A universidade brasileira não questiona a si
própria como estrutura de poder. Há uma sensação de desconforto, há uma
situação de calamidade, mas não há uma crise universitária. A universidade vive
vegetativamente a crise da sociedade brasileira, porém sem uma crise própria.
Tenho dito isso desde que se iniciou a última greve, em abril de 1984. (Maria
de Azevedo Brandão: “Rumo a uma nova Universidade”, 1985. Publicado em “Mundo e
lugar: a urbanidade do pensamento de Maria Brandão”. Edufba,2021, p.p.421-427).
Retomo o tema do artigo anterior desta coluna
(“Universidades e institutos federais, a busca uma razão razoável”) agora
desviando o foco da greve nacional dos docentes, que hoje já afeta a grande
maioria das instituições federais de ensino do país, na contramão de uma razão
razoável. Tendo prevalecido razões corporativas imediatas e o posicionamento
político de contestação ao governo federal, assumido pelo Andes –
Sindicato Nacional, o foco deste segundo artigo dirige-se às conexões da ação
do movimento docente com alguns aspectos relevantes da conjuntura política. O
vetor aqui analisado não é o impacto presumivelmente pequeno do movimento sobre
a conjuntura e sim as implicações desta sobre a situação das IFES ora
submetidas, em sua maioria, à realidade da paralisação.
As condições precárias das universidades e institutos federais brasileiros e os impasses orçamentários que a situação envolve resultam, naturalmente, de múltiplos fatores, históricos ou recentes e de natureza interna ou externa ao ambiente das IFES. Dentre os de natureza interna está - sem ser obviamente o único, nem o principal - o corporativismo como atitude política motivadora da ação de suas instâncias sindicais. No momento ele é mais visível no movimento sindical docente, cujos discursos e práticas tendem a singularizar insatisfações reais da categoria numa pauta que, no aspecto salarial, parece sugerir uma situação singular, que distingue cidadãos e cidadãs que ali trabalham dos demais, como se fossem "estranhos" uns aos outros. Consequentemente, é menos provável a atenção às pautas universitárias por parte de cidadãos “comuns”, afetados por mil e uma necessidades e interesses outros.
Essa relativa indiferença social – que pode
ser comparada à neutralização atual de uma solidariedade presente em outras
conjunturas por uma “antipatia difusa” – pode ser mitigada, a médio prazo, pela
mudança, de sentido inclusivo, no perfil social dos integrantes dessas
instituições, a começar pelo do seu corpo estudantil, que passa a ser menos
distante do perfil do conjunto da população do país.
Porém, tornar-se menos estranho é faca de
dois gumes para quem valoriza manter o status quo e as relações de poder -
acadêmico ou político-sindical - vigentes dentro dos muros reais ou imaginários
de um campus universitário. Por um lado, a maior convivência (ou o menor
estranhamento) entre quem está dentro e quem está fora pode gerar apoio social
por recursos públicos para essas instituições. Por outro, estimula
questionamentos externos ao modo pouco afeito a prestar contas ao público, pelo
qual elas, via de regra, sempre funcionaram. O mesmo processo que faz a
universidade pública mais importante na vida de mais pessoas, reduz sua
imunidade olímpica a controles sociais.
A blindagem corporativa ao funcionamento da
vida interna das universidades públicas cresceu na contramão dos serviços
públicos que ela presta, os quais tendem a aproximá-la da sociedade. De certo
modo, esse papel social efetivo da instituição compensa a conduta política
autárquica de seus corpos internos. Por outro lado, essa conduta foi
alimentada, ao longo do tempo, pela imputação quase automática de excelência
que governos gostam de lhes atribuir para afagar (de modo mais retórico do que
prático) o seu corporativismo intrínseco. No fim da linha uma certa
autoindulgência é estimulada por autoridades administrativas e/ou políticas, às
quais deve caber a cobrança efetiva da qualidade dos serviços públicos
prestados através da necessária e bem vinda autonomia acadêmica dessas
instituições, às quais cabe, por sua vez, instituir e fazer valer uma
autoavaliação permanente e pública.
Os afagos retóricos são mesmo algo muito
diferente do reconhecimento real do mérito acadêmico, cuja valorização e
sustentação é missão precípua das instâncias de ensino superior e cujo
cumprimento depende da alocação pública satisfatória de recursos materiais.
Essa alocação será politicamente justificada e socialmente aceita na medida em
que a sociedade fique segura de que, nas universidades federais, ensinarão,
pesquisarão e realizarão atividades de extensão os melhores professores e não
os politicamente “corretos”. E segura também de que os gestores dessas mesmas
instituições públicas terão suas investiduras nos cargos e suas decisões
pautadas por procedimentos democraticamente idôneos e guiadas pelo critério do
reconhecimento do mérito, em busca de excelência. Por isso, ao analisar
possíveis razões da situação material e funcional difícil que afeta
universidades e institutos federais de educação superior foi preciso começar
mencionando desafios presentes na sua cozinha.
Mas há fortes razões externas implicadas na
questão, as quais põem em xeque a conduta dos poderes públicos. Estão em
diferentes esferas do poder político e, por isso, são logicamente
insustentáveis as narrativas que buscam achar Genis genéricas, como a chamada
classe política e o Congresso.
Responsabilidades sérias também cabem ao
Executivo. Mais fortemente após a devastação bolsonarista, que não foi pouca
nem pequena, subjetiva e objetivamente. Tendo incluído as universidades, suas
estruturas e fontes de financiamento entre os principais alvos a atacar e seus
membros (servidores técnicos, professores e estudantes) entre os principais
inimigos, o núcleo de poder que esteve no governo naquele quatriênio não
poderia ter deixado outro legado senão o de devastação.
Mas mesmo agora, quando o ministério da
Educação (ministro e equipe) demonstra ânimo de reconstrução e tenta atuar
nessa direção, há problemas de fogo partidário amigo e lhe falta apoio mais
decidido do núcleo político do governo. Sem eximir o ministro Camilo Santana de
responsabilidade por equívocos e erros de condução política (o precário diálogo
com as universidades é um deles), é preciso considerar que ensino superior não
é nem pode ser a grande prioridade do ministério, se comparada a sua situação à
do ensino básico. O que é preciso, sim, é a política social do governo não
deixar a cargo principalmente das próprias universidades a assistência
necessária a novos contingentes de estudantes que chegaram até elas através de
políticas de cotas e outras, que estão levando a sua democratização social. A
política educacional precisa estar melhor integrada à política de assistência
social do governo, que precisa fazer melhor a sua parte. Assim haverá mais
recursos do ME para melhorar o nível dos serviços educacionais e das condições
físicas e materiais de trabalho dos professores.
Além disso, não se pode deixar de questionar
a razoabilidade do anunciado PAC das universidades. Como entender que o governo
queira criar novas, antes de equacionar minimamente pendências financeiras,
institucionais e obras inacabadas do ciclo expansionista de quinze anos
atrás? Ciclo, é bom frisar, levado adiante também no afã de acelerar a
exibição de obras e instituição de novidades nem sempre acompanhadas do devido
lastro acadêmico e de sustentabilidade dos investimentos no tempo. Essa permanente
"fuga para a frente" é também uma das causas dos problemas
orçamentários atuais das universidades. Comparece ainda a implicação do
equilíbrio fiscal, que não será tratada aqui (já o foi no citado artigo
anterior desta coluna), mas que sem dúvida oferece limitação racionalmente
compreensível a que o governo resolva a curto prazo as carências de suas
universidades e institutos.
O que decididamente não ajuda é fazer do
Congresso o bode expiatório do problema. A política fiscal é um acordo entre os
poderes e não uma camisa de força imposta por um deles para tirar proveito
corporativo. Essa explicação simplória tem validade nula, embora possa ser
mobilizada como argumento político defensivo para terceirizar
responsabilidades. Lembremos que o humor contra "políticos" já levou,
em anos recentes, o país a becos estreitos, com difíceis saídas. Não repitamos
o erro.
É preciso discernir o que são abusos
corporativos do Legislativo (eles existem e não são poucos) para não os
confundir com demonização de emendas parlamentares como supostos sorvedouros de
recursos que deveriam estar nos campi. Em que medida estariam mesmo? E em que
medida deveriam estar?
Abusos do Legislativo na relação com o
governo e na atitude para com a sociedade estão escancarados, mesmo que se
tenha tirado de cena seu exemplo mais gritante, o "orçamento
secreto". As mazelas persistem no escambo de emendas nem sempre idôneas,
seja para obtenção de apoio legislativo a matérias de interesse do governo,
seja para fortalecer tráfico de influência da cúpula do Legislativo,
especialmente o poder pessoal do presidente da Câmara. Persistem também na
subversão, com os mesmos intuitos, de regras de transparência e razoabilidade
na liberação de emendas pelo Executivo.
Em geral estamos longe, portanto, de boas
práticas políticas. Mas não se pode desconhecer que além do fim (relativo, é
bom dizer sempre) do orçamento secreto, há maior contenção e responsabilidade
(e aqui cabe também relativização) na distribuição de cargos no Executivo em
troca de apoio parlamentar. Esse procedimento não é censurável em si, sem levar
em conta o contexto, mas há muito vem, no Brasil, ultrapassando limites
legítimos, dentro dos quais é preciso negociar para haver governabilidade, numa
democracia. Sem falar na fragmentação interna de partidos, obra do ânimo
fisiológico de parlamentares, estimulada por estratégias de fortalecimento de
poder pessoal de protagonistas dos dois Poderes.
É fato, porém, que as emendas parlamentares
respondem, em boa parte, a demandas e/ou necessidades de comunidades concretas,
assim como de cidadãos e cidadãs que não têm a sorte de possuírem representação
autônoma em organizações da sociedade civil. São demandas públicas tão
legítimas, do ponto de vista democrático, quanto as dos grupos sociais
organizados, ou as de entes públicos estatais autônomos, como universidades e
institutos federais. As emendas, via de regra, expressam, do ponto de vista
geográfico, demandas locais ou regionais e, do ponto de vista administrativo,
demandas setoriais também de difícil consideração pelos órgãos do Poder
Executivo nacional, em sua propensão a pensar e agir com uma racionalidade
técnica mais abrangente e uma lógica política centralizadora.
Essas demandas não inicialmente contempladas,
a cada ano, nas propostas orçamentárias iniciais (que cabe ao Executivo Federal
fazer) encontram respaldo não necessariamente irracional, ou ilegítimo, na
representação legislativa, à qual constitucionalmente cabe, aliás, a definição
legal das diretrizes orçamentárias e das leis orçamentárias anuais. É
claro que definir diretrizes e leis anuais não significa que o Congresso possa
subtrair ao Executivo a prerrogativa de decisões relativas à execução do orçamento.
Isso deve ser coibido pelo entendimento político e, no limite (só no limite),
pelo arbitramento do Judiciário. Porém, não se pode demonizar as emendas
parlamentares como se elas fossem um procedimento espúrio, um "mal em
si". Pensar assim é retroceder a uma tradição autocrática forjada nos
momentos mais obscuros da república brasileira. O arranjo oligárquico da
Primeira República, a ditadura do Estado Novo e o regime autoritário pós 64 são
diferentes exemplos, em distintos contextos, de alguma institucionalização,
formal ou informal, de um mando tradicionalmente vertical e avesso ao
pluralismo. Por vezes, foi mais ditatorial do que presidencial.
Essa mentalidade quer que o Legislativo volte
a ser, na prática, um poder auxiliar, que apenas carimba decisões orçamentárias
do Executivo. A justificativa habitual, de que o governo deve cumprir o
programa eleito, desconhece que o Legislativo detém legitimidade eleitoral
análoga. É uma mentalidade anacrônica, que conduz a estratégias inócuas. A
recuperação das prerrogativas do Legislativo é processo irreversível desde a
Carta de 88. Só deixará de sê-lo fora dos marcos da democracia, se a
Constituição for atropelada por um poder de fato, coisa que Bolsonaro tentou
fazer e não conseguiu, porque as instituições do estado e da sociedade civil
reagiram.
Fariam bem os sindicatos da categoria e
demais atores sociais, lideranças políticas e personalidades internas e
externas, aliados à causa das instituições federais de ensino superior se, para
defendê-las, passassem a enxergar no Congresso, não um obstáculo hostil a
derrotar, mas um interlocutor legítimo.
*Cientista político e professor da UFBa.
Um comentário:
Muito bom! Destaco uma ideia:
"Tendo incluído as universidades, suas estruturas e fontes de financiamento entre os principais alvos a atacar e seus membros (servidores técnicos, professores e estudantes) entre os principais inimigos, o núcleo de poder que esteve no governo [bolsonarista] naquele quatriênio não poderia ter deixado outro legado senão o de devastação."
Bolsonaro escolheu a dedo os piores ministros pra comandar a Educação, com destaque para o criminoso Abraham Weintraub, o ministro SEM EDUCAÇÃO, já julgado culpado pelas acusações MENTIROSAS contra as Universidades Públicas. Teve ainda o pastor que trocava bíblias por barras de ouro, o ex-militar que falsificava o seu currículo... Só bandido de colarinho...
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