Fortalecidos pelo controle das emendas, Câmara e Senado fustigam a autonomia dos demais poderes
Por André Barrocal / CartaCapital
Na tarde de 18 de dezembro de 2023, uma
segunda-feira, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner,
recebeu jornalistas em seu gabinete para um balanço do ano. Estava animado. Na
volta de Lula ao poder, anotava o petista, o governo tinha conseguido aprovar
no Congresso tudo o que queria e precisava na economia e na área social.
Faltava só a aprovação do orçamento de 2024, marcada para dali a quatro dias.
Foi uma votação encruada, essa última, em razão da gula de deputados e
senadores por verbas para obras inseridas na lei proposta pela equipe
econômica. O dinheiro das chamadas “emendas
parlamentares” cresceu tanto em uma década que Wagner via
desenhar-se uma crise entre os poderes. “Em algum momento, vai ficar
impossível (governar)”, comentou.
O prognóstico ganha contornos cada vez mais nítidos. O gigantismo das emendas, 44,6 bilhões de reais neste ano, é um dos dois motivos − o outro é a força da extrema-direita − a deixar o Congresso assanhado para impedir o governo de governar e o Supremo Tribunal Federal de julgar. Em suma, para querer ser o timoneiro, em um “parlamentarismo disfarçado”, caracterização que Wagner endossou, ao ser questionado por CartaCapital em dezembro. A postura do Legislativo pode ser vista na agenda anti-Supremo, reação a julgamentos como o da descriminalização da maconha e do aborto (iniciados e não concluídos) e ao veredicto sobre o “marco temporal”, invenção ruralista que dificulta a homologação de reservas indígenas. No front antigoverno, observa-se, entre outras, uma guerra congressual contra a retomada da cobrança de imposto sobre a folha salarial de 17 setores empresariais, batalha travada desde outubro e que acaba de chegar ao Supremo por iniciativa do Executivo, para revolta parlamentar.
“O Congresso não respeita mais a autonomia
dos outros poderes. Nem do Executivo, principalmente em matéria orçamentária,
nem do STF, na busca por impunidade e o direito de tomar decisões
inconstitucionais e ninguém as examinar. Quer mandar sozinho no País”, afirma
Christian Lynch, bacharel e mestre em Direito e doutor em Ciência Política.
Lynch vê um “parlamentarismo centrônico”, alusão ao dito “Centrão”, aquela
massa amorfa de partidos direitistas, marcado por “hipocrisia”. Defesa de
contenção de gastos do governo e, ao mesmo tempo, de benesses para a
“magistocracia”, deputados em viagens ao exterior e “os amigos da indústria”.
“Governar ficou muito mais difícil do que nos
dois mandatos anteriores de Lula”, escreveu em 29 de abril, em um jornal, o
cientista político Sérgio Abranches, autor de artigo acadêmico intitulado
“Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, de 1988,
referência sobre o jogo em Brasília. Segundo a tese de Abranches,
“presidencialismo de coalizão” é uma mistura de presidencialismo com
parlamentarismo resultante de alguns traços políticos nacionais. Como há
legendas demais, e a do presidente (qualquer um) não é majoritária no
Congresso, o mandatário é obrigado a buscar apoio em outras agremiações, mesmo
que tenham programas distintos. As negociações, em geral, levam o governo a
entregar o controle de ministérios e de verbas orçamentárias. Dessas
negociações surge uma “coalizão”. Para conseguir comandá-la, o presidente
precisa de popularidade acima de 55%, teorizou Abranches em 29 de abril, e de
“controle do orçamento”. Esse último evaporou, graças à explosão de verbas para
emendas.
De 2015, início da construção do
“parlamentarismo disfarçado” como se verá adiante, a 2024, a verba anual para
emendas praticamente quintuplicou: de 9,6 bilhões para 44,6 bilhões de reais.
