capaz de causar “instabilidades”, é sinal de que todo
o resto vai muito mal. Qualquer empresa minimamente organizada não vê suas
atividades comprometidas a cada substituição de líderes.
Nem do ponto de vista jurídico há que se
falar em estabilidade. A natureza de uma decisão liminar, como sabe qualquer
calouro de Direito, é fundamentalmente precária, não tem o condão de inspirar
segurança jurídica alguma.
Quando a mais alta instância do Judiciário se
presta a uma exegese desse jaez para atender a interesses do governo de turno,
o céu é o limite. Fica difícil para grande parte da sociedade entender por que,
afinal, o STF se dispõe a comprometer sua própria imagem como Corte
Constitucional nesse grau – a ponto de flertar com a desmoralização que todas
as noites povoa o sonho dos inimigos da democracia.
Prevaleceu o bom senso
O Estado de S. Paulo
Governo, Congresso e setores empresariais
beneficiados fazem acordo razoável para a reoneração gradual da folha; agora, é
preciso trabalhar pela redução geral do custo do emprego no País
Após um longo embate, o governo anunciou um
acordo para reonerar a folha de pagamento de 17 setores da economia de maneira
gradual. Pela proposta anunciada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a
tributação continuará zerada neste ano e voltará a ser cobrada de maneira
escalonada entre 2025 e 2028.
Duas vezes derrotado por um Congresso
amplamente favorável à medida, o governo apelou ao Supremo Tribunal Federal
(STF) para reequilibrar o jogo na marra. Pela liminar concedida pelo STF, as
empresas teriam de recolher a contribuição previdenciária patronal de 20% sobre
a folha já no dia 20 deste mês, fator que obrigou os setores a sentar à mesa de
negociação com o Executivo.
Se o acordo ficou longe do ideal para as
empresas, o governo também teve de ceder na busca de um meio-termo. Haddad
queria dar fim imediato à desoneração, mas aceitou adiá-la até o início de
2025, quando a cobrança será restabelecida de maneira escalonada – 5% no ano
que vem, 10% em 2026, 15% em 2027 e 20% em 2028.
A Fazenda ainda terá de encontrar maneiras de
compensar uma renúncia de R$ 20 bilhões neste ano, bem como desenhar uma
solução para os pequenos municípios, também incluídos no benefício. O governo,
no entanto, tem consciência de que sua vitória parcial tem prazo de validade
curto, e o próprio ministro Haddad reconheceu que o modelo atual de tributação
da folha está ultrapassado.
Reportagem publicada pelo Estadão expôs o
tamanho desse anacronismo. Segundo José Pastore, professor titular da
Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas (Fipe), os encargos trabalhistas custeados pelas empresas
superam os salários pagos por elas a seus funcionários. Representam nada menos
que 103,7% das remunerações.
Pastore já havia apontado essas distorções há
30 anos, em artigo publicado pelo Jornal da Tarde em 9 de fevereiro de 1994. O
texto alertava que os encargos sociais eram uma das causas do aumento do
desemprego – além, é claro, dos efeitos da recessão que assolou o País durante
a década de 1980. Nem mesmo os países europeus, conhecidos pela política de
bem-estar social, tinham encargos tão elevados quanto os cobrados no Brasil.
Décadas atrás, para evitar aumentar custos
fixos num cenário de incertezas, as empresas preferiam pagar horas extras aos
funcionários a contratar novos trabalhadores. Hoje, o problema explica parte do
fenômeno da ascensão do empreendedorismo – que, em muitos casos, não tem
qualquer relação com a abertura de novos negócios.
É evidente que há brasileiros que querem de
fato empreender, mas é inegável que muitos se tornam pessoas jurídicas (PJs) ou
microempreendedores individuais (MEIs) apenas para sobreviver num mercado de
trabalho dominado por baixos salários e informalidade. Na falta de uma solução
estrutural, recorre-se a puxadinhos, como a pejotização, os MEIs e a
desoneração da folha de pagamento.
É fato que a medida foi prorrogada sucessivas
vezes pelo Legislativo, mas a gênese dessa política remete ao ano de 2011 e ao
governo Dilma Rousseff, que pretendia estimular setores em dificuldades
atrelando o benefício à manutenção de empregos. Como se diz em Brasília, nada
mais permanente que um programa temporário de governo.
