sábado, 11 de maio de 2024

Nathan Caixeta e Luiz Gonzaga Belluzzo - Traquinagens econométricas

CartaCapital

Avesso a incertezas, o modelo traz a convicção de que expansão fiscal é desgraça e austeridade, salvação

Em sua coluna semanal na ­Folha, o simpático palmeirense e economista Samuel Pessôa ofereceu espaço ao conceito de “superávit primário estrutural”, uma metodologia de cálculo do resultado fiscal que pretende normalizar as flutuações do ciclo econômico sobre as contas do governo, ocupando-se também dos eventos “não recorrentes”, como os gastos com a pandemia, desastres climáticos etc.

O Instituto Fiscal Independente (IFI) tem se encarregado de adaptar essa metodologia para as contas públicas do ­País desde 2021. A ideia de Resultado Fiscal Estrutural, segundo seus orgulhosos desenvolvedores, é a seguinte: “…eliminar efeitos alheios ao comportamento da autoridade fiscal e que possam turvar as análises sobre o resultado primário convencional. Assim, o RPE viabiliza obter análise mais acurada a respeito do grau de expansionismo da política fiscal ao longo do tempo”.

O relatório do IFI, que introduz a tentativa de estimar o Resultado Primário Estrutural, ainda ensina que: “A variação do RPE no tempo denomina-se impulso fiscal. Se o RPE crescer (aumento do superávit ou redução do déficit) de um período a outro, o impulso fiscal será contracionista. Se o RPE diminuir (redução do superávit ou aumento do déficit) entre dois instantes do tempo, o impulso fiscal será expansionista. Por fim, se o RPE não variar, a política fiscal será neutra. O impulso fiscal é destinado, portanto, a mensurar o caráter da política fiscal livre dos efeitos do ciclo de atividade econômica.”

Trata-se, portanto, da tentativa de isolar a dimensão do movimento do circuito monetário ao longo do tempo para avaliar o desempenho fiscal do governo. Liberada dos efeitos da temporalidade do circuito monetário, a política fiscal poderia indicar o nível de compromisso do governo com uma trajetória estável da dívida pública. Finalmente, como destaca o professor Pessôa: “…a melhora fiscal antecede a retomada­ do crescimento econômico, não o inverso. E a piora fiscal antecede a desaceleração do crescimento, não o inverso.”

É realmente intrigante pensarmos que seja possível isolar os efeitos do movimento temporal do circuito de renda monetária, e que, mediante tal procedimento, seja possível obter uma conclusão já abrigada nos pressupostos: o crescimento da renda da sociedade em um período posterior possa ter origem em uma diminuição dos fluxos de renda no presente. Talvez seja possível apaziguarmos nossas dúvidas sobre a matéria, analisando o procedimento que dá origem ao Resultado Primário Estrutural.

O método consiste em separar o orçamento fiscal em três frentes: o não recorrente, que deriva de receitas e despesas cujo impacto no orçamento tenha temporalidade definida, como os gastos com a pandemia; o recorrente, que registra receitas e despesas de caráter contínuo; e o cíclico, que decorre puramente das variações da atividade econômica.

O Resultado Estrutural é tomado a partir do ajuste do resultado recorrente ao hiato de produto e as elasticidades das receitas e despesas em relação ao PIB potencial. Isso quer dizer que a avaliação das receitas e despesas e do resultado, isoladas as variações cíclicas e atípicas, é feita considerando a capacidade da economia em suportar o impacto fiscal. As implicações são as seguintes: 1. Avalia-se o resultado observado da política fiscal a partir de variáveis não observáveis. 2. “O componente cíclico do Resultado Primário, por sua vez, é obtido por resíduo da equação (que determina o Resultado Estrutural).”

Imaginemos que o governo, desatento em relação às variáveis não observáveis, se proponha a impulsionar a economia elevando os gastos e produzindo ­déficit. O modelo adotado pela metodologia do RPE apontaria maiores desvios diante do propósito de manter uma trajetória estável para a dívida pública, ao equilibrar o orçamento recorrente e o não recorrente.

O resultado seria a elevação dos resíduos do modelo, surpreendido pelo Espírito Fiscal Expansionista. Isso aumentaria o hiato de produto e a economia cresceria mais que a sua capacidade. Capacidade definida pelo Produto Potencial, uma construção inobservável que já contém as consequências nos pressupostos.

Em poucos anos esse comportamento levaria a mais dívida, mais inflação e juros mais elevados. O modelo temporalmente ajustado se recuperaria da surpresa inicial aprendendo com o comportamento expansionista do governo e apontaria déficits maiores em seguida.

