Folha de S. Paulo
Seu legado nos desafia a buscarmos sempre fugir dos lugares-comuns
Maria da Conceição
Tavares nos deixou no último sábado (8), aos 94 anos de idade.
Pensadora original e professora admirada, Conceição respirava política e
bravejava contra as injustiças sociais. Intelectual pública de língua afiada,
fugiu da ditadura de Salazar, em Portugal, para cair nos porões da ditadura militar brasileira. Viu renascer a
democracia formal, elegeu-se deputada federal e nos deixou a tarefa de
construir a democracia multirracial brasileira, ainda tão distante.
Seu curso de economia política em 1992 se tornou referência popular na internet, pela erudição ácida e impactante de suas tiradas, as quais anteciparam em décadas a "lacração" das redes antissociais.
Conceição integrou os quadros do BNDE
(1958-1960) e da Cepal (1961-1974) e foi fundadora do Instituto de Economia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-graduação em
Economia na Universidade de Campinas (1973), onde ajudou a formar o pensamento
desenvolvimentista da "escola de Campinas".
Paulo Robilloti mapeou, com profundidade
analítica e contextual, as contribuições de Conceição em "O
desenvolvimento capitalista na obra de Maria
da Conceição Tavares" (Unicamp
2016). Três momentos marcam seu pensamento: a fase cepalina (1963-1972), a
fase do desenvolvimento capitalista no Brasil (1973-1985) e a fase da economia
política internacional (1985-2024). Destaco duas de suas teses.
Em contraposição à tese de Celso Furtado, que
previa estagnação econômica no regime militar devido à exclusão das massas do
consumo —via arrocho salarial—, Tavares mostrou que a desigualdade de renda e
de riqueza poderia produzir intenso dinamismo econômico. O consumo conspícuo da
classe média emergente, anabolizado pelo crédito ao consumidor, sustentava os
setores de bens de consumo duráveis, como automóveis e eletrodomésticos.
Escrito em parceria com José Serra, o artigo "Além da estagnação"
(1972) se tornou um clássico da historiografia econômica brasileira.
Nos anos 1980, Conceição avança
para economia política internacional, buscando compreender como os EUA reagiam
à contestação de sua hegemonia tecnológica, militar e econômica.
O artigo "A retomada da hegemonia
americana" (1985) mostra que, em vez de viver uma crise, a hegemonia dos
EUA se reorganizava e se reafirmava com a "política do dólar forte",
o "choque de juros" de Paul Volcker (presidente do Fed) em 1979, bem
como a "diplomacia das armas", por meio do programa de governo
conhecido como Guerra nas Estrelas. Devido à sua precisão e presciência, a tese
obteve razoável consenso a partir dos anos 1990.
Na revista "Cadernos do
Desenvolvimento", do Centro Internacional Celso Furtado, Carla Curty (2023) sugere que o pioneirismo e a
originalidade da análise de Conceição sobre as "relações de coerção e
consenso entre os EUA e o resto do mundo" se devia à perspectiva
latino-americana da autora sobre os eventos. Afinal, à época, a região estava
imersa em uma significativa crise (da dívida externa), sentindo diretamente as
ações e consequências dessa "retomada da hegemonia dos EUA" nos anos
1980.
Como lembrou Ricardo
Bielschowsky, a "poderosa combinação entre criatividade e
rebeldia" de Conceição obriga todo mundo a "pensar grande". Seu
legado permanece vivo nas mentes de colegas e estudantes de economia, sempre
nos desafiando a fugir dos lugares-comuns.
John Maynard Keynes disse, certa vez, que o
mundo é governado por ideias de economistas defuntos de tempos atrás. Repetidos
à exaustão, conceitos e teses se tornam familiares, a ponto da obviedade.
Conceição logrou esse efeito em vida e, com sua passagem, ascende ao panteão de
economistas mais influentes do Brasil.
À mestra, ficam nosso carinho e nossa
admiração. Descanse em paz!
Um comentário:
Excelente!
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