O Globo
Recomendar a contenção de gastos é o grande teste de Haddad. Caberá a Lula avançar ou não. O cálculo, como sempre, é político
Afirmei algumas vezes que a agenda de
contenção de gastos pelo governo se imporia cedo ou tarde, independentemente da
regra fiscal utilizada. O problema é que o horizonte está se encurtando.
O desenho inconsistente do arcabouço fiscal, identificado já na largada, ficou claro. Confirmou-se equivocada a ideia de que não seria necessário o controle de despesas, bastando o aumento das receitas. E como o arcabouço tem papel central na credibilidade do governo, acelera-se a necessidade de mudanças na estratégia fiscal.
Há claros sinais de corrosão da credibilidade
fiscal, refletidos no comportamento dos preços de ativos no mercado financeiro,
como o dólar. Não se trata de mera elevação de volatilidade, mas sim de mudança
de patamar de preços, para pior. Soma-se a isso o mal-estar também entre
lideranças empresariais.
Antes de prosseguir, vale citar que havia de
fato necessidade de recompor algumas despesas, pois o governo anterior fez
muitas contenções artificiais e insustentáveis de gastos, em um “faz de conta”
de que a regra do teto seria cumprida. Adicionalmente, algumas medidas para
elevação de receita vão na direção correta de prover maior isonomia às regras
tributárias.
Não faltaram alertas sobre o risco de começar
o governo já ampliando gastos, contrariando a lógica de guardar munição para os
anos finais, e sobre os limites para o aumento da arrecadação, inclusive por
conta da reforma tributária do IVA. A “bala de prata” do governo, nas palavras
da ministra Simone Tebet, deveria ter reforçado a cautela.
Muitas alterações tributárias em curto espaço
de tempo, algumas de forma atabalhoada, trazem intranquilidade e desconfiança
ao setor privado, que reage. O investimento sofre e buscam-se proteções, como o
tratamento especial na reforma do IVA, reforçando o velho patrimonialismo —
farinha pouca, meu pirão primeiro.
A recomendação para o controle das despesas
não significa que seja tarefa fácil. Pelo contrário, pois requer rever regras
constitucionais. No entanto, além de ser a melhor forma de fazer o ajuste
fiscal do ponto de vista do crescimento econômico, inclusive pela baixa
qualidade das políticas públicas, a reduzida tolerância a mais endividamento e
a mais tributos recomenda rever regras que elevam os gastos automaticamente.
A rigidez do Orçamento só faz crescer. No
início dos anos 2000, os gastos obrigatórios representavam em torno de 75% do
total e, atualmente, cerca de 95%. Isso em situação de déficit primário,
estimado em 0,7% do PIB este ano, ante superávits na casa de 2,5% do PIB no
passado. Duplamente grave.
Ainda que o envelhecimento populacional, com
impacto na Previdência, tenha grande peso na maior rigidez de gastos, houve
muitas políticas governamentais agravando o quadro — exemplo recente é a
política de valorização do salário-mínimo. Há iniciativas de elevado custo e
com grande apelo, mas que falham no objetivo de proteger os mais vulneráveis ou
prover igualdade de oportunidades.
Somam-se a isso os muitos grupos organizados
que abocanham o orçamento, sem sofrerem contestações do Legislativo ou do
Tribunal de Contas da União.
É papel dos técnicos apontar os problemas
fiscais e recomendar ao presidente as possíveis saídas. Pessoalmente, avalio
que, diante da disseminada concessão de proteções e benefícios, inclusive
tributários, um ajuste baseado em avanços incrementais em várias frentes, em
contraposição a medidas mais radicais e localizadas, seria o melhor caminho.
Reafirmo que recomendar a contenção de gastos
é o grande teste de Haddad. Caberá a Lula avançar ou não. O cálculo, como
sempre, é político, sendo que as eleições este ano poderão influenciá-lo.
Será necessário, porém, acrescentar novos
fatores nessa conta política. Além do citado mau humor do setor privado
reduzindo o espaço para se procrastinar o ajuste, a maior concorrência na
política eleva o questionamento da gestão federal por outros partidos.
Mais importante, a sociedade revela
tolerância ainda menor à inflação. A alta de preços de alimentos no início do
ano teria prejudicado a aprovação de Lula, enquanto a inflação elevada ajudaria
a explicar o menor número de votos no Sudeste para Bolsonaro em 2022 em relação
a 2018 — uma região onde é menor o peso do Auxílio Brasil/Bolsa Família.
Melhor assim. O risco fiscal é concreto. Que
os sinais de alerta funcionem.
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