É essencial que o governo assuma a
responsabilidade de construir um novo sistema que valha indistintamente para
todos os brasileiros e setores econômicos – e é fundamental que ele desonere a
folha para todos os setores, o que ampliará a formalização do mercado de
trabalho, melhorando a base de arrecadação da Previdência. A inação e a falta
de liderança do Executivo são um estímulo ao ativismo de um Congresso sensível
às dificuldades do setor privado.
Não se trata mais de uma questão meramente
trabalhista. Projeções sobre a Previdência mostram não haver alternativa que
não seja a revisão de políticas que comprometem sua sustentabilidade. Será
preciso enfrentá-las, por mais impopulares que essas pautas sejam, a não ser
que o governo prefira assistir de camarote ao colapso do sistema de proteção
social.
Paraguai 2 x 0 Brasil
O Estado de S. Paulo
Acordo sobre tarifa de Itaipu penaliza
consumidor brasileiro, mas beneficia governos
O acordo selado entre Brasil e Paraguai sobre
a tarifa de energia elétrica de Itaipu Binacional desafia a lógica. Ao invés de
cair 30%, como seria o correto diante da quitação integral do financiamento
para a construção da usina, o valor subirá 35%. Permanecerá no mesmo patamar
até o fim de 2026, não por acaso o último ano do governo Lula da Silva, que
prevê queda a partir daí, empurrando o problema para a próxima gestão federal.
A correlação de forças entre os dois
parceiros é, no mínimo, curiosa. Pelo Tratado de Itaipu, firmado em 1973,
Brasil e Paraguai dividem meio a meio o controle da usina, os custos
financeiros e operacionais e a energia produzida. Uma equivalência mais teórica
do que prática, já que o Brasil pagou mais pela obra e compra de volta do
Paraguai a energia que o parceiro não utiliza.
Itaipu não foi idealizada para dar lucro, mas
para prover de energia barata os dois países. A dívida de US$ 13 bilhões da
obra, com financiamento de 50 anos, foi integralmente quitada em 2023,
eliminando o principal componente do custo, o que levaria à redução automática
da tarifa. Com o aumento acordado entre os parceiros, o Brasil perde duas
vezes: em vez de reduzir a tarifa, incorpora um custo que não existe mais e
ainda arca com um aumento desnecessário.
Para evitar o vexame de ter de explicar ao
consumidor o aumento, justamente num momento em que anuncia aos quatro ventos
estar em busca de fórmulas para baratear a conta de luz, o governo Lula da
Silva inventou um “cashback” que nada mais é do que um subsídio brasileiro para
o aumento paraguaio. O Brasil vai renunciar à receita de US$ 900 milhões
prevista para os três anos de vigência do aumento para neutralizar
nacionalmente o reajuste.
O interesse do governo brasileiro em
financiar benesses para o lado paraguaio é um mistério. O fato é que Itaipu
funciona para os dois governos como um orçamento paralelo de gastos
socioeconômicos e ambientais. Para a economia paraguaia o ganho é infinitamente
maior, pois abastece integralmente o país usando somente 17% da energia que lhe
cabe, e pode vender o excedente de volta ao Brasil (agora com o aumento que o
governo Lula da Silva aceitou).
Mas o governo brasileiro não fica atrás no
uso indiscriminado da receita de Itaipu. Inicialmente os programas
socioambientais ficavam restritos à área de influência da usina, no oeste do
Paraná. Mas já que a hidrelétrica tem status jurídico próprio, que não a
submete à Lei das Estatais nem à fiscalização de órgãos de controle, o governo
Lula da Silva decidiu inovar e usar a usina no patrocínio de gastos sem
distinção.
Logo após o acordo fechado pelo Paraguai, foi anunciado que Itaipu bancará R$ 1,3 bilhão em obras de infraestrutura em Belém (PA), a 3.352 quilômetros de distância, para preparar a cidade para a Conferência do Clima (COP-30). Seria prudente que o Congresso, que terá de aprovar o acordo entre Brasil e Paraguai, cobrasse a revisão do tratado de Itaipu que, ao menos, dotasse da transparência necessária o uso dos recursos da usina.