O crescimento estimulado inicialmente pelo governo viraria recessão. Se, ao contrário, o governo endereçar seus esforços para a austeridade, produzindo ­superávits sistematicamente, o resultado seria de crescimento sustentado e contínuo.

Na reconfortante trajetória de eliminar o tempo, descartando as incertezas, o modelo entrega o destino do crescimento à certeza inabalável: expansões fiscais desgraçam a economia e a austeridade a salva dos vícios do tempo. Parece ser esta a situação que Albert Einstein descreveu em seu livro Como Vejo o Mundo, ao comentar sobre os avanços da ciência: “A ciência, com suas ‘descobertas objetivas’ e realizações, é uma grande parte, mas apenas uma parte, da história do nosso pensamento. ‘A matemática é uma ciência em que você não sabe do que está falando e não sabe se o que você está dizendo é verdade’. Estas são as palavras de Bertrand Russell, um distinto matemático contemporâneo. Isto é apenas um paradoxo irônico ou tem uma base na verdade? Deixe-nos ver os seus dois lados. Primeiro: os números são criações livres do espírito humano e, portanto, eles, e todas as verdades matemáticas, não têm valor fora do nosso próprio pensamento.

“A matemática não é verdadeira nem falsa porque a verdade ou falsidade de seus conceitos depende apenas de nossa deliberação de aceitar ou não a hipótese da qual eles derivam dedutivamente.

“Uma ciência que se baseia sistematicamente em hipóteses pode dizer-nos a verdade? O mundo matemático é, portanto, governado pela nossa vontade e, embora os conceitos matemáticos sejam universais, eles não são concretos porque ignoram a realidade das coisas e estão vazios de qualquer conteúdo representativo. Colocamos símbolos no lugar de coisas a serem numeradas, mas a substituição de um símbolo por uma coisa pode nos dar uma melhor compreensão da mesma?”

Destacamos a última sentença interrogativa da citação. O símbolo do Resultado Primário Estrutural oferece uma boa compreensão sobre o Resultado Primário, ou entuba suas verdades em um algoritmo de regressão? Parece ser o caso de uma forte deliberação pelo princípio da austeridade fiscal que preenche as imaginações sobre a dispensabilidade­ da temporalidade que preside o circuito gasto-renda monetária-receita fiscal.

Se, por outro lado, tentamos olhar para o tempo, encontramos uma dificuldade que Hegel já advertiu em sua Fenomenologia do Espírito: “… a matemática aplicada oferece em abundância o que chama demonstrações: – como a do equilíbrio da alavanca e a da relação entre o espaço e o tempo no movimento da queda livre. Mas que sejam dadas e aceitas como demonstrações prova apenas a grande necessidade da prova para o conhecimento, pois, quando não tem mais provas, valoriza até sua aparência vazia e ali encontra alguma satisfação. Uma crítica dessas demonstrações seria tão digna de nota quanto instrutiva: de um lado, por expurgar a matemática dessas bijuterias, e, de outro lado, por mostrar seus limites, e, portanto, a necessidade de um outro saber.

“No que concerne ao tempo, pensam que deve constituir a matéria da outra parte da matemática pura, em contrapartida com o espaço; mas o tempo é o próprio conceito aí-essente. O princípio da grandeza – a diferença carente-de-conceito –, e o princípio da igualdade – a unidade abstrata sem-vida – não são capazes de apreender o tempo, essa pura inquietude da vida e diferenciação absoluta. Assim, essa negatividade só se torna a segunda matéria do conhecimento matemático como paralisada, isto é, como o uno; esse conhecimento é um agir exterior, que reduz o automovimento à matéria; e nela possui então um conteúdo indiferente, exterior e sem-vida”.

A eliminação do tempo, da pura inquietude da vida, corresponde a matar o movimento para em seguida descrevê-lo. Dessa impossibilidade, de diferenciar a diferenciação absoluta, surge a necessidade de confiná-la como uma dimensão indiferente.

Em posse desse novo brinquedo oferecido pela abstração matemática, os economistas podem divertir-se com suas hipóteses que enunciam premissa e conclusão num mesmo lance de eficiência, ou de significância estatística.

Nas enxovias do modelo de Resultado Primário Estrutural, o capitalismo contra-ataca ao impor as relações entre gasto e renda: só é possível supor um aumento na renda monetária mediante um fluxo correspondente de gasto que a precede. Um depois do outro. 

Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.

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