Idem o valor médio por congressista, de 16 milhões para 75 milhões. Não se
tratou apenas de mais dinheiro disponível. O governo não pode recusar-se a
gastar, mas unicamente decidir quando. “Hoje no Congresso só se fala de emenda,
não se fala de mais nada, não se fala de projeto de País”, afirma um membro do
alto escalão governamental. “Foi uma mudança sistêmica muito grande no
presidencialismo de coalizão. O presidente tem refletido sobre esse novo
momento”, diz um colaborador de Lula. O que o petista tem feito, por ora, é
escolher as brigas que compra e nas quais se empenha. Um levantamento do
cientista político Felipe Nunes, da consultoria Quaest, mostrou: o governo
atual teve a maior taxa de sucesso (36%) em votações na Câmara em seu primeiro
ano entre todos os presidentes desde 1995.
Enquanto Lula matuta, o
Congresso namora a ideia de instituir de vez o parlamentarismo, rejeitado pela
população duas vezes em plebiscitos (1963 e 1993). Uma proposta com o eufemismo
de “semipresidencialismo”, para valer a partir de 2030, está na gaveta do chefe
da Câmara, Arthur Lira,
do PP, desde 2022. Em 25 de abril, o deputado defendeu-a publicamente. O
“Centrão” poderia mandar no País sem precisar de milhões de votos para alcançar
a Presidência. “Ganhamos a eleição, mas não ganhamos o Parlamento”, resume
Wagner. Eis o motivo de um banqueiro ter comentado em um almoço, em fevereiro,
no relato de O Globo: “O Lula começou 2023 querendo revogar o marco do
saneamento, anular a reforma trabalhista, reestatizar a Eletrobras e acabar com
a autonomia do BC. Não fez nada disso porque o Congresso e o Supremo não
deixaram”.
O STF dará um basta ao gigantismo das
emendas, fonte do atual poder parlamentar? Em 18 de abril, Flávio Dino
ressuscitou uma denúncia apresentada à Corte em setembro do ano passado,
segundo a qual o Congresso teria desobedecido a decisão do Tribunal que extinguiu
o orçamento secreto. Dino deu 15 dias para o Legislativo e o governo se
manifestarem a respeito, caso queiram. Recorde-se: “Orçamento secreto” foi uma
prática nascida no governo Bolsonaro, pela qual o deputado ou senador
responsável por relatar a lei orçamentária inseria obras indicadas por colegas
congressistas e não detalhava nem o padrinho nem o destino dos recursos. A
inserção tinha o carimbo de “Emenda RP 9”. O Supremo proibiu esse tipo de
emenda às vésperas da posse de Lula, em dezembro de 2022. Determinou a
necessidade de dar transparência às emendas (nome do autor, do destino e do
beneficiário) e proibiu o relator do orçamento de usar as RP 9 para elevar
despesas, à exceção de eventuais correções de erros da proposta do governo.
De acordo com a denúncia, no orçamento de
2023 não houve a transparência requerida. De dez ministérios afetados por
emendas RP 9, seis não exibiam nenhuma informação em seu site sobre elas e
quatro o faziam de forma incompleta. O orçamento de 2023 também teria emendas
RP 9 que provocavam aumento de gastos. Neste caso, a desobediência tinha sido
incluída marotamente na Constituição dois dias após o julgamento de dezembro de
2022 no Supremo. Na ocasião, o Congresso separou 9,8 bilhões de reais em
emendas RP 9 e rebatizou-as de RP 2, código para identificar aquelas de autoria
individual de um deputado ou senador. A malandragem havia sido acompanhada do
aumento da verba total para emendas, independentemente do tipo. De 1,2% da
receita corrente líquida do governo, montante previsto desde 2015, para 2%. A
manobra explica por que o Legislativo topou dar mais dinheiro para o futuro
governo Lula gastar na área social. Toda essa arquitetura integrou a chamada
“PEC da Transição”.
A denúncia ao Supremo aponta um terceiro
problema com “emendas parlamentares” não limitado às RP 9. O pepino tem relação
com certo procedimento sobre como a verba sai de Brasília e chega à ponta,
conhecido como “Emenda Pix”. Surgiu de uma decisão de 2019 do Congresso. A
Constituição tinha sido alterada para o dinheiro de emendas individuais ser
repassado a estados e municípios por meio de duas novas modalidades,
“transferência especial” e “transferência com finalidade definida”. Em ambas,
não era necessário firmar convênio. Tradução: haveria menos burocracia e,
também, menos controle. Não é fácil saber quem é o padrinho de uma Emenda Pix
nem o destinatário do recurso. Problema idêntico ao orçamento secreto. De 2020
a 2023, as emendas Pix somaram 12 bilhões de reais, metade liberada no ano
passado.