Responsabilidade e segurança ambiental
Correio Braziliense
A necessidade de adaptação às mudanças
tecnológicas da estrutura produtiva e seu impacto nas relações de trabalho leva
à subestimação do efeito dessas mudanças na relação com a natureza
É ponto pacífico na ciência o entendimento de
Charles Darwin de que o meio ambiente atua como um selecionador das
características evolutivas, ou seja, possibilita aos seres mais aptos
sobreviver em determinadas condições. Os organismos menos adaptados apresentam
menor chance de sobrevivência e, consequentemente, de reprodução.
Os seres humanos distinguem-se por terem
maior e mais flexível capacidade de adaptação. Os avanços tecnológicos e as
novas formas de pensar e agir na sociedade, que passa por transformações
radicais e aceleradas, exigem o aperfeiçoamento dessa nossa capacidade de
adaptação.
Como muitas pessoas têm dificuldades de
conviver com as mudanças e medo de experimentar o novo, o debate sobre a
adaptação está focado no desenvolvimento de habilidades para transitar à nova
economia e suas tecnologias. Entretanto, a necessidade de adaptação às mudanças
tecnológicas da estrutura produtiva e seu impacto nas relações de trabalho leva
à subestimação do efeito dessas mudanças na relação com a natureza.
A catástrofe ambiental no Rio Grande Sul
exige que essa questão da adaptabilidade volte ao leito de origem, ou seja, as
novas situações, circunstâncias e necessidades decorrentes da relação dos seres
humanos com o planeta. As mudanças climáticas são provocadas pela ação humana,
em especial a emissão de gases do efeito estufa, liberados com a queima de
combustíveis fósseis. As chuvas torrenciais no Rio Grande do Sul são uma de
suas consequências.
Cientistas do ClimaMeter, liderado por
pesquisadores do centro especializado em ciências climáticas da Universidade
Paris-Saclay, financiados pela União Europeia e pela Agência Francesa de
Investigação (CNRS), em março passado, advertiram que as ondas de calor estão
1ºC mais quentes. O grupo examinou os dados meteorológicos dos últimos 40 anos,
comparando padrões climáticos semelhantes no fim do século 20 (de 1979 a 2001)
com os observados nas décadas mais recentes (de 2002 a 2023), quando as
mudanças climáticas se intensificaram.
Descobriu-se que as depressões atmosféricas,
regiões com sistemas de baixa pressão atmosférica, como a que provocou as
chuvas que afetaram o Rio Grande do Sul, agora são cerca de 15% mais intensas.
O El Niño, que influenciou fortemente o clima nos dois últimos anos e aumenta a
precipitação no Sul do Brasil, segundo os cientistas, não é suficiente para
explicar a intensidade das chuvas deste ano.
A Defesa Civil gaúcha contabilizou 116
pessoas mortas por causa dos temporais; há 756 feridos e 143 desaparecidos. Dos
497 municípios gaúchos, 437 foram atingidos pelas chuvas. Cerca de 1,9 milhão
de pessoas foram afetadas, principalmente nas comunidades mais vulneráveis. A
infraestrutura existente para lidar com precipitações extremas e inundações
mostrou-se insuficiente neste evento, resultando no deslocamento de milhares de
famílias, especialmente aquelas com menor status socioeconômico.:00/00:00correiobrazilienseTruvid
Há duas maneiras de encarar a mudança
climática: o "darwinismo social", segundo o qual os mais adaptados
sobreviverão, mesmo que tenham que se mudar para outro planeta, ou mitigar as
mudanças climáticas em escalas regional e global, para proteger vidas humanas e
limitar a frequência e intensidade de eventos extremos.
Isso exige uma redução imediata das emissões de combustíveis fósseis e medidas proativas para proteger áreas vulneráveis de padrões de precipitação cada vez mais erráticos, bem como aumentar a capacidade de socorrer suas vítimas. Ou seja, discutir em termos globais e agir localmente, o que coloca a responsabilidade e a segurança ambiental no centro do debate nas eleições municipais deste ano, sobretudo naquelas cidades onde desastres naturais são recorrentes.
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