O Globo
Além de restringir direito, constranger
mulheres, intimidar equipes médicas, projeto impõe às vítimas pena maior que a
dos agressores
É sórdido e apequena a política o Projeto de Lei que ameaça condenar por homicídio meninas, jovens e mulheres que interromperem gestações, ainda que decorrentes de estupro. O PL 1.904/2024, de autoria do deputado bolsonarista Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), entre outros parlamentares (homens e mulheres), impõe marcha à ré num direito previsto em lei desde 1940. É uma bofetada em quem ousou crer no efeito cliquet. A expressão, de origem francesa, vem do alpinismo: define o ponto em que uma escalada não pode mais retroceder, só avançar. No Brasil, se chama princípio de vedação do retrocesso. Direitos humanos não podem ser suprimidos nem enfraquecidos.
Mas a Câmara dos Deputados, sob a batuta
de Arthur
Lira, só precisou de 24 segundos para aprovar a tramitação em regime de
urgência, com recomendação contrária de dois solitários partidos, PSOL e PCdoB.
Significa que o texto prevendo prisão de seis a 20 anos para mulheres que
abortarem a partir da 22ª semana, mesmo em caso de estupro, pode ir a plenário
sem passar por nenhuma comissão. Nem pela CCJ, que, séria fosse, decidiria pela
inconstitucionalidade da proposta, conforme afirmou em rede social o
jurista Silvio
Almeida, ministro dos Direitos Humanos:
— É um PL vergonhosamente inconstitucional,
pois fere o princípio da dignidade da pessoa humana e submete mulheres
violentadas a uma indignidade inaceitável, a tratamento discriminatório, o que
não é permitido por nenhum parâmetro normativo nacional ou internacional a que
o Brasil tenha aderido.
Há 84 anos existe excludente de ilicitude na
interrupção de gestação por estupro ou risco de vida da mãe. Doze anos atrás, o
Supremo Tribunal Federal autorizou o aborto se constatada a anencefalia fetal.
No voto em que, como relatora, decidiu pela descriminalização da mulher na
intervenção até a 12ª semana, Rosa Weber,
ex-ministra do STF,
lembrou que o Código Penal prevê pena menor, de um a três anos, nos casos fora
das permissões legais. O julgamento está parado desde setembro do ano passado.
O Brasil é território brutal para meninas e
mulheres. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o ano de 2022
(último dado disponível) bateu recorde em registros de estupros: 74.930, 8,1% a
mais que em 2021. Seis em cada dez vítimas tinham até 13 anos; 57% eram negras.
Em 64% das violações sexuais de meninas, os estupradores eram da família. Por
ano, 18 mil meninas com menos de 14 anos dão à luz bebês, com risco à própria
saúde e ao futuro. Gravidez precoce anda de mãos dadas com evasão escolar, desemprego
e pobreza. Sem falar no trauma da violência sexual.
Não é sem motivo que a legislação vigente não
estabelece prazo para o aborto legal. Mesmo quando assegura o direito, o Brasil
restringe o acesso. Não chega a 4% a proporção de municípios com hospitais
aptos a realizar o aborto legal. No país todo, são 290 unidades de saúde, a
maioria nas capitais. Além da descoberta quase sempre tardia da gravidez,
meninas e adolescentes são obrigadas a vencer quilômetros de deslocamento para
sofrer a intervenção. Isso quando dependem de decisões judiciais, nunca rápidas.
As desigualdades de educação e renda ampliam o fosso.
Não à toa, o projeto vem sendo chamado de PL
da Gravidez Infantil ou PL dos Estupradores. Além de restringir direito,
constranger mulheres, intimidar equipes médicas, o texto impõe às vítimas pena
maior que a dos agressores. Uma barbaridade. Em vez de se dedicarem ao
aprimoramento e à elaboração de políticas públicas de educação sexual, combate
à violência e acesso a contraceptivos, os deputados pensam em criminalização.
Desde o início da tramitação, a sociedade
civil vem se mobilizando contra o texto. Ontem, em nota, a Rede Feminista de
Ginecologistas e Obstetras e a Comissão Arns se posicionaram contra o PL,
tratado como “ataque aos direitos sexuais e reprodutivos” e “infâmia”,
respectivamente. O Conselho Nacional de Saúde pediu o arquivamento. No Rio de
Janeiro e em São Paulo, houve as primeiras manifestações de rua.
A Câmara dos Deputados, de maioria
conservadora e imensa porção reacionária, também apequena a política com a
tramitação rápida e autoritária, sem debate público, do PL. É estarrecedor que,
num Estado laico, a moral religiosa seja imposta a quem não partilha as mesmas
crenças ou deseje (ou precise) fazer valer direitos adquiridos. Parlamentares
evocam a Bíblia como superior à Constituição. É a teocracia batendo à porta.
O deputado Sóstenes, sem pudor, disse à
jornalista Andréia Sadi, da GloboNews, que a aprovação do PL é um teste para o
presidente Lula. Na campanha de 2022, o então candidato petista, em carta aos
evangélicos, se declarou contra o aborto. Se vetar o projeto aprovado pelo
Congresso, para o parlamentar, provará o contrário. No dicionário não há
palavra para definir alguém capaz de criar uma lei para encarcerar uma vítima
de estupro com objetivo de encurralar um adversário político-ideológico. Nos
versículos bíblicos há de ter.
Um comentário:
Estamos falando de penalizar o aborto depois de 22 semanas de gestação Mais de cinco meses isso está garantido pela lei atual Mais do que isso essa criança pode nascer viva e ter que se matar fora do ventre e da mãe Isso é um absurdo horrível. Por falar em violência, existe centenas de pessoas presas políticas Sem chance de saber as suas acusações e se defender são mulheres velhos Pais de família senhorinha de 70 anos e infelizmente não vejo nenhum jornalista levantar a voz contra esse absurdo Enquanto vemos Traficantes e bandidos perigosos sendo soltos Com facilidade que impressiona
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