quarta-feira, 12 de junho de 2024

Wilson Gomes - O declínio do debate parlamentar

Folha de S. Paulo

Episódios da semana passada mostram a deterioração do debate parlamentar

Tenho falado muito sobre a degradação do debate público nacional e como isso reflete tanto uma espécie de "balcanização" da esfera pública quanto a perda da crença coletiva em valores como tolerância e pluralismo.

De um lado, vemos um claro processo de fragmentação política que desagrega grandes blocos ideológicos em unidades menores e altamente hostis entre si; do outro, assistimos à substituição dos valores fundantes da democracia pela ilusão de que o outro lado, o lado "errado" da força, ainda pode ser vencido, neutralizado ou incapacitado.

Episódios ocorridos na semana passada, entretanto, mostram outra face, complementar, dessa história: a deterioração do debate parlamentar.

Na quarta-feira, as reuniões da Comissão de Direitos Humanos e do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados nos deram amostras excepcionais de como a rivalidade política, ao alcançar uma fase exibicionista, está superando até mesmo as barreiras impostas pelas liturgias e etiquetas das casas legislativas.

No noticiário profissional, o foco principal foi a troca de ofensas, ameaças e empurrões, não a pauta dos dois espaços parlamentares. Enquanto isso, o noticiário que de fato tem público, produzido pelos editores políticos e sociais, entregou em milhões de celulares as várias versões dos eventos registrados durante as sessões da Câmara. Insultos, lacradas, dedos na cara, tentativas de agressão, tudo compilado em vídeos de 30 segundos devidamente editados e legendados.

Deem uma olhada no YouTube e deliciem-se com títulos como "Nikolas Ferreira faz comentário transfóbico contra Erika Hilton", "Erika Hilton faz chacota com aparência de mulher: ‘vai hidratar esse cabelo’", "Confusão marca sessão na Câmara", "Deputado comete transfobia", "Deputado toma invertida", "Deputada X esmaga o deputado Y".

O que esses títulos de vídeos dizem ao brasileiro comum me parece cristalino: os bagunceiros do fundo da sala chegaram ao Congresso Nacional.

Numa participação no podcast "O Assunto", de Natuza Nery, Fernando Gabeira creditou esse comportamento à hegemonia das redes sociais na comunicação. Na verdade, trata-se de hegemonia na cobertura da política.

Gabeira considera haver método nessa conduta, que consiste em continuamente produzir controvérsias para levá-las às redes sociais. E sustenta a hipótese de que a busca por likes é uma forma encontrada pelos novos parlamentares de manter ativa sua conexão com sua base.

Gabeira não está errado, mas as redes sociais não são a causa de uma nova mentalidade; são parte dela.

Temos no Congresso Nacional e na sociedade uma geração que cresceu e se formou politicamente em ambientes digitais, principalmente no YouTube, e são fluentes nos seus dialetos e consumidores das suas formas estéticas. O universo narrativo nerd ou geek, de onde vem tudo isso, tem origem no mundo dos vídeos, dos games e dos memes e cultua tanto uma estética de irreverência grosseira quanto uma atitude iconoclasta e afrontosa.

A diversão é gerada por um tipo de humor baseado no escárnio, a zoeira. Seu herói é um sujeito de raciocínio rápido e afiado, irreverente e com respostas desarmantes. Como método, valorizam o desrespeito ao politicamente correto, se são de direita, e a resposta violenta e humilhante ao opressor, se são de esquerda.

Esse público é ávido por vídeos e memes que registrem a política como luta na lama, as disputas parlamentares como brigas de gangue, os discursos e insultos dos deputados e senadores como uma competição por lacradas e humilhações.

Por outro lado, houve muito pouca coisa na quarta-feira passada que remotamente lembrasse o que a teoria democrática chama de "deliberação pública".

Trocam-se ofensas, não razões; ganha quem consegue a sentença que desarma o adversário, deixa-o sem reação, não quem formula o melhor argumento. Não se busca apresentar razões universais como patamar aceitável por todos; a ofensa deve ser personalizada e diretamente endereçada ao nervo exposto do inimigo.

Ninguém se obriga a ouvir e considerar o que os outros têm a dizer; a meta consiste em impedir que digam algo ou que sejam ouvidos por alguém. O insulto é muito mais eficaz que o argumento, porém é menos eficiente que o ato performático de empurrar, meter o dedo na cara, ameaçar descer o braço.

Sobretudo, nunca se deve esquecer da regra de ouro: o público que importa não são os presentes no recinto parlamentar, mas os que estão esperando as lives e as edições dos highlights das lacradas para, por sua vez, usá-las em suas brigas de rua nas quebradas digitais.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

Ttmj a muquiranas tomou conta da politica

Anônimo disse...

E aguardem que a muquiranada dá sinais de aumentar...