A ação partiu da Associação Contas Abertas,
da Transparência Brasil e da Transparência Internacional. Havia sido endereçada
à juíza Rosa Weber, relatora do processo contra o orçamento secreto julgado em
dezembro de 2022. Com a aposentadoria da ministra duas semanas depois do
ingresso da denúncia, o processo foi herdado por Dino, substituto de Weber na
Corte. “Reunimos algumas evidências de descumprimento do julgamento de 2022. O
que buscamos é a garantia do cumprimento daquela decisão”, diz Guilherme France,
advogado da Transparência Brasil. Segundo ele, a Corte tem balizas para
examinar o tema “orçamento secreto”, graças à decisão de 2022, mas ainda não
enfrentou o tema “Emenda Pix”, o que pode ser feito agora. A entidade constatou
que esse tipo de emenda se alastrou. Dos 27 estados, 18 a adotam. “Há
problemáticas graves nas emendas Pix, que geram inúmeros riscos de corrupção”,
afirma France.
“Emenda Pix” é um dos capítulos da construção
do “parlamentarismo disfarçado”. Faz parte de uma trama iniciada em 2015,
começo do abortado segundo mandato de Dilma Rousseff. Um primeiro mandato cheio
de atritos com a petista tinha levado os parlamentares a mudar a Constituição
para obrigar o governo a liberar dinheiro às emendas individuais. No comando da
rebelião estava Eduardo Cunha, então presidente da Câmara. Além da obrigação do
repasse, estabeleceu-se uma quantia mínima para tais emendas: 1,2% da receita
corrente líquida do governo. Em 2019, ano da posse de Bolsonaro, o Congresso
foi além. Criou a “Emenda Pix”, tornou obrigatória a liberação para emendas
coletivas (aquelas inseridas no orçamento por um grupo de deputados e
senadores) e fixou um montante neste caso, 1% da receita corrente líquida do
governo.
As decisões de 2019 são obra do presidente do
Congresso na época, o senador Davi Alcolumbre, do União Brasil. Com ele no
posto, o Legislativo passou, a partir de 2020, a turbinar as emendas RP 9, daí
o fato de um senador do PT sempre repetir a portas fechadas: “Alcolumbre é o
verdadeiro pai do orçamento secreto”. O amapaense quer voltar ao comando do
Senado e, por tabela, do Congresso em fevereiro de 2025, em substituição a
Rodrigo Pacheco, do PSD, a quem apoiou para o comando da Casa em 2021. Também a
portas fechadas, Wagner nunca compromete o governo com a candidatura do colega,
daí Alcolumbre ter abraçado a extrema-direita em 2023, a fim de tê-la ao lado
na eleição de 2025.
Abraço dado também por Pacheco, proponente da
criminalização de qualquer posse ou porte de drogas, em resposta ao início do
julgamento do assunto no Supremo em 2023. A proposta passou pelos senadores em
abril e desaguou na Câmara. Coube a Pacheco levar adiante a votação, em 2023,
da lei do “marco temporal” (proposta ruralista), de limites (proposta
bolsonarista) às decisões individuais dos juízes do Supremo e, em fevereiro
passado, da restrição (relatada pelo senador Flávio Bolsonaro, do PL) à saída
provisória de detentos em algumas datas. O mineiro é ainda o autor da tentativa
de recriar um adicional salarial de 5% a cada cinco anos para magistrados e
promotores. Como outras carreiras públicas tentam pegar carona no “quinquênio”,
o custo aos cofres públicos seria elevado: 80 bilhões de reais entre 2024 e
2026, conforme uma recente nota técnica do Senado.
Ao mesmo tempo que busca aumentar o gasto
público, Pacheco é a principal barreira à tentativa do governo de retomar a
cobrança de imposto sobre a folha salarial de 17 setores da economia. Em 24 de
abril, a Advocacia-Geral da União entrou no Supremo com uma ação para anular
uma lei aprovada em outubro de 2023 que renovava a isenção até 2027. A
prorrogação nascera de um projeto do mesmo senador, Efraim Filho, a quem
Pacheco delegaria a relatoria da criminalização das drogas. Efraim é o líder da
bancada de Alcolumbre, o União Brasil. O juiz Cristiano Zanin suspendeu a lei
por liminar. Quatro colegas de Corte endossaram a decisão (bastaria mais um
voto para o STF validá-la de vez), quando o julgamento foi interrompido. A
liminar segue em vigor e, em tese, a partir de 20 de maio, aqueles 17 setores
terão de pagar um imposto suspenso em 2011. Na lista, empresas de comunicação e
de transportes, origem do lobby mais forte contra a reoneração, diz um
integrante da equipe econômica. Por “empresas de comunicação”, leia-se Globo.
Segundo essa fonte, os setores favorecidos
pela isenção estavam “arrogantes” e não queriam negociar, pois apostavam no
Congresso para se salvar. A liminar os obriga a sentar à mesa, do contrário a
taxação voltará nos termos do governo. O apelo ao Supremo era uma carta na
manga do Executivo desde o fim do ano passado, quando do veto de Lula à
prorrogação do benefício. O veto deu-se em 24 de novembro e tinha como
justificativa a existência de “inconstitucionalidade” na lei. Diz o artigo 113
das disposições transitórias da Constituição: “A proposição legislativa que
crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser
acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”. Não havia
tal estimativa no projeto de Efraim Filho, argumento usado na ação no Supremo.
A equipe econômica calcula perdas anuais entre 12 bilhões e 13 bilhões de
reais.
Em 14 de dezembro, o Congresso havia
derrubado o veto de Lula. À época, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
disse publicamente que a lei era “inconstitucional” e deixou no ar a hipótese
de ação judicial. Duas semanas depois, Haddad e Lula assinaram uma Medida
Provisória (a 1.202) a revogar a lei da desoneração (a 14.784) e a repor
gradualmente a taxação. O ano de 2024 começou com negociações entre o ministro
e Pacheco sobre o tema. O governo concordou em abrir mão da MP, de vigência
imediata, e substituir por um Projeto de Lei. Em 27 de fevereiro, baixou outra
Medida (a 1.208) para revogar a reoneração da 1.202. Em 1o de abril, Pacheco,
como comandante do Congresso, anulou uma parte do que havia restado da MP 1.202
e, dessa maneira, garantiu outra benesse aprovada pelos parlamentares. No caso,
a redução da alíquota de contribuição à Previdência que as prefeituras de
cidades com até 140 mil habitantes pagam. Minas Gerais é o estado com mais
municípios do Brasil, 853, ou 15% do total. Pacheco cogita concorrer ao governo
estadual em 2026.
O Projeto de Lei enviado pelo governo ao Congresso com a reoneração gradual da
folha salarial de 17 setores empresariais tende a ser modificado a ponto de ter
o mesmo teor da lei de 2023 que o Executivo rejeita. Foi o que sinalizou à
Fazenda a deputada Any Ortiz, do Cidadania, responsável pelo tema no ano
passado. Por todos esses acontecimentos, o Palácio do Planalto entendeu não
haver mais condições de negociar e recorreu ao Supremo. Normalmente cordato e
de fala mansa, Pacheco deu uma entrevista coletiva em 26 de abril com palavras
fortes contra o governo e em defesa da isenção tributária. Em entrevista à
Folha de S.Paulo no dia seguinte, Haddad afirmou que o Legislativo ganhou
muitos poderes nos últimos anos e, por isso, também precisa ter responsabilidade
fiscal. “Virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o
Parlamento, e sim a Presidência da República, e chama o vice.”
A turma do “parlamentarismo disfarçado”, ou
envergonhado, quer os bônus do poder, não o ônus. Este fica nas costas do
governo.
Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
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