Valor Econômico
Para ex-ministro Nelson Jobim, conserto dos Poderes depende de mudança no sistema político e no voto uninominal para a Câmara
“Está tudo disfuncional. O Executivo é
disfuncional, o Legislativo é disfuncional e o Judiciário é disfuncional”.
Deste modo, simples e direto, o ex-ministro da Justiça (governo FHC) e da
Defesa (governo Lula), e ex-ministro do STF, Nelson Jobim, definiu, em conversa
com a coluna, a situação dos Poderes da República brasileira. A desorganização
atravessa não apenas a Esplanada de Brasília, mas outras esferas
administrativas e acaba por atingir o cidadão, que se vê à mercê de decisões
muitas vezes sem qualquer sentido prático.
Por detrás da disfuncionalidade está a
supremacia do individualismo que torna o parlamentar mais importante do que o
partido e o ministro do STF mais relevante do que o Supremo. O resultado é um
imbróglio de decisões que compromete as atribuições precípuas de cada poder.
Isso se agrava com os desarranjos circunstanciais, como é o caso do Executivo.
A inexistência de um plano de governo, o
conflito entre a cúpula do PT e os ministros, em especial com o ministro da
Fazenda, e a falta de uma liderança que amarre as pontas no Executivo e que
faça a ponte com o Legislativo são sinais de distúrbio que contribuem para a
incerteza e a insegurança.
“O governo, do meu ponto de vista, é disfuncional. Tem problemas de toda a ordem. Um deles é o fato de não haver um grupo de políticos com ascendência sobre o presidente Lula. No primeiro mandato, havia uma espécie de Estado-Maior que dizia não. No segundo governo, também um grupo próximo a ele dizia não. Isso não existe no terceiro mandato. Não há gente próxima que diga não a ele, por um lado, e, por outro, parece que ele não quer ouvir”.
Um complicador de fundo é a configuração do
ministério. Vencedor com um resultado eleitoral apertado, de 1,8% no segundo
turno, Lula retornou ao Planalto não no colo do PT, mas dos eleitores que não
queriam a reeleição de Bolsonaro. Na prática, optou por formar o governo com um
arranjo partidário complexo, tendo em vista os votos do Congresso Nacional. Mas
o que se vê é uma crescente dissonância nas relações entre o Executivo e o
Legislativo.
“O resultado das eleições de 2022 deu uma
base para o governo na Câmara formada por 14 siglas partidárias com 287
deputados, mas o máximo de apoio garantido não passa de 206 votos. Entre esses,
há os votos dos partidos com ministério no governo e os votos daqueles sem
ministério. Partidos com ministério são nove com 262 cadeiras, mas aqui o
governo só consegue 181 votos. Já os partidos que não têm ministério somam 25
assentos e é curioso porque estes têm dado a totalidade de 25 votos para o
governo”, explica Jobim.
No Senado, a base do governo é formada por
oito partidos, que têm 47 votos, mas “o máximo que o governo conseguiu nas
votações não passa de 31 votos”. Esta é, diz ele, a base real, apesar de sete
daqueles oito partidos terem participação no governo com ministérios (entre os
31 está o senador Randolfe Rodrigues, sem partido).
“É complicado administrar essa confusão no
plano macro e, no micro, há as emendas ao orçamento: as individuais, que
passaram a ser impositivas, e se estenderam para as emendas de bancada por
Estados, emendas de relator (anuladas pelo STF) e as das comissões da Câmara e
do Senado, além das chamadas ‘emendas pix’, pelas quais o parlamentar manda a
verba direto, sem exigência de programa nem nada mais”.
Supremacia do individualismo torna político
mais importante que partido e ministro mais relevante que o STF
A prática das emendas tem consequências não
apenas fiscais, mas políticas. “Qual foi o efeito desse assédio do parlamento
ao orçamento da União via emendas? Criou-se um fenômeno novo, que é a
independência individual de cada parlamentar”. A autoridade dos partidos sobre
os parlamentares hoje, diz ele, limita-se ao presidente da sigla por causa do
fundo partidário. “No que diz respeito ao resto, está atomizado. Antes, os
líderes tinham autoridade política junto à suas bancadas e faziam a ponte com o
presidente da Câmara e com o governo”, comentou. Agora, cada parlamentar age
por si em uma estrutura legislativa disfuncional que magnifica o poder do
presidente da Câmara.
Em paralelo, as emendas constitucionais
tornaram-se corriqueiras para fugir dos vetos presidenciais. Há PECs de todos
os tipos: das drogas, do quinquênio e até uma dedicada às praias. Qualquer
iniciativa de maior interesse dos parlamentares vira uma PEC. A Constituição,
banalizada, vira um saco de gatos!
Não é de surpreender, portanto, a relevância
do Poder Judiciário. Entre a judicialização da política e o ativismo judicial,
Jobim faz uma diferença. O primeiro resulta da atuação do Supremo por
provocação de terceiros. “Já o ativismo judicial decorre da judicialização da
política e foi intensificado porque perdeu-se a capacidade de gerir conflitos
no Congresso”, observa.
“Como se faz para promover o entendimento
nesse quadro de atomização na Câmara, agravado pela variável do ódio? Como
ninguém fala com ninguém, os conflitos políticos vão parar no STF e com isso
surgiu um fenômeno novo porque o Supremo passou não apenas a dizer que a lei é
inconstitucional, mas a dar as diretrizes de como fazer para cumprir a
Constituição”. O ativismo judicial ajuda na resolução dos conflitos políticos,
mas transforma o Supremo naquilo que Jobim chama de “legislador supletivo”. O
STF passou a atuar como se fosse um apêndice do Poder Legislativo.
Além disso, incorporou a figura do “Estado de
Coisas Inconstitucional” (ECI), criada pela Suprema Corte da Colômbia para
enfrentar casos de violação massiva de direitos fundamentais com danos para
amplo número de pessoas. Aqui, o Supremo faz as vezes do Poder Executivo. A
“modulação da decisão”, como a liminar que suspendeu os efeitos da Lei das
Estatais e abriu brecha para o governo colocar políticos em empresas públicas,
também é uma novidade que causa estranheza. Todos esses são exemplos de
disfuncionalidade do Poder Judiciário. Nesta esfera, a supremacia do
individualismo se firmou com a visibilidade via TV Justiça.
Tem conserto? Jobim acha que tem, mas precisaria mudar o sistema político. No Brasil, o voto para a Câmara é uninominal. Não se vota no partido, mas no indivíduo, em lista aberta. Os partidos saem em busca de candidatos que garantam o maior número de votos para a sigla, mas ficam enfraquecidos. Ele defende o sistema português, em que os candidatos são definidos nas convenções, em lista ordenada, fechada. Acha que viabilizaria a maior concentração de candidatos por partidos e a retomada do diálogo na política. “A lista uninominal que usamos vem da época do Império e está esgotada”, resume